Um só pecado, de François Truffaut

Um só pecado, de François Truffaut

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Em entrevista que acompanha o caixa da Versátil sobre a “nouvelle vague,” François Truffaut afirmou que pretendia explorar uma anatomia do adultério ao construir o enredo de “Um só pecado”, filme de 1964. Conta que a ideia surgiu quando viu um casal beijar-se apaixonadamente na saída de um táxi, em Paris. Presumiu que cada um seguiria caminho próprio, para os braços do marido e da esposa, ou mesmo dos filhos. Não seria possível tanta felicidade. Pretendia fotografar o adúltero como um acossado, como uma pessoa destituída de vontade própria, dirigida pelas circunstâncias, cujo controle perdeu em algum momento para nunca mais recobrar, na vida.

Não se trata de uma questão circunstancial, transitória, que permite uma volta. É uma opção com desate de algum modo trágico, ainda que a tragédia resida no arrependimento pela escolha: seja pela entrega definitiva aos braços do novo amor, seja pela manutenção da situação aflitiva do convívio diário, que é a pista que conduz à traição, nessa leitura existencialista da opressão da liberdade. Não haveria alternativa plenamente satisfatória. O problema não está no caráter de quem resolve enfrentar os riscos. O problema estaria na própria instituição do matrimônio, que os existencialistas repudiavam. A formulação típica desse enredo se dá em Jean-Paul Sartre e em Simone de Beauvoir.

Vamos à narrativa. Um famoso e bem sucedido editor, Pierre Lachenay (protagonizado por Jean Desailly) viaja à Lisboa para uma conferência. Conhece uma aeromoça, Nicole (Françoise Dorleac), por quem se apaixona perdidamente. Sua esposa, Franca Lachenay (Nelly Benedetti) pode a qualquer momento descobrir o que ocorria. Curiosamente, o avião que leva Pierre de Paris a Lisboa é da antiga Panair do Brasil, inclusive indicando-se a bandeira brasileira na entrada do avião. A atriz que protagonizou a aeromoça é irmã mais velha de Catherine Deneuve. Faleceu pouco tempo depois do lançamento do filme, em um acidente de automóvel.

Há uma cena logo no início da fita, na qual a Nicole, Pierre e um copiloto (Frank) estão no elevador que é extremamente representativa das minudências técnicas da “nouvelle vague”. A subida é demorada, há troca de olhares. A descida, em que pese cobrindo o mesmo número de andares, é sucinta e imediata. Trata-se de uma obra-prima do cinema francês. A fotografia é encantadora, o abuso de “close-ups” dá a impressão que acompanhamos a narrativa na ótica dos personagens. Há uma ótima dosagem de tempo, porque tem-se a impressão que os protagonistas ocupam momentos exatos para que sejam encaixados na tensão. Paris no início da década de 1960 revela-se como um fragmento do idílio. Os adereços indicam um tempo que já não mais existe: o toca-discos, o telefone público, o laquê no cabelo das atrizes, a lentidão nas falas.

É um filme sobre a ditadura da falta de alternativas que paralisa o marido adúltero, que simplesmente não sabe para onde ir. Ele é causa, e ao mesmo tempo vítima, de uma crise moral de opção, da qual é prisioneiro. Não há em Truffaut nenhum moralismo ou tentativa piegas de castigar o adúltero, que em favor de uma paixão incontida, perdeu as referências, e muito mais. Com diferença no tom e no peso emocional, retoma-se o topoi do homem apaixonado que tudo deixa por uma paixão, a exemplo do enredo do “Anjo Azul”, construído a partir do livro de Heinrich Mann.

Truffaut filmou esse drama com muita sensibilidade. Às cenas de sexo preferiu exibir silhuetas, em constante jogo lírico, enfatizado por uma musica envolvente e pelo P&B que registra uma época. Pierre, o protagonista central, é o próprio desespero de uma vida que tudo tem, mas que, ao mesmo tempo, tudo falta. Essa angústia foi um dos temas centrais do pensamento francês do pós-guerra, que o cinema (especialmente em Truffaut e Goddard) problematizou ao limite. Não é um filme sobre a moral ou sobre o caráter. É um filme sobre a condição humana, sobre o jogo de opções e sobre as razões que se tem, mas que se desconhece, sobre as quais não se fala, mas pelas quais se morre, e sem as quais não se vive.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 10/04/2020
Reeditado em 10/04/2020
Código do texto: T6913012
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