O filme que levei 60 anos para assistir

O FILME QUE LEVEI 60 ANOS PARA ASSISTIR
Miguel Carqueija

Foi mais ou menos em 1960, pouco antes e pouco depois, que circulou nas bancas de jornal uma revista infantil denominada “Diversões escolares”. Diferente da maioria das publicações infantis não era de quadrinhos; havia, mas poucos. Ela apresentava artigos de cultura geral, apropriados para crianças e adolescentes.
Um desses artigos falava sobre Walt Disney, com alguns dados biográficos e alguns títulos que eu ainda não assistira. Segundo o texto, o primeiro desenho de Walt Disney havia sido “Chapeuzinho Vermelho”, de 1922.
Durante décadas eu nunca soube como poderia assistir esse desenho esquecido de um grande mestre do cinema. Aliás, como eu desconfiava, encontrava-se perdido, tendo sido encontrada uma cópia em 1998, numa biblioteca de Londres.
A obra é apresentada pela “Laugh-O-Grams” (risadas em gramas), a pequena empresa que Walt com Ub Iwerks e poucos companheiros organizaram em Kansas e que durou pouco tempo. Consta ser o primeiro filme “oficial” de Walt Disney, ainda que se saiba de alguns experimentais ainda anteriores.
O mais curioso neste desenho curto (6 minutos), mudo e em preto-e-branco, é que o conto de Charles Perrault foi adaptado para a vida moderna, com carros e aviões, e que o lobo foi substituído por um “homem mau”. Esta aliás é uma conhecida interpretação do real significado deste conto de fadas (sem fadas): o lobo simboliza o sedutor, o estuprador, e querer “comer” a Chapeuzinho quer dizer exatamente isso.
Surpreende a ousadia de Disney na década de 1920. A Chapeuzinho ´uma jovem adulta, pois dirige automóvel (ainda que movido a cachorro). O sedutor, sabendo que ela levava doces para a avó, antecipa-se à garota e, percebendo que a avó não estava, entra na casa e aguarda a chegada da neta. O detalhe da porta não travada é inverossímil, como muita coisa no cinema (ainda mais em desenhos), mas sigamos: o ataque sexual não é mostrado, mas a metáfora da casa pulando (e a palavra “Help!” no ar é evidente: luta encarniçada lá dentro). Isso pode parecer pesado para um filme infantil, mas nenhuma cena chocante é mostrada, apenas o recurso patusco da casa aos pulos. E Walt Disney, afinal, não era (felizmente) “politicamente correto”. O que cabe aos pais é alertar filhas e filhos de tenra idade para não confiarem em estranhos (assim a mensagem é válida).
Mas não ocorre estupro, é claro: o cachorro tem tempo de correr em busca de ajuda e consegue a do aviador que, vindo em socorro, joga um gancho e iça (sic) a casa, expondo o vilão.
Na parte inicial aparecem ainda a mãe de Little Red Riding Hood, preparando o lanche da mãe (e por que a avó moraria sozinha, ninguém jamais explicou) ajudada por um gato da casa, identificado como Julius the Cat, tido como o primeiro personagem fixo de Disney, que apareceu muitas vezes na série “Alice” e hoje está esquecido.
No youtube agora existe um vídeo do canal Lincolns, a “Sessão Lincult”, onde Reginald Lumière (um boneco tipo “muppet”) faz uma introdução e um apêndice com algumas explicações e fotos, no meio o desenho de Walt Disney.


Resenha do desenho animado “Little Red Riding Hood” (Chapeuzinho Vermelho). Laugh-O-Grams, Estados Unidos, 1922. Duração: 6 minutos. Produção e direção: Walt Disney. Animação: Rudolph Ising, Carman Maxwell, Ub Iwerks, Hugh Harman, Otto Walliman, Corey Tague. Estréia em 29 de julho de 1922.

Rio de Janeiro, 31 de maio e 1º de junho de 2021.