Ficção e crença em "A Garota Ideal"

O filme "A Garota Ideal" (EUA, 2007), do diretor australiano Craig Gillespie, aparentemente veste-se como uma comédia ingênua, mas não se engane. Ele é um drama de cunho psicológico que toca de forma simples, mas muito eficaz, num aspecto peculiar da natureza humana (por psicológico e óbvio inexistente nas outras espécies animais) que subjaz às nossas ações cotidianas hodiernas: o quanto estamos dispostos a nos influenciar pela ficção, independente de que ela venha pelo entretenimento ou pela religião? Haverá diferença entre essas duas influências? (tema caro para mim, pois o abordei no último capítulo da minha dissertação de mestrado)

O psicólogo canadense Steven Pinker conta um episódio da antiga série de televisão "Além da Imaginação", bastante semelhante no tema abordado: "James Corry está cumprindo uma sentença de cinquenta anos em confinamento solitário num árido asteroide a 15 milhões de quilômetros da Terra. Allenby, capitão de uma nave de suprimentos que abastece o asteroide, compadece-se de Corry e lhe deixa uma caixa contendo 'Alicia', um robô que pensa e age como uma mulher. No começo Corry sente repulsa, mas é claro que logo se apaixona perdidamente por ela. Um ano depois, Allenby retorna trazendo a notícia de que Corry fora perdoado e que estava lá para levá-lo embora. Infelizmente, Corry só poderia levar sete quilos de bagagem, e Alicia pesa mais do que isso. Quando Corry se recusa a partir, Allenby, relutante, saca uma arma e dá um tiro no rosto de Alicia, deixando à mostra um emaranhado de fios fumegantes. Ele diz a Corry: 'Tudo o que você está deixando para trás é a solidão'. Corry, arrasado, murmura: 'Eu preciso me lembrar disso. Nunca posso me esquecer disso'". (1)

Lars Lindstrom (ator Ryan Gosling), por ter perdido os pais cedo, nunca se recuperou do trauma da perda e, embora aja como um adulto normal e trabalhe num emprego normal, não consegue se relacionar muito bem com seu irmão Gus (Paul Schneider) e a cunhada Karin (Emily Mortimer) que lhe dão abrigo na garagem da casa e fazem tudo que podem para integrá-lo à família. Por excessiva timidez, Lars também não se interessa pelas mulheres à sua volta que se insinuam para ele. Ao ser instigado por um colega, resolve comprar pela Internet uma boneca sexual (chamada "real doll"), uma variação evoluída das antigas bonecas infláveis. O seu objetivo, porém, não é fazer sexo, mas ter alguém para lhe fazer companhia e com quem conversar.

Ao apresentar a boneca "Bianca" aos parentes e amigos, não percebe o ridículo ao qual se expõe perante a pequena comunidade. Isso porque ele está, de fato, alheio a isso (a todo o ridículo da situação) por estar totalmente engajado na realidade paralela que criou para si e para a boneca. Ao conversar com a boneca, ele se desdobra em duas personalidades, uma sendo ele próprio e a outra sendo a boneca como ele gostaria que ela lhe respondesse. Com a comunidade disposta a ajudar Lars, todos passam a tratar Bianca como uma mulher real, embora por trás sintam pena do iludido. Mas é dessa forma, modulando a personalidade da boneca conforme seus desígnios e o mundo à sua volta compactuando com ele a sua ilusão, que ele pode enfim recuperar a sanidade.

Para quem vai rir da história e é religioso, cabe fazer uma autocrítica para ver se, ao fazer reverências a estátuas ou figuras religiosas, não está agindo tão enganado como Lars diante da sua boneca (como fazer um santo ou um espírito responder-lhe como gostaria que estes lhe respondessem).

Qual a diferença entre Lars reverenciar a sua boneca, considerando-a real e você reverenciar a estátua de um homem pregado a uma cruz no altar da sua igreja, considerando esse homem um ser real que lhe vai responder como você quer que ele lhe responda? Portanto, não ria de Lars, a não ser que você seja um cético ou um ateu (eles podem).

PS: O filme encontra-se, por prazo limitado, na seção "Cinema #emcasacomsesc" da plataforma gratuita Sesc Digital.

(1) PINKER, S. "Como a Mente Funciona". Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998 (p. 70-71)

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 05/02/2024
Reeditado em 20/02/2024
Código do texto: T7992340
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