Wasp, de Olivier Assays

Wasp, de Olivier Assays

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

“Wasp”, do cineasta francês Olivier Assays, é um filme baseado em fatos reais, na perspectiva de livro reportagem escrito por Fernando Morais, escritor brasileiro nascido em Mariana. Os fatos se reportam a espiões cubanos infiltrados em Miami, que agiram de 1990 a 1998. O livro que descreve essa empolgante história é “Os últimos soldados da guerra fria”, publicado em 2011.

Com o objetivo de comentar “Wasp” retomo o caso dos espiões, em seguida trato sucintamente do livro, justamente porque essas informações são necessárias para compreensão da obra de Assays. Um filme belíssimo (sobremodo na fotografia recorrentemente azul do Caribe), mas que pode pecar, de algum modo, pela insuficiência de informações iniciais, o que confundiria o espectador que desconhece as linhas gerais desse caso. Por outro lado, pode ser também um mérito, na medida em que o enredo exige atenção, interpolações e deduções. “Wasp” é um filme destinado a um espectador inteligente.

Com a vitória de Fidel Castro e com o consequente fim da ditadura de Fulgêncio Batista os Estados Unidos hostilizaram sistematicamente o novo regime por meio de fortíssimo embargo econômico. Houve debandada de cubanos para os Estados Unidos. Organizaram movimentos anticastristas. Subsiste na Flórida uma importantíssima comunidade de emigrados forçados, cujo núcleo, do ponto de vista folclórico, é o bairro de Little Havana, a oeste do centro de Miami. Há uma interessante concentração turística na Calle Ocho: lindos murais, vendedores de charutos, um cheiro do “cortado cubano” (café) no ar, a par da inconfundível forma cubana de se falar espanhol.

Em 1980 houve uma emigração em massa de cubanos para os Estados Unidos, o chamado “êxodo de Mariel”. Cerca de 125 mil cubanos cruzaram o mar, partindo da baía de Mariel (de onde o nome). Com a condescendência do governo cubano, ao que consta, 20 mil criminosos cubanos se incorporaram à onda. Boa parte desses supostos criminosos, também ao que consta, eram opositores do regime. Vários grupos de refugiados cubanos planejam desde então com mais obsessão a queda do regime de Castro.

Mais tarde, com o desmonte da União Soviética, e com a consequente queda da ajuda russa aos cubanos, o governo de Castro enfrentou uma terrível crise. Cuba passa a ser um destino turístico, recebendo viajantes (europeus e canadenses em sua maioria) nas praias de Varadero e também em Havana. Nos anos 90 a resistência cubana organizou operações terroristas em Cuba, explodindo bombas em hotéis, desestimulando o turismo, com foco na queda da economia, e na consequente queda de Fidel.

O governo cubano reagiu, enviando agentes secretos para os Estados Unidos. Simulavam que eram desertores, infiltravam-se nessas organizações terroristas, iludiram inclusive agentes do FBI e enviavam informações para Havana. Vários atentados e várias detenções ocorreram, graças ao trabalho desses agentes infiltrados. O governo cubano tentou agir em conjunto com o FBI, confiantes no fato de que havia efetivo combate ao terrorismo. Pressionados pelos emigrados cubanos as autoridades norte-americanas desmantelaram as organizações de espionagem, prendendo a maioria de seus membros, que foram sentenciados a longas penas, inclusive de prisão perpétua.

Quanto ao livro, lembre-se em primeiro lugar que Fernando Morais é um profundo conhecedor da história cubana. Em 1976 publicou “A Ilha”, livro icônico e indispensável. Para escrever o livro sobre os espiões cubanos, Morais contou em entrevista que foram dois anos de intensas pesquisas. Esteve em Cuba, nos Estados Unidos, no México. Visitou as várias prisões de segurança máxima onde se encontravam alguns dos agentes condenados. Ao longo de um ano teria trabalhado com os dados redigindo o livro, em sua forma final.

O livro revela fatos notáveis. O escritor Gabriel Garcia Márquez teria levado correspondência de Fidel Castro para Bill Clinton. Castro alertava Clinton para os problemas que os Estados Unidos criavam ao permitir o preparo de atividades terroristas em território norte-americano. De fato, ao que consta, os pilotos terroristas que derrubaram as torres gêmeas treinaram na Flórida.

No núcleo do livro tem-se a história de cinco agentes secretos. Um deles (René) havia nascido nos Estados Unidos porque seu pai fora um jogador de baseball que jogou no campeonato norte-americano. Do ponto de vista literário, “Os últimos soldados da guerra fria” é um delicioso romance policial (baseado em fatos reais). É do nível de autores desse tipo de literatura, a exemplo de John La Carré, Ian Fleming, Frederik Forsyth, Graham Greene.

O filme conta com um excelente elenco. A madrilena Penélope Cruz protagoniza Olga Salanueva, esposa de um dos agentes. O venezuelano Edgard Ramiréz protagoniza Rene Gonzalez, cuja trajetória é o ponto narrativo que conduz o filme. O mexicano Gael Garcia Bernal faz o papel de Gerardo Hernandez. A cubana Ana de Armas faz o papel de Ana Maguerida Martinez. O brasileiro (soteropolitano) Wagner Moura está no papel de Juan Pablo Roque.

Há um perceptível acordo linguístico, na medida em que os falares madrilenos, venezuelanos e mexicanos devem se identificar com entonações cubanas. O brasileiro sai-se muito bem, reconhecendo-se que não é hispano falante apenas quando pronuncia a palavra “Angola”, o que não contamina a fala toda. Fala um pouco de russo também, em algumas cenas, o que o aproxima de Rodrigo Santoro, que protagonizou Malin, em “O tradutor”, um filme cubano de 2011.

A narrativa de Olivier Assays segue as linhas gerais de fatos efetivamente ocorridos, como contados por Fernando Morais. As sequências são rápidas e as personagens se sobrepõem, o que pode causar alguma confusão em espectadores acostumados com narrativas retilíneas. Como observado acima, “Wasp” destina-se a espectadores inteligentes. O filme inicia-se com René (Ramirez) despedindo-se de Olga (Penélope). René deserta e alcança os Estados Unidos. Herói para os norte-americanos e desertor (gusano, isto é, um verme) para os cubanos. René começa a trabalhar para os refugiados cubanos, auxiliando emigrantes cubanos que navegavam pelo Caribe com destino aos Estados Unidos.

Roque (Wagner Moura) chega a Guantánamo após nadar por nove horas. Na história real Roque não podia mergulhar profundamente - - porque havia tubarões - - e também não podia expor a cabeça - - temia ser metralhado. O filme segue com uma profusão de belas cenas e de fotografias idílicas. Há vezes nas quais o Caribe parece ser o centro da narrativa. Sequências em pontos distintos da região caribenha sugerem destinos cruzados e herança histórica maldita. René e Roque são insensíveis a tudo que transcende à causa. Roque casou-se nos Estados Unidos, e para desespero da esposa que abandonou, afirmou que o mais sentia falta dos Estados Unidos era seu Jeep Cherokee.

Assentados os personagens e os cenários o enredo se desdobra rapidamente. O espectador não se permite qualquer forma de desvio, de atenção e de foco. Muita informação para ser processada: tráfico de narcóticos, FBI, quem está do lado de quem, quem está contra quem, esposa e filha abandonadas, fidelidade e sinceridade de esposa, casamento glamoroso, charutos cubanos, Clinton, Fidel, comunidade de exilados cubanos em Miami, ruas de Havana, o Malecón, hotéis cubanos, bombas, balsas, ondas, aeroportos, prisões, traições. É de tirar o fôlego.

Os créditos, ao final, sugerem dúvidas e uma tremenda vontade de visitar os fatos reais, com a leitura (ou releitura) do livro de Fernando Morais. Muita coisa fica no ar. Ainda bem. É um filme, e não um relatório em forma de documentário. Com quais fundamentos a esposa de Roque processou o governo cubano? Como conseguiu parte dos valores que pediu? O que ocorre com as crianças? Em que sentido a política norte-americana pode ter fomentado tanta discórdia e incompreensão?

Tais perguntas revelam o encanto do filme. Creio que filmes que se baseiam em livros podem ser medidos na exata extensão em que provocam a leitura. E livros que se baseiam na vida real podem ser medidos na exata extensão em que nos chamam atenção para fatos que de outra forma passariam despercebidos, justamente porque não conseguimos saber de tudo, ao mesmo tempo. Principalmente, quanto o assunto é espionagem. “Wasp”, nesse campo temático, não tem concorrentes nos últimos anos.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 13/07/2020
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