Globalização e fluidez

Referência:

BAUMAN, Zygmunt. "Globalização: as consequências humanas." Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

Globalização, eis a ordem do dia. Uma palavra que se transforma em lema, numa expressão mágica que, quanto mais se tenta explicar, mais opaca ela se torna. As práticas humanas que o termo tentava conceituar saíram do alcance da vista e por isto Bauman tenta apresentar o fenômeno da globalização como um processo cujas raízes e conseqüências podem ser percebidas, se for dissipada a névoa que o envolve. A questão está em se analisar este movimento a começar da noção espaço/tempo que ele implica acentuando diferenças inclusive em relação à sensação de mobilidade.

Há um confronto entre ser “global” e ser “local” a compor o movimento e o conflito nesta atualidade, gerando segregação espacial entre uma elite extraterritorial e uma população territorialmente localizada, dando força à primeira em face da produção de significado e valor ser hoje fruto emancipado de restrições locais, permanecendo num centro extraterritorial, também a formar uma dinâmica que fornece padrões diferenciados entre relações, como, por exemplo, normais e anormais em face da margem da lei. Dissecar tal dinâmica também é função do livro.

O objetivo principal do trabalho, porém, é produzir discussões a partir de perguntas que formula, buscando solucionar o maior problema da civilização moderna que é justamente não se questionar.

As perguntas são possíveis de serem extraídas a partir de cinco dimensões, que representam os cinco capítulos do livro. O desenvolvimento sócio-produtivo provocou a “Grande Guerra de Independência” em relação ao espaço, com o inexorável deslocamento dos centros de decisões para longe das localidades, fazendo com que as companhias, as empresas e a própria produção passassem a pertencer aos investidores e não mais às pessoas diretamente relacionadas, bem como à localidade onde se sediavam. Tal guerra espacial, que permitia aos investidores decidir o melhor espaço para a empresa deixava como herança àqueles que permaneciam no espaço anterior as conseqüências de lamberem feridas e consertar danos. O poder das decisões, que envolvem capital, flutua livremente sem restrições, sem amarras administrativas ou tributárias, sem “alteridade” (confronto com o “outro” que daria limites ao capital). Há uma superliquidez que fluidifica operações, permitindo ao capital se mudar sem maiores compromissos. As distâncias já não importam, as fronteiras geográficas são quase insustentáveis, “longe” já não é mais um dado objetivo, impessoal, físico. A mobilidade daí decorrente desencadeou um solapamento das totalidades sociais e culturais, representada pela fórmula de Tönies de que a modernidade representava a passagem da comunidade (Gemeinschaft) para a sociedade (Gesenschaft).

O principal fator técnico da mobilidade foi o transporte da informação, muito mais veloz e de baixos custos, contribuindo vigorosamente para a quebra da noção espaço/tempo e permitindo uma polarização diferenciada da anterior entre “ricos e pobres” ou “capitalistas e trabalhadores”. A atual polarização pode ser descrita como o confronto entre “extraterritoriais” e “locais”. Os primeiros não têm distâncias, atuam num tempo diferenciado quase imediato, enquanto os últimos estão irremediavelmente presos ao lugar onde seus pés se firmam. O conflito se descreve pelo isolamento dos primeiros em suas casas, locais de trabalho, veículos, permitindo sensação de liberdade experienciada de outra forma, num outro modelo. São “livres” daqueles que estão “presos” e não há espaço melhor para isto do que o ciberespaço. O território urbano é mero local de sobrevivência, o verdadeiro local de vivência é o virtual, desde que se possa pagar por ele. Não havendo mais local para trocas, para diálogo, perde-se toda visão comunitária e o âmbito do normal transmuda-se do discurso cotidiano para o discurso do isolamento. Normas são dadas de cima e não mais nascem do seio social, dos “costumes” locais. O “ethos” deixa de ser fruto da tradição, pois agora pertence a regiões elevadas, distantes jamais questionadas. Os padrões de comportamento, as normas não sintetizam mais o anseio da nação, porém são concebidos em esferas desligadas da vida local e que no máximo podem redundar em mais sofrimento do que alegria para aqueles a que se destinam.

A medida do espaço, eis a grande questão que inicia a problemática aqui tratada. O que era dado antes tendo como relação o corpo humano, na modernidade é tratado objetivamente por meio de um conjunto arbitrário de medidas que calculam distâncias. A necessidade de medir tais distâncias em face das práticas humanas e encontrar um padrão comum com finalidades políticas exige tal objetivação. O Estado moderno é fruto da necessidade da unificação de medida objetiva do espaço, para que se possa estabelecer o que está “dentro e fora”, “perto e longe”. Com isto, são substituídas todas as práticas locais por práticas administrativas como único ponto universal de divisões do espaço. A noção de soberania nasce da objetivação do espaço e de sua subordinação a um mapa que permitisse o controle daquilo que ocorria naquela porção espacial de modo impessoal, a fim de funcionar para qualquer um que exercesse tal controle.

O mapeamento permite fiscalização do espaço do mesmo modo que o Panóptico de Foucault, no qual aqueles que dentro são colocados sentem-se vulneráveis à visibilidade dos que estão fora. Porém, a pós-modernidade permite outro mecanismo de controle: o Sinóptico, no qual muitos vigiam poucos como ocorre nos meios de comunicação de massa. Enquanto o Panóptico força as pessoas a ficarem numa posição a serem vigiadas, o Sinóptico seduz as pessoas à vigilância, mas uma vigilância controlada, jamais universal, apenas aparentemente global. “Globais” são aqueles que podem ser observados como, por exemplo, as celebridades e o são pelos locais. No Panóptico havia a necessidade de inserir os vigiados no espaço de observação, no Sinóptico, os vigilantes querem ser inseridos no espaço de observação, mas ficam restritos ao seu respectivo espaço local, de onde podem, de acordo com seu poder de consumo, alcançar maior ou menor posição de vigilância.

Se a velocidade da informação alcança valores vertiginosos, se o espaço perde sua referência, se o Estado perde a soberania em virtude da transnacionalidade dos fenômenos socioeconômicos, se todos se tornam vigilantes, quem afinal está no controle?

Ao que parece, ninguém agora está no controle, pois talvez nem se saiba mais o que é estar no controle. Não há mais nenhuma localidade com arrogância bastante para falar em nome da humanidade, embora ecoem alguns gritos renitentes. Não há sequer uma questão única que possa captar e teleguiar a totalidade dos assuntos mundiais e impor a concordância global.

Esta nova e desconfortável percepção das “coisas fugindo ao controle” é que foi articulada, em que pese o pouco benefício à clareza, no conceito de globalização.

O significado mais profundo de globalização é transmitido pelo caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais; não há centro, não há painel de controle, não há gabinete administrativo, não há sequer um tema para dirigir o discurso moderno.

Diferentemente de “universalização”, que trazia a idéia de produzir ordem a ser aceita por todos em conjunto com tal esperança e intenção, o termo “globalização” refere-se principalmente a efeitos e não a iniciativas ou empreendimentos globais. Não diz respeito ao que fazer, porém ao que está acontecendo a todos. Por isto, o Estado, organização territorial e soberana, que dizia a todos os seus integrantes o que fazer, que ordenava seu setor no mundo perdeu sua força.

A linha de maior desaprumo foi a da economia que gradativamente cedeu seu comando ao livre mercado, escapando pouco a pouco do controle político. Ao Estado na esfera econômica restou apenas a exigência de assumir um orçamento equilibrado. Diante desta tarefa, o suposto paradoxo do nascimento de “novas soberanias estatais” não é real, pois um Estado fraco permite em seu território maior controle e, aos olhos externos, colabora na produção de orçamentos adequados. A globalização e a fragmentação política são aliados íntimos e conspiradores afinados, formando em diversas dimensões processos complementares.

Processo com o qual todos colaboram ao permanecerem em constante movimento, anulando distâncias com auxílio tecnológico dos meios eletrônicos, mesmo estando no mesmo lugar. A globalização arrasta as economias para a produção do efêmero, do volátil e do precário. Os bens, serviços e sinais devem despertar desejo e, para isso, devem seduzir ao máximo os consumidores possíveis e reduzir competidores, num constante e ininterrupto movimento.

Nossa sociedade é a sociedade de consumo, embora desde sempre toda criatura viva, todo ser vivente tenha sempre consumido. “Consumo” na sociedade moderna se opõe à idéia de “sociedade de produção”, aquela sociedade baseada na necessidade de mão-de-obra de industrial em massa. Hoje, a condição de cidadania é ser consumidor, é este o principal papel ensinado, praticado e exigido, como prioridade social sobre qualquer outra. O consumidor na sociedade de consumo é diferente da figura do consumidor em outro modelo social, sendo sua regra não mais o “pacta sunt servanta” mas o “rebus sic stantibus”. Não há compromissos, não há mais “até que a morte os separe”, tudo possui “até uma segunda ordem”. É o império da volatilidade, da temporalidade interna não voltada para si, mas da temporalidade do si voltada para o limite da conveniência do objeto consumido. A temporalidade dada pelo consumo instantâneo, que satisfaz imediatamente, encerrando-se sua necessidade não pelo uso, mas pela simples aquisição.

Concentrados apenas em tal aquisição, os consumidores não prestam atenção ou se concentram no mesmo objeto por muito tempo e este se torna reduzido ao instante que se esvai no momento do próprio consumo. O movimento, assim, é extremamente ágil e constante. O consumidor não pode parar, seu desejo deve voar com a esperança de encontrar a satisfação na próxima aquisição e o resultado é que o desejo não aceita mais satisfação e sim o contínuo desejo. Os consumidores não podem descansar, precisam estar alertas e acordados, num estado de inalterável excitação. O consumidor é pessoa em movimento, fadada a mover-se sempre.

Todos podem ser lançados na moda do consumo, todos podem desejar ser consumidores, mas nem todos podem ser um consumidor. Todos estão condenados à vida de opções, mas nem todos podem ser alçados à condição de optantes.

A sociedade de consumo, como todas, é também estratificada e a classificação em estratos se dá pelo grau de mobilidade, ou seja, pela possibilidade de escolher onde e principalmente quando estar (mesmo sem sair do lugar físico). Os da classe elevada vivem no seu tempo e sem espaço, pois transpõe qualquer distância, enquanto os da classe baixa vivem no tempo de seu espaço, pois estão imobilizados por suas circunstâncias. Os primeiros se encaixam no paradigma do “turista” e os últimos no do “vagabundo”. Os turistas se movem porque acham o mundo a seu alcance – global – irresistivelmente atraente, enquanto os vagabundos se movem porque acham seu mundo – local – insuportavelmente inóspito. Porém, turistas e vagabundos são faces da mesma moeda, ambos são consumidores, ambos buscam emoções em experiências sentidas, observadas e não sofridas. Embora componham alter egos recíprocos, o turista quer se ver livre do vagabundo, por causa do receio da possibilidade de se tornar um deles, ao mesmo tempo em que o vagabundo deseja ser um turista.

Mas os dois destinos e experiências de vida geram agruras repartidas, mas que resultam em percepções diferenciadas e mal aproveitadas nas maneiras de superá-las: intelectuais globalistas de um lado e pseudo-representantes das localidades de outro. Dois discursos que não se comunicam e, por isto, jamais destinados a alcançar um projeto comum.

A quebra do discurso se completa quando se tange a questão da segurança que se refere diretamente à da lei e ordem. A maior restrição espacial que se pode conceber é a do confinamento, ou seja, uma forma quase visceral e instintiva de reagir a toda diferença e particularmente à diferença que não pode ser acomodada na rede de relações sociais. O significado mais profundo da separação espacial é a proibição ou suspensão da comunicação e, portanto, a perpetuação do isolamento, que reduz, comprime e diminui a visão do outro.

Há uma tendência da sociedade moderna em subjugar a disparidade com a ajuda de categorias legais, principalmente a de criminalização. Como o aumento demográfico é inversamente proporcional à possibilidade de relações interpessoais mútuas de densidade moral e de absorção da intimidade humana, as diferenças terminam resolvidas por categorias legais, principalmente de ordem penal. Busca-se modernamente dar significado de crime a atos cada vez mais vistos como indesejados e dúbios (obviamente indesejados à sociedade de consumo).

O encarceramento impede acesso comunicativo e facilita ações de controle, como previa o Panóptico analisado por Foucault, porém, sua concepção antes tida como “remédio” para a falta de disposição ao trabalho, funcionando como “fábrica de trabalho disciplinado”, hoje o confinamento é “uma alternativa ao emprego”, ou seja, maneira de utilizar ou neutralizar uma considerável parcela da população que não é necessária à produção e para a qual não há trabalho ao qual se reintegrar. A prisão atualmente não pode servir para como meio de treinamento para o trabalho, nem pode haver qualquer projeto para uma prisão desse tipo. O que importa é que os internos fiquem ali e ali permaneçam. O cárcere não é mais uma fábrica de trabalho disciplinado, mas uma “fábrica de exclusão” e a principal característica ali transmitida é a da imobilidade, qualidade essencial para a pessoa se tornar um “local”. Na era da sociedade de consumo, as prisões são laboratórios de técnicas de confinamento espacial do refugo da globalização, daquilo que deve ser imobilizado ao extremo e explorado nos seus limites. Enfim, todas as teorias da pena são logicamente falhas e empiricamente insustentáveis .

O fundo da questão deita-se sobre a noção de segurança, a qual está diretamente relacionada a da territorialidade, que funciona como porto seguro da propriedade, a qual por sua vez é considerada extensão do corpo, sobre o qual se deitava a proteção segura na era da modernidade industrial. Na sociedade pós-moderna, pós-industrial, na qual se perde a linha da territorialidade, o mundo se torna inseguro e a sociedade de alto risco, pois os movimentos dos atores sociais não são claros e nem o podem ser.

A busca por segurança acumula-se num estado de tensão e os medos se supraestatizam, gerando propostas de ações de combate a tal insegurança na maioria ineficazes quanto ao resultado direto, porém, efetivas quanto à reunião de capital político. Logo, projetos que apresentem a possibilidade de algo ser feito tornam-se grandes recursos de potencial eleitoral. Por óbvio são ineficazes, pois se as ações se deslocam para um nível de extraterritorialidade global, pouco podem fazer governos de poder local.

O segredo é desarticular a ampla questão da segurança para o setor da segurança pessoal, diminuindo ansiedades com espetaculares efeitos de mídia e excelentes resultados eletivos. O crime e seu respectivo combate vistos como representação pública permitem dividir a população em criminosos e guardiães da ordem, entre possíveis agressores e aqueles que temem sobre sua integridade física. A preocupação com a segurança pessoal inflada eleva-se acima de todos os outros medos e permite sua autopropulsão. A construção de novas prisões, o advento de leis mais duras e medidas semelhantes aumentam a popularidade de governos dando-lhes ar de severidade e decisão, mostrando ação com relação ao problema da segurança, mas destituído de sua totalidade. As espetaculosidades das operações punitivas importam mais que sua eficácia.

A prisão possui outros elementos de convergência para se tornar o principal instrumento de combate à criminalidade, porém possui a característica de também gerar criminalidade pelo simples fato de unificar num mesmo espaço comum pessoas que são ritualmente marginalizadas e tendem a fundar um discurso próprio de rejeição aos que os marginalizaram, ou seja, o espaço se torna tão local que a única alternativa é protegê-lo acima de todas as circunstâncias.

João Ibaixe Jr
Enviado por João Ibaixe Jr em 09/06/2008
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