Eu, Daniel Blake, de Ken Loach

Eu, Daniel Blake, de Ken Loach

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Lançado em 2016 (no Brasil em 2017) “Eu, Daniel Blake” é um filme de impressionante realismo. O espectador tende a se convencer de que se trata de um documentário. Há casos de filmes que fazem proselitismo e propaganda, sob o guarda-chuva de documentário. E há também narrativas ficcionais que fazem o caminho inverso. Sob a forma de ficção o realizador Ken Loach alcança um patamar de objetividade que deve acompanhar documentários que se pretendem sérios. Seguiu esse segundo caminho, a narrativa ficcional que documenta a realidade. Acertou.

Em “Eu, Daniel Blake” o diretor Ken Loach, que estudou direito, fez um filme de denúncia contra o desmonte do estado de bem-estar social, o que muito nítido na tradição política inglesa, desde os anos de 1980. Loach levou a denúncia ao limite com “Você não estava aqui”. Nesse último atacou a uberização. Fotografou a precarização das relações de trabalho no contexto do processo da venda de sonhos e de promessas de ascensão profissional. Em “Eu, Daniel Blake” o diretor enfrentou a crueldade da burocracia e o desprezo para com o cidadão comum. Loach captou a violência psicológica que atinge o trabalhador. “Eu, Daniel Blake” levou a Palma de Ouro em Cannes. Merecidamente.

É a história de um habilidoso artesão, Daniel Blake (protagonizado por Dave Johns) que perdeu a esposa e que sofreu um ataque do coração. Pretendia receber uma aposentadoria, que foi negada pelas agências do governo inglês. A ele sugerem requerer o seguro-desemprego. Necessita solicitar o benefício. Todo o procedimento deve ser feito “on line”. Daniel Blake é funcionalmente despreparado. Não consegue avançar no pedido. Depende de ajuda e de computadores de bibliotecas. Um desespero.

Identifica-se com Katie (protagonizada por Hayley Squires), mãe de duas crianças, que vivia uma intensa penúria. Mal tratada e humilhada na agência da Previdência, conheceu Blake, que a ajudou. Nasce entre eles uma amizade cheia de afeto e de atenção. Serão afastados pelas vicissitudes da vida real, decorrentes do desespero de Katie. A fome a levou aos atos mais desatinados.

A luta de Blake com a burocracia tem dimensões kafkianas. É uma luta desigual. De um lado, um cidadão pacato, sereno, crente nas instituições. De outro, servidores públicos absolutamente desinteressados com os problemas reais enfrentados pelas pessoas que no limite as pagam para serem atendidas. Obrigam que um homem simples, que tudo anotava a lápis, organizasse um currículo nos moldes de currículos que se exigem de jovens que entram no mercado de trabalho. Cobravam fotos que comprovassem que Blake buscava um emprego, quando o celular que tinha era um aparelho simples, que tão somente prestava para realizar chamadas de telefone.

Blake vive um processo de constante pauperização. Na medida em que perde os recursos materiais é também ameaçado por uma desintegração moral, cujo núcleo fora a reação de Katie diante da pobreza que enfrentava.

É um filme muito real. “Eu, Daniel Blake” é de algum modo obrigatório para quem despreze o supremo valor da vida social, que predica na solidariedade que devemos uns aos outros, em seu aspecto geracional, o que justifica os modelos de previdência social, hoje sob forte desmanche. Também nos mostra a obrigação que servidores e serviços públicos tem para com a pessoa humana. Faz-nos pensar no futuro, avisando-nos para dias sombrios e cheios de dor. Ainda há tempo para uma tentativa de reversão dessa dramática situação. Preste atenção. Em alguns filmes de Loach há um cachorro manco que cruza alguma cena.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 24/04/2020
Reeditado em 24/04/2020
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