1917, de Sam Mendes

1917, de Sam Mendes

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

1917, de Sam Mendes, sugere uma trajetória onírica de angústia. Que sofrimento. No meio da primeira guerra mundial dois rapazes (Blake e Schofield) são incumbidos de entregar uma carta para um comandante, com importante mensagem, que pode salvar a vida de muitos ingleses. Entre eles, o irmão de Blake. No caminho, cruzarão a linha inimiga. Os alemães combatem com ferocidade. O roteiro da entrega da carta, que mais lembra um sonho de angústia, é o fundo do pano desse filme que nos faz pensar e perguntar. Cinema também serve para isso. O pensamento criativo se formula em termos de perguntas, e não de respostas; essas não importam, as há para tudo. E nem tudo importa.

Por quê tanta barbaridade? O que levou uma Europa supostamente ilustrada e civilizada a um conflito de proporções tão fantasmagóricas? Seria esse o padrão civilizatório defendido pelas três pátrias do iluminismo, França (Voltaire, Diderot, Rousseau), Inglaterra (Adam Smith, Gibbon, Hume, Locke) e Alemanha (Kant, Leibniz)? Seria a guerra o predicado do paganismo moderno, a usarmos uma expressão de Peter Gay? Essas interrogações acompanham o espectador ao longo do filme, ainda que em forma de estranhamento para com tanta destruição.

1917, do ponto de vista filosófico e historiográfico, pode ser pensado em termos de um questionamento sobre a modernidade e seus valores. A modernidade identifica-se com valores relativos ao progresso, ao otimismo, à racionalidade, à busca de conhecimento científico, com efeitos positivos para a tecnologia, a sociedade e a política. 1917, em contrapartida, também identifica-se com a exaustão dos valores ditos modernos, apresentando o pessimismo, a irracionalidade, a desilusão relativa à possibilidade de alcançarmos um patamar civilizatório razoável.

1917 denuncia nossa falibilidade. Filme mais atual não há. Há quem queira a guerra, não se sabe contra quem, a todo custo, como se a violência resolvesse todos os problemas. A primeira guerra mundial é uma desculpa para um roteiro que problematiza nosso tempo, ainda que tratando de um tempo passado. “Esperança é algo perigoso”, diz um personagem. De fato, o realismo dessa figura, o mal humorado Coronel Mackenzie, resume-se em sua lembrança de que a guerra somente se encerraria quando uma só pessoa sobrasse. Quem sobrará? 1917 é também um discurso sobre as amizades que nascem e que se desdobram no Exército, um assunto que ocupa a tradição literária, desde Tucídides, quando narrou a guerra do Peloponeso, com estações na amizade entre Babba e Forest Gump.

Sam Mendes (que havia dirigido “Beleza Americana”, levando o Oscar de melhor diretor, e que foi casado com Kate Winslet) conta em entrevista que a narrativa de 1917 foi construída a partir de histórias que ouviu do avô. É um filme sobre a primeira guerra mundial. A opinião pública da época, 1917, acreditava que a guerra seria um conflito de curta duração e que resolveria todos os problemas do mundo. Enganou-se quanto à duração (foram quatro anos) e quanto à solução (vinte anos depois de seu fim guerreariam de novo).

A corrida colonial (as nações industrializadas buscavam mercados consumidores e fontes de matérias-primas) e o surgimento de novos estados (Alemanha e Itália) mudaram a geopolítica europeia, formatando uma política sistemática de alianças. De um lado, França, Rússia (até 1917) e Inglaterra. De outro, Itália, Alemanha e Áustria-Hungria. A Alemanha foi a grande perdedora. Humilhada no Tratado de Versalhes, irá a desforra vinte anos depois. 1917 é o anúncio de uma barbárie ainda maior.

1917 é um filme sobre a estupidez da luta. Schofield desqualifica as condecorações de guerra. Fora agraciado com uma medalha, que trocou por uma garrafa de vinho. Afinal, uma condecoração de guerra não passava de uma lasca de metal, pendurada por uma fita, que animaria uma viúva. Os cenários são realistas. Tem-se a impressão de que o filme foi rodado em ambiente limpo, com interpolações de computador. Engano.

A exibição do making-of, revela que a locação do filme foi devidamente trabalhada, inclusive com escavação e construção de trincheiras, ambiente no qual se ocorreu a maior parte do conflito. Também conhecida como a “guerra de trincheiras” ou “drôle de guerre” (guerra de mentira) a primeira guerra mundial se desdobrou, em sua maior parte, na angústia e indecisão das trincheiras. É tema de um clássico de Eric Maria Remarque (Nada de novo no front).

Um horror sem fim. Mutilados. Mortos presos em arame. Ratos. Carnificina interminável. Corpos boiando. Abutres. Uma boneca jogada no chão. Uma discussão sobre cerejeiras quebra o ritmo da violência. Água suja. Um balde de leite abandonado irá alimentar um bebê. Há momentos em que Sam Mendes parece se afastar do verossímil. Difícil acreditarmos que o jovem soldado conseguisse enfrentar (e vencer) todos os obstáculos. É o que matiza 1917 como a alegoria de um sonho de angústia.

Na “Interpretação dos Sonhos” Sigmund Freud afirmou que “os sonhos aparentemente inocentes revelam ser justamente o inverso quando nos damos ao trabalho de analisa-los (...) são (...) lobos na pele de cordeiro”. Entre os sonhos aparentemente inocentes eu classificaria os sonhos de angústia, ainda que desprovido de autoridade psicanalítica. Queremos ser vítimas, sempre. Nos sonhos de angústia buscamos o inalcançável. Pior, temos a impressão de que despertamos antes do desfecho da história produzida e revelada por nosso cérebro, ou por nossa alma, diriam os místicos. Sonhos de angústia não são nada inocentes, dizemos os céticos. 1917 pode confirmar essa premissa.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 18/05/2020
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