Uma mulher casada, de Jean-Luc Godard

Uma mulher casada, de Jean-Luc Godard

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

O crítico de cinema francês Alexandre Astruc (1923-2016) anunciava uma nova forma de pensar o cinema no contexto do que ele entendia como a “caméra-stylo”. Refiro-me a um texto que Astruc teria publicado originalmente em 1948 (Nascimento de uma nova vanguarda: a caméra-stylo). Nesse texto Astruc sugeria que a missão do diretor de cinema equivale ao encargo do escritor. À câmera do realizador de cinema a literatura contrapõe a caneta do autor (stylo). Um filme, assim, seria a construção de uma ideia, concentrada em um conjunto de elementos (fotografia, luz, maquiagem) compondo um universo de imagens e sons que combinam, formando um “misé-em-scene”. É o tema do cinema de autor.

Jean-Luc Godard, nome central da “nouvelle vague” francesa, ilustra essa concepção de cinema autoral. Godard é um franco-suíço que certa vez François Truffaut definiu como “cínico, anarquista, irreverente, trágico, romântico, irresponsável, clássico, inquieto e desconcertante”. Ainda segundo Truffaut, Godard dizia-se um pintor de letras, e que pretendia entrar na caverna de Platão iluminado pela luz de Paul Cézanne, pintor pós-impressionista francês. Truffaut rompeu mais tarde com Godard, porém tem-se a impressão que uma admiração de algum modo filial restou da relação.

Entre os filmes de Godard chamo a atenção para “Uma mulher casada”, rodado em 1964. No centro, a indecisa Charlotte, representada pela enigmática Macha Méril, então na plenitude de seus 24 anos. Macha nasceu no Marrocos, de uma família da aristocracia russa, o que lhe garantiu, por nascimento, o título de princesa. A revolução russa havia abolido essas posições, e a França também, muito antes, em 1789. No entanto, a majestade de Macha, na forma como atuava, lhe conferia ares de uma aristocracia da interpretação. Não duvide.

Filmado em Paris, inclusive com nostálgicas cenas de rua (uma delas com a Torre Eiffel no fundo), “Uma mulher casada” é o drama de uma mulher dividida entre dois homens, o marido e o amante. Grávida, não tem certeza a quem atribuir a paternidade. Quando Charlotte conversa com seu ginecologista uma série de questões de época (infelizmente ainda não resolvidas plenamente) são colocadas, a exemplo da contracepção. O médico lembra que a ciência havia avançado nessa área, em relação a animais e plantas, pouco fazendo, no entanto, em relação aos seres humanos. Um diálogo antológico.

Godard explora com lirismo as linhas corporais de Charlotte-Macha, com fotografias (P&B) de uma beleza que transcende à presença da atriz. Tudo é filmado com parcimônia e leveza. Há um respeito reverencial pela presença feminina. O diretor trata Charlotte-Macha com a adoração de um sacerdote para com sua personagem divina, o que contrasta com o modo como marido (um piloto de avião) e amante (um ator) tratavam a musa do filme.

Charlotte é indecisa em sua indecisão, o que revela um paradoxo de liberdade com (e sem limites) típico do existencialismo e da nouvelle vague, enquanto suposta representação iconográfica de alguns temas da filosofia nacional francesa do século XX. No fim, não se sabe como Charlotte-Macha se decide. Com quem ficou, ou com quem será, a lembrar-me de uma pergunta recorrente em aniversários de crianças. Afinal, é um filme cabeça, é Godard. O espectador que decida. E a vida segue.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 16/04/2020
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