Jojo Rabbit, de Taika Waititi

Jojo Rabbit, de Taika Waititi

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Quando assisti ao trailer de “Jojo Rabbit” vi-me atormentado por uma certa confusão, que foi total quando finalmente assisti ao filme. O grande mérito de “Jojo Rabbit”, do neozelandês Taika Waitiki, consiste justamente, creio, em plantar no espectador a confusão à qual me refiro. Isto é, quais os limites da sátira? Há assuntos que não podem ser objeto de qualquer abordagem irônica ou maledicente? Retoma-se o conceito freudiano de tabu, que o pai da psicanálise em prefácio de 1913 identificou como um problema não esclarecido da psicologia dos povos?

Há alguma ligação entre o conteúdo satírico de “Jojo Rabbit” com os eventos de 7 de janeiro de 2015 quando em Paris houve o “massacre do Charlie Hebdo” ou, entre nós, com a polêmica sobre o especial de Natal do vídeo do Porta dos Fundos? O mérito do filme, parece-me, do ponto de vista ético e historiográfico, consiste na retomada dessas perguntas, originariamente em forma de tragédia e no filme episodicamente em forma de sátira.

Se esse problema central não for vencido o espectador cai na fragilidade do dilema maniqueísta do “gostei” ou do “não gostei”. Ainda nesse mesmo contexto, ético que se projeta no estético, “Jojo Rabbit” esbarra em várias passagens de difícil assimilação, a exemplo da banalização da violência ou - - principalmente - - das interpolações oníricas que o personagem central dividia com Hitler, não ingenuamente protagonizado pelo diretor do filme.

Necessário, antes, uma síntese da narrativa. Um menino, Jojo (protagonizado por Roman Griffin Davis) é engajado na Juventude Hitlerista, fotografada como um lúdico ambiente de brincadeiras juvenis. A mãe do menino (nada menos do que a badaladíssima Scarlet Johansson) resiste ao nazismo, conspira, recebe (e esconde) uma menina judia em sua casa, torce pela chegada dos aliados, que estão próximos. Jojo tem um amigo, Yorki, fofo de tudo, inocente, protagonizado por Archie Yates.

O instrutor do campo, o anárquico Capitão Klesendorf (Sam Rockwell) inspira o espectador, e lembra que há várias formas de resistência, e que nem toda resistência é heroica ou monopólio de mártires. Há várias formas de resistência e de militância. Klesendorf pode ser uma chave interpretativa da mensagem central, o que se reforça com sua dúbia relação com Finkel, seu por vezes efeminado subalterno, protagonizado por Alfie Allen. A narrativa se desdobra na relação (platônica) entre Jofo e a moça judia, Elsa, representada por Thomasin McKenzie, uma revelação da dramaturgia neozelandesa.

Ao mesmo tempo, tem-se o fim da guerra e a queda da Alemanha. Esse me parece um ponto importante, que moralmente merece uma consideração mais detida. Os sobreviventes não se reconhecem como nazistas, implicam que foram enganados, e que a responsabilidade é total do líder que até então seguiam sem ressalvas. O tema da culpa coletiva (estudado por Karl Jaspers, por Bernard Schlink e por Jurgen Habermas, entre outros) ocupa-se do modo como o fiel seguidor nega o líder, uma vez colocada com clareza a estupidez motivadora do proselitismo. Esse é um problema historiográfico de nossos tempos, quando se deturpa um passado comprovadamente bárbaro e cruel, misturando-se esquerda e direita, dulcificando-se o gosto amargo do sangue derramado e buscando-se desculpas onde há apenas vergonhas.

Expresso, assim, o motivo da confusão mental que o “Jojo Rabbit” me provocou. De algum modo questionei a oportunidade de se colocar nas telas esse tema, dessa forma, supostamente lúdica, em uma época na qual fragmentos de um pesadelo aliciam mentes propícias a abraçar agendas de ódio.

Tecnicamente, o “Jojo Rabbit” vai bem, isto é, pelo menos provoca. Tem-se a impressão de que os Beatles cantam “I want hold your hand” em alemão. Na cena final renasce uma canção de David Bowie. Cartazes espocam em alemão, há muitas suásticas, há um grupo de agentes da Gestapo que mais parecem judeus do tempo de Franz Kafka, e há um Hitler que por vezes parece o que certamente não foi. É o que me incomodou.

Não cabe ao resenhista e nem ao crítico supor o que o filme deveria ser. Deve-se opinar a partir do que o filme é. “Jojo Rabbit”, parece-me, é um filme desconcertante, que desafia a qualquer opinião mais apressada. Tem seus méritos. O principal deles, penso, é fazer pensar nesse problema de difícil solução, porque não sei, exatamente, os limites da sátira e da crítica, em face do sofrimento e das ideias mais profundas que carregamos, em forma de preconceito, de crença e de certeza falível.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 26/04/2020
Código do texto: T6928976
Classificação de conteúdo: seguro