Casablanca, de Michael Curtis

Casablanca, de Michael Curtis

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Pelamor! O cara vai desenterrar e comentar Casablanca! Sim. Casablanca, dirigido por Michael Curtis, rodado em 1942, no ano seguinte à entrada dos Estados Unidos na segunda guerra, é provavelmente o mais amado, o mais querido, o mais visto, o mais revisto, o mais comentado, o mais lembrado, o mais recomendado e o mais cult de todos os filmes cult.

Em Casablanca tem-se Humphrey Bogart (macho até o último rolo, na expressão de Ruy Castro), no papel de Richard Blaine (Ricky). Ricky é um novaiorquino que parece ter sido um soldado mercenário, fazendo filas com causas democráticas, negociando armas na África e lutando na guerra civil espanhola. Tem recaídas, e no mais das cenas só pensa em si mesmo, até que uma redenção ocorra. Vive no Marrocos, onde gerencia um café, no qual transitam personagens inesquecíveis, a exemplo do chefe da polícia local, do pianista (que nos toca As times goes by), do garçom doublé de contador, do barista e de uma enigmática tocadora de violão, que parece uma andaluza meio cigana que perambulava no deserto. Há também um batedor de carteiras e um vendedor de salvo-condutos.

O salvo-conduto era a mercadoria mais valiosa da cidade. Judeus, húngaros, tchecos, comunistas e todos os demais perseguidos nas regiões europeias dominadas pelo nazismo cruzavam o Mediterrâneo, passavam por Casablanca, obtinham o documento, seguiam para Lisboa, de onde partiam para a América. O sonho americano é o pano de fundo patriótico do filme, que de algum modo faz parte do esforço de combate ao nazismo.

É Hollywood contra Hitler, como se vê também em outros filmes também inesquecíveis (Confissões de um espião nazista, Tempestades d’Alma, Uma aventura em Paris, Horas de Tormenta, A Sétima Cruz, Os filhos de Hitler). O diretor, Michael Curtis, vinha de uma série de filmes de ação (Aventuras de Robin Hood, O gavião do mar, Canção da vitória).

Ricky vai em bem Casablanca até que um casal chega em seu café. Reclama que, com tantos bares no fundo, como é que vão parar logo no seu bar. Ilsa Lund (por Ingrid Bergman, mais linda do que nunca, sueca e à época casada com um dentista) e Victor Laszlo (Paul Heinreid) despontam no Café Américain. Laszlo fugiu de um campo de concentração, era um dos líderes da resistência contra Hitler, firme em seus ideais, o oposto do cinismo pragmático de Ricky. Mas preferimos Ricky, tão seguro de si, tão superior aos destinos humanos, ainda segundo Ruy Castro, que também nos explica que ao longo da filmagem de Casablanca Bogart vivia um inferno pessoal. Divorciava-se pela terceira vez. Conta-nos Ruy Castro que Bogie (permitam-me a intimidade) era fanático por casamentos, mas tinha um talento infalível para se casar mal.

Ricky e Ilsa foram amantes em Paris. Com a chegada dos alemães planejaram uma fuga. Ilsa deixou Ricky debaixo da chuva, esperando-a na estação de trem. Ela era casada com Laszlo, que suspeitava desaparecido. Laszlo é o eterno fênix, aquele pássaro mitológico que sempre ressurge das próprias cinzas. O filme se desdobra nos limites dessa triangulação. Ricky resiste a qualquer forma de perdão, embora sofra, na extensão da sua brutalidade, porque não é contradição se afirmar que os brutos também amam. Ilsa hesita, duvida, sonha com Ricky, mas admira Laszlo. É antológica a cena na qual Laszlo conduz a Marselhesa, abafando os alemães que cantavam do outro lado. Uma batalha de hinos: “Vive la France!”, conclui uma frequentadora. Laszlo também impressiona. Lê-se nos críticos que Ingrid Bergman não soube até a última cena com quem ficaria no fim do filme, isto é, com quem Ilsa tomaria o avião para Lisboa, naquela noite chuvosa e cheia de neblina.

O (bom) caráter de Ricky é um dos pontos que sustentam a narrativa, do ponto de vista moral. Ricky é um sentimental, e assim reconhece o chefe da polícia, um dos mais cínicos (e encantadores) caracteres hollywoodianos. O chefe da polícia mandou fechar o café, pressionado pelo general alemão, porque ali estavam jogando, no exato momento em que recebe o prêmio pelas apostas que fez... É um hipócrita, que toma água mineral de Vichy, a cidade francesa na qual estava o governo colaboracionista e entreguista do marechal Pétain, que também se vê em cartaz em uma das cenas do filme. Aliás, Casablanca é filme de estúdio, todo rodado em Hollywood, na Warner. Recriaram o norte da África com uma precisão ideal. Sente-se até o calor do deserto, transpira-se, ainda que tenhamos ventiladores nas cenas do café.

Em Casablanca, seu 46º filme, Bogie protagoniza uma inesquecível sequência final que reitera um caráter (bom) que faz de Ricky o “darling” e ao mesmo tempo o exemplo do homem de quem a vida reclama decisões. Ao fim do filme Ricky diz ao chefe de polícia que o que acabaram de viver era o início de uma longa amizade. Creio que se trata da frase mais icônica de Hollywood.

Lembro-me quando assisti Casablanca pela primeira vez. Foi o início de uma longa amizade, que aqui celebro 40 anos depois. Eu mudei, amadureci, lutei, venci, perdi, envelheci. Rever Casablanca é um modo de voltar no tempo, para um tempo onde a ingenuidade nos mostrava que a vida poderia oferecer longas e sinceras e desinteressadas amizades. Mas a vida é realista e a vida também nos nega sonhos. Essa metáfora se cristaliza em Ilsa Lund, que deixou Ricky a sua espera. Mas Ricky levantou a cabeça e seguiu em frente, mais de uma vez, na segunda delas revelando que podemos ser bem maiores do que supomos.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 17/04/2020
Reeditado em 17/04/2020
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