Notas sobre o filme "Close", de Lukas Dhont.

É na infância que tecemos nossa primeira rede de afetos. Também é na infância que experimentamos nossas primeiras dores. O mundo adulto olha para a infância com certo tom de romantismo, de idealização, como o tempo das coisas fáceis e simples, talvez porque não suportemos a ideia de revisar nossas próprias origens, revisitarmos as crianças que um dia fomos, sobretudo pelo medo de nos depararmos com a origem de muitas das nossas mais profundas cicatrizes. É aquele, afinal, o momento dos nossos afetos primários, com o perdão da expressão e a licença dos colegas e amigos da psicologia. É lá que fundamos o substrato de nossas emoções e sentimentos, que estabelecemos, de forma muitas vezes confusa, sem grandes ferramentas e nenhuma experiência, a primeira medida dos nossos afetos, que rabiscamos a primeira régua com que medimos emoções, nossas e dos outros. Não que nossa infância nos determine ou condicione inexoravelmente em todas as nossas relações futuras, mas fato é que tão logo adentramos na tão esperada “vida adulta”, nos entregamos completamente ao mundo, com suas determinações, convenções e cobranças, deixando de vez de lado, abandonada e esquecida, a criança que um dia fomos. Passamos a crer na ilusão da maturidade e no equívoco de que a partir de então seríamos exclusivamente orientados pelas emoções e sentimentos da vida e da experiência adulta. Opomos, então, ao suposto mundo da inocência e da pureza a aparente complexidade da vida real, com seus boletos, seus conflitos e expectativas frustradas como suposta prova de nossa maturidade e responsabilidade. A verdade é que a infância talvez seja, ao fim e ao cabo, muito mais complexa do que gostaríamos de admitir às nossas versões crescidas e, não importa o que façamos, jamais superaremos as crianças que um dia fomos.

Com essa rápida reflexão introdutória é que gostaria de fazer aqui um breve comentário ao filme Close, produção belga lançada em 2022 e recentemente exibida nos cinemas brasileiros. Sem qualquer pretensão de promover uma análise aprofundada, escrevo essas linhas não como crítico de cinema, mas como um mero expectador, um entusiasta de histórias e como alguém que, como qualquer um de nós, um dia também foi criança. Porque esse é, afinal, o convite que o filme nos faz, o de revisitarmos nossas próprias infâncias.

A história se desenvolve a partir de dois personagens infantis, Leo e Remi, e da bela amizade entre duas crianças. A trama se inicia, com delicadeza e sensibilidade, com sequências de cenas dos dois jovens, sempre juntos, experimentando a pureza de um amor genuíno e descomplicado, vivendo entre os vastos campos de flores cultivados pela família do primeiro e o acolhedor lar do segundo, dividindo histórias, sonhos, risos e demonstrações de afeto e carinho. Um mundo povoado pela imaginação e pela fantasia. Remi, um jovem criativo e sensível, sonha em se tornar instrumentista e ensaia lições de oboé na companhia do amigo, que o estimula e incentiva planejando sua carreira e idealizando vê-lo um dia transformado um grande músico. O olhar de Leo transborda uma admiração profunda e autêntica, um encantamento e brilho nos olhos que chega às lagrimas quando vê o amigo apresentar-se diante de uma orquestra. Longe dos olhos do mundo e com a cumplicidade de pais amorosos, vivem um afeto em estado de pureza, sem culpa nem vergonha, sem forma nem denominação, são apenas grandes amigos que se gostam.

Mas a dinâmica entre os dois amigos altera-se radicalmente quando chegam à escola e iniciam uma nova etapa de suas vidas entre adolescentes já marcados por preconceitos. Mais do que isso, aquele é um local atravessado pela competição, pela disputa, e por dinâmicas de violência física ou simbólica. Acostumados às trocas desinibidas de carinho, ao cuidado mútuo, à espontaneidade de uma relação íntima e verdadeira, o afeto entre os dois meninos imediatamente chama a atenção dos demais colegas. Espelhado no microcosmo escolar o mundo adulto prontamente apesenta aos recém-chegados seus impedimentos e proibições. Assim dão-se conta dos olhares alheios, tendo de lidar com julgamentos, censuras e até deboches. Estranhamente, é o afeto que gera escândalo e não as demonstrações de agressividade ou desrespeito.

Pela primeira vez o afeto dos dois jovens é nomeado, sua relação é categorizada, impondo-lhes um rótulo que, apesar de sua relativa inocência, já sabem ser depreciativo e excludente. Remi silencia, Leo tenta argumentar, não são namorados, não são viadinhos, são apenas amigos que se gostam e que trocam afeto porque são quase como irmãos. Esse é o mundo que nos ensina, muito precocemente, a termos vergonha de nossos sentimentos, a escondermos ou mesmo evitarmos o carinho, seja com nossos amigos, nossos irmãos, até mesmo com nossos próprios pais. Aprendemos e assimilamos assim, uma das mais tristes perversões humanas, a de sufocar ou maliciar permanentemente os afetos. A perda da inocência e da pureza, a renúncia à espontaneidade é um dos muitos preços pagos como ingresso no mundo adulto. Tais qualidades, antes tão exaltadas como características da infância, são a partir de certo momento vistos como um obstáculo a ser eliminado.

Os olhares estão permanentemente sobre eles e, especialmente Leo sente e sabe-se vigiado. Em uma tarde no pátio, sob um sol quente, Remi, talvez por desatenção ou indiferença, deita-se sobre a barriga de Leo que nega acolhimento ao amigo, rejeita o toque e vira-se de lado. Diante da insistência, a desculpa oculta a vergonha e justifica-se no calor. Na mesma noite, travam pela primeira vez ao longo da história uma briga não por disputarem onde cada um dorme, mas por não mais conseguirem dividir, sem culpa ou embaraço, a cama que antes, simplesmente, dividiam como irmãos.

Tentando encontrar acolhimento e aceitação entre seus pares, esbarram em complicações e entraves. Assim é que sua amizade entra em choque, em rota de colisão com as imposições rígidas de condutas e com os papéis sociais. Diante da impossibilidade de serem aceitos como tal, são colocados frente a um dilema. O sentimento, outrora desimpedido, agora é causa de um profundo conflito interno, sentido de forma distinta por cada um dos meninos. Temendo a exclusão e o desprezo, Leo busca aproximar-se dos colegas, mas sabe que isso lhe exige algo, ou aceita a alcunha ou rejeita o afeto. A troca parece justa e compensatória, ainda que implique numa renúncia à amizade vivida com Remi. Sua escolha, porém, está feita, embora desconheça seu alto custo e a consequências sua decisão. O que Leo talvez ainda não saiba é que aquele vínculo tão espontâneo e autêntico, não pode ser vivido ou experenciado pela metade. De outro lado, Remi tem ainda mais dificuldade de se enquadrar e se ajustar ao papel que lhe é imposto. Talvez a verdade seja que ele sequer se importe e justamente por isso é que não compreende a escolha e a transformação do amigo.

Outro detalhe chama a atenção no filme, a gradual mudança dos personagens. Vemos a figura de Leo perder aos poucos a doçura e a delicadeza que antes expressava tão livremente ao amigo. Os cortes de cenas, marcam essa cisão, alternando entre momentos de introspecção e conflito, sintomas confusos de sensibilidade reprimida, para as cenas de um Leo que agora chuta bola com os novos amigos, conversa sobre futebol e joga hóquei. Embora pareça feliz e plenamente ajustado ao novo personagem, ainda procura pelo amigo, embora incapaz de confessar a saudade.

Curioso notar como os sentimentos verdadeiros, que tanto idealizamos nas artes e na ficção, causam no mundo real tanto espanto e escândalo, afinal representam ousadia da experimentação de afetos que não aceitam domesticação, que não se submetem a regras de conduta ou se curvam às determinações sociais. Talvez por isso, passemos a vida toda nos enganando de que os procuramos quando na verdade fugimos deles ao menor sinal.

E assim a trama adentra em uma camada mais profunda do conflito, a impossibilidade de falar dos afetos, de confessar a quem gostamos o que sentimos e mesmo suas complicações. Súbito abate-se entre eles um silêncio total. Ambos sabem da razão do distanciamento, conhecem os impedimentos ocultos, mas aprendem a silenciar de quem se gosta os sentimentos e dores. Tudo é velado, proibido, censurado. Leo sabe e não desconhece a dor do amigo, mas aceita a lógica torta e perversa segundo a qual na vida, às vezes, seria natural ou mesmo necessário fazer sofrer a quem se ama em nome de nossa própria preservação. Onde antes havia comunhão e cumplicidade há agora antagonismo.

A rejeição incompreendida aflora num rompante de fúria inesperado do delicado Remi que, confuso diante dos próprios sentimentos, explode contra o amigo em pleno recreio. Entre gritos e socos, lágrimas escapam dos olhos de Remi. Não chore, pede Leo, constrangido e envergonhado diante dos olhos do colegas que contemplam aquela cena incompreensível. O destino, porém, está selado. O silencio é sacramentado pela morte repentina, abrupta e trágica do pequeno Remi.

Aqui aliás, cabe recuperar a premissa inicial do texto, a de que sentimentos juvenis seriam menos complexos, menos profundos, menos verdadeiros. A essa altura, alguém seria realmente capaz de concordar? O dilema, inclusive é sentido com ainda mais intensidade na medida em que, quando crianças, muitas vezes sequer sabemos ou conseguimos nomeá-los, tampouco compreende-los. Esse é um luxo que muitas vezes nem a velhice é capaz de proporcionar a todos.

E não se trata de tomar por parâmetro uma história de ficção. Claro que o dilema sofrido e sentido por Remi o leva a um grau de desespero capaz de justificar, na história, um ato impensável, uma solução “extrema”, por sorte infrequente na juventude. Contudo, não resta dúvidas que a repressão dos afetos é um dos primeiros aprendizados de nossas vidas. Uma imposição, muito mais que um aprendizado, de elevado custo que pode sim levar a resultados trágicos, mesmo quando não mortais. De todas as tragédias da vida e perversidades do mundo, essa é talvez nossa primeira tragédia pessoal e ainda que a vida real não chegue, como regra, à radicalidade da experiência de Leo e Remi, o filme deixa no ar a pergunta: quantas pessoas não deixamos morrer em nossas vidas ou o quanto de nós mesmo não permitimos que morra com elas?

O filme segue após a reviravolta. Diante da morte do melhor amigo, Leo reage estranhamente apático, com aparente frieza e insensibilidade, incapaz de elaborar o luto e até mesmo, de chorar. Fecha-se visivelmente em sua dor, uma dor amargurada, assombrada pelo peso da culpa que sente e também cala, fugindo cada vez mais para o mundo e para a vida que escolheu aderir. A família e o lar amigo que antes o acolheram, são agora evitados. Torna-se arredio até mesmo aos seus próprios familiares. Recusa-se a falar sobre o amigo nas atividades da escola, mergulha em novas tarefas e atividades, esperando que o sofrimento e a tristeza desapareçam.

Mas, mesmo com todo esforço e resistência, sua sensibilidade ainda aflora em momentos de solidão, na contemplação da mãe de Remi, na lembrança permanente da figura do amigo, no silencio que paira inevitável, ainda que interrompido por uma partida de hóquei. O desconforto nos assalta, os cortes provocam, também em nós, expectadores, um incômodo, seja com o silencio perturbador do menino ou com o barulho abrupto de alguma cena agitada. Na plateia da sala de projeção, sente-se o mesmo silêncio absoluto, apenas quebrado pelo som de algum marmanjo ou marmanja irrompendo em lágrimas. Sentimo-nos todos provocados, lançados em nossos próprios silêncios profundos. Para onde vão o choro que silenciamos e as lágrimas que desde pequenos aprendemos a segurar?

O mundo, muito cedo, nos ensina a reprimir nossas emoções. A ilusão de nos tornarmos supostamente “fortes” impõe a todos nós um alto custo e um preço que nunca podemos pagar sem o sacrifício de nós mesmo. A fragilidade deve ser escondida, o sofrimento, evitado, o luto silenciado, a dor, contida. Homens não podem chorar. Talvez seja isso o que Leo pense e sinta depois de entender e experimentar na pele a impossibilidade do afeto, a censura da sensibilidade. Talvez por isso é que não chore. Mas, a verdade é que com o tempo, esse comportamento, grosseiramente confundido com força (ou até amadurecimento) nos leva à insensibilidade, à indiferença, à brutalidade, e a ainda mais sofrimento reprimido. Esse é mais um dos grandes enganos que a vida adulta nos condiciona.

Mas Léo é certamente jovem demais para ser capaz de entender e lidar com tanta coisa, e de fato não parecerá a nenhum de nós justo que tenha de passar por tudo isso. Acima de tudo, Leo não é um vilão, é um garoto e para ele ainda há possibilidade de redenção. A queda em si vem de forma literal. O braço quebrado, a dor experimentada, fazem-no confrontar com o sofrimento físico e com a autorização do pai para o choro: “tudo bem, filho, quebrar um braço é mesmo dolorido”. Talvez a dor do membro quebrado, o faça confrontar-se com o afeto partido e com a partida do amigo, que certamente estaria ao seu lado. Na dor especialmente é que dá-se conta da falta e confessa pela primeira vez, ao irmão em sua cama, a saudade que sente, infelizmente agora irremediável. Ainda, abre a possibilidade de vazão do choro engolido e reprimido que explode em uma confissão dolorida e recebe o abraço e o consolo da mãe de seu grande amigo. Essa é a redenção de Leo, simbolizada delicadamente no gesso que se parte e que devolve lentamente a mobilidade do membro antes imobilizado pelas apertadas ataduras. O luto de Leo aparentemente se resolve, não sem cicatrizes internas. Esse sim, é um aprendizado real e valioso da vida. Apesar da juventude e mesmo com o trauma, Leo é capaz de resgatar sua sensibilidade, ainda que ferida, machucada. Essa é a lição que o jovem personagem nos deixa.

Se todos nós chegamos ao fim da infância com afetos partidos, cicatrizes e membros quebrados, literal ou metaforicamente, não precisamos, nem devemos carregar indefinida e silenciosamente nossas dores, sufocar nossas lagrimas e reprimir nossos afetos, tampouco devemos temê-los ou evitá-los. Sempre será possível a todos nós a chance de recuperarmos e resgatarmos nossa sensibilidade e doçura. Se houve para Leo, também haverá para nós.