A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende, no filme de Bille August

A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende, no filme de Bille August

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

“A Casa dos Espíritos”, baseado em livro homônimo da escritora Isabel Allende, dirigido pelo dinamarquês Bille August, destaca-se como um dos mais tocantes filmes da década de 1990. O rigor técnico da produção é um passaporte para todos os tempos; é um filme atualíssimo, especialmente pelas lições que aponta sobre os perigos da política aliada aos quarteis. O tema (do livro e do filme) tem como pano de fundo a história contemporânea do Chile, cujos eventos de boa parte do século XX centram-se na pessoa de Esteban Trueba, protagonizado por Jeremy Irons. Uma atuação impecável, de tirar o fôlego.

“A Casa dos Espíritos” tem também como núcleo da narrativa a história de Clara, protagonizada por Meryl Streep, que também atua excepcionalmente, como sempre. Clara tem poderes sobrenaturais, que revela discretamente, o que indica de algum modo a influência do realismo fantástico latino-americano na obra de Isabel Allende. Isabel nasceu no Peru, onde seu pai (chileno) era diplomata. Isabel acompanhou e relatou intensamente a vida política chilena. Mais tarde, naturalizou-se norte-americana. Seu pai era primo de Salvador Allende, que foi deposto pelo golpe de Pinochet, em 1973. Em seguida Salvador Allende foi assassinado, segundo a tradição por um rifle que Fidel Castro lhe havia presenteado. O Chile viveu os pesadíssimos anos da ditadura, que Costa-Gravas retratou em outro filme excepcional, “Desaparecido”, com Jack Lemmon.

Vamos a um sumário do enredo. Esteban é de origem humilde, trabalha nas minas e pretende se casar com a filha de um importante político. Com o ouro que encontrou comprou uma “hacienda”, chamada de Três Marias. A pretendente falece. Mais tarde, Esteban casou-se com Clara, irmã da falecida. Esteban tem uma irmã, Férula, protagonizada por Gleen Glose, que vai morar com o casal. Nasce Blanca, filha de Esteban e Clara, representada por Winona Ryder. Esteban explora os camponeses, que são estimulados ao enfrentamento por Pedro, protagonizado pelo jovem Antonio Banderas. Blanca e Pedro vivem um romance desde a infância, com fortíssima oposição de Esteban. Terão uma filha, chamada Alba. Nos primeiros tempos em que viveu na “hacienda” Esteban violentou uma camponesa; nasceu um moço cheio de ódio (por razões óbvias, o pai não o reconheceu), também chamado de Esteban.

Esteban, o pai, é o retrato acabado do caudilho latino-americano. Trata os empregados com desprezo e violência. Mantém autoridade absoluta no lar. Comanda a família com a mão-de-ferro. Enriquece. Simula uma adesão absoluta à causa democrática, que confunde com a sua causa. Filia-se ao Partido Conservador. Abomina a esquerda. Assusta-se com vitória dos inimigos. Comemora o golpe militar, que pretendia livrar o país da esquerda.

Arrependeu-se. Com a perda da esposa, e depois com a prisão da filha, conclui que sua vida fora uma sequência de enganos. “Como pude estar tão errado” é frase pronunciada em momento de absoluta angústia e remorso. Revê seu apoio ao golpe militar e luta pela filha e pelo genro, que um dia desprezou e a quem tentou matar.

Do ponto de vista político a narrativa de Isabel Allende levada para o cinema é um relato insuspeito de um drama nacional, que alguns pretendem esquecer, por falta de memória, ou de conhecimento. O tema da luta de classes, inseparável de qualquer narrativa histórica com alguma pretensão de seriedade, é relatado de modo contundente na relação entre o caudilho e seus empregados. Esteban tratava seus camponeses no chicote. Herança maldita na história latino-americana.

Do ponto de vista da sequência das filmagens a reconstrução dos locais imaginários é de extremo bom gosto. O mise-en-scene é fascinante. Ainda que falado em inglês e filmado em Portugal e na Dinamarca, tem-se a nítida impressão de que estamos em Santiago ou em uma “hacienda” latino-americana. Do ponto de vista da construção do enredo todas as peças se acomodam perfeitamente. Percebam o nome das personagens femininas: Clara, que é mãe de Blanca, que é mãe de Alba. Trânsito é a meretriz que deve um favor a Esteban. Seu nome, Trânsito, é significativo nas partes finais do filme, quando se conecta com a exata ideia de transporte e movimento.

Do ponto de vista psicanalítico “A Casa dos Espíritos” retoma a vingança de um filho rejeitado. O silêncio perpétuo de Clara é também amplo para um estudo de caso. Os lapsos que cometia, ao não acertar o nome do suposto conde que queria a mão da filha, é ilustração potente da psicopatologia da vida cotidiana, como se lê nos textos freudianos. Do ponto de vista filosófico há uma profusão de falas, que fora do contexto soariam como clichês, mas que no contexto dos diálogos são expressivas: “morre-se de qualquer forma, a vida é rápida, tudo é rápido”. Essa sabedoria que retoma intuitivamente a sabedoria de fragmentos do Eclesiastes parece-me o ponto mais contundente que o filme provoca no espectador. Ao narrar a trajetória de um caudilho, com a exuberância de seu poder, com a ganância de sua impetuosidade, mas ao mesmo tempo denunciando seus limites e erros, “A Casa dos Espíritos” é a descrição de um drama político que se enlaça com um drama pessoal, que é recorrente em muitas culturas, em diferentes dimensões de tempo histórico: na história, os atores mudam, os personagens persistem. Nas palavras de Tocqueville a história é um original com muitas cópias.

O escritor russo Leon Tolstói propunha que o escritor seria universal se descrevesse sua aldeia. Ao descrever sua aldeia política, o Chile, Isabel Allende tornou-se uma escritora universal. Levada para as telas, com as interpretações imbatíveis de Jeremy Irons, Maryl Streep, Glenn Glose, Antonio Banderas e Winona Ryder, “A Casa dos Espíritos” comprova a qualidade da literatura latino-americana, especialmente quando o realismo fantástico instrumentaliza um acerto de contas com a história.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 12/04/2020
Reeditado em 13/04/2020
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