Entre santos e demônios: resenha de "Labirinto de espelhos", de Josué Montello

MONTELLO, Josué. Labirinto de espelhos. 7.ed.rev.,13.imp., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

ENTRE SANTOS E DEMÔNIOS

Claunísio Amorim Carvalho

Labirinto de espelhos, publicado em 1952, é o terceiro dos romances escritos pelo romancista, contista, cronista, dramaturgo e crítico literário Josué Montello, nascido em São Luís – MA, em 1917, e falecido em 2006, na cidade do Rio de Janeiro, seu domicílio desde o final da década de 30. Freqüentador assíduo dos mais importantes meios intelectuais do Brasil e até do exterior (Portugal, França, etc.), Montello foi ocupante, por mais de 50 anos, da cadeira n.º 29 da Academia Brasileira de Letras, assento fundado por seu conterrâneo Artur Azevedo, e, assim como seus também conterrâneos Coelho Netto e Dunshee de Abranches, publicou mais de uma centena de livros, que lhe garantiram lugar de destaque entre os operários das letras de nosso país.

Os romances de Josué Montello, sempre evocativos à cidade de São Luís e ao Maranhão, parecem ser – mais do que simples propagações de nostalgia e chauvinismo – tentativas (quase) perfeitas de fazer a cidade falar, como diria Döblin ou Benjamin (BENJAMIN, 1986), frutos da sua arguta observação e das muitas experiências que ali viu, ouviu e vivenciou, pois é certo que, em matéria de história, “As cidades são antes de tudo uma experiência visual” (BRESCIANNI, 2003, p.237).

São Luís assume, na prosa montelliana, a condição paradoxal de ser um elemento impessoal (um cenário) e, simultaneamente, um corpus dotado de caráter antropomórfico capaz de exprimir o espírito humano (um conglomerado de pessoas de todas as categorias). Os tambores de São Luís, outro romance seu, narra, numa única noite, cem anos de uma história (sobre a escravidão no Maranhão), e é exemplo magnífico desse poder criador de Montello, colocando nessa única obra centenas de personagens.

Franklin de Oliveira, jornalista e crítico literário maranhense, radicado no Rio de Janeiro, pensa em Josué Montello como continuador da saga ludovicense inaugurada pelo escritor Aluízio Azevedo (1857-1913), com a diferença de que este “centrava o seu interesse enfaticamente na pressão das forças sociais que modelam a conduta humana”, enquanto Montello privilegia “a subjetividade humana”, “pela prevalência do psicológico sobre o social, e de todas as implicações decorrentes desta postulação estética” que o leva a uma espécie de “realismo existencial” (OLIVEIRA, 1978, p.36). Desse modo, Montello é também continuador da tradição machadiana. Sua obra é urbs, mas, sobretudo, é psiché.

Labirinto de espelhos, não fugindo a essa regra, narra o cotidiano de uma família pobre, ao que parece, na primeira metade do século XX, vivendo a expectativa da morte de uma parente “especial”, Tia Marta, senhora de abastada idade, viúva, sem filhos, mas muito lúcida e sabida, residente num casarão da velha São Luís, nas proximidades do Cais da Sagração (perto de onde hoje se localiza a Praça Maria Aragão), cuja gorda herança passa a ser aguardada e antecipadamente disputada pelos sobrinhos.

Desde que enviuvara, Tia Marta tornou-se misantropa e rabugenta. A razão disso era a vingança contra a família, que não apoiara seu casamento com Artur, nem lhes oferecera casa ou qualquer tipo de ajuda (MONTELLO, 2000, p.105). Artur morreu afogado num rio, quando Tia Marta tinha apenas 20 anos de idade e, desde então, passados mais de 50 anos, ela se enclausurara em seu casarão, gozando de uma vida triste e rancorosa, mas com muito luxo. Somente depois de velha, Tia Marta passou a ser cortejada pelos parentes, que, interesseiros, começaram a “arregalar os olhos” sobre a iminente fortuna que lhes poderia advir como herança após a morte da tia. Esta aproximação está narrada no capítulo V.

O problema é que Tia Marta, sabedora das tramas ambiciosas de seus sobrinhos e da hipócrita bajulação que lhe faziam, simplesmente “insistia em não querer morrer”, e pior: preferia enterrar todos os parentes a ser enterrada por estes. No meio dessa complicada relação familiar, havia duas pessoas agregadas à Tia Marta, aparentemente sem interesses financeiros, que causaram ojeriza nos parentes da velha: Carmencita, pequena órfã espanhola, que Tia Marta criava desde pequena, e Paixão, um jovem negro, redator do pequeno jornal A Chibata, o qual conquistou a amizade e a confiança da idosa, personagens estes que serão um pouco mais comentados à frente.

Dessa forma, Montello aborda, a partir dos cômodos “provincianos” do casarão de Tia Marta, questões de caráter universal, imprimindo-lhes sentidos que traspassam um leitor residente em qualquer outro lugar e de qualquer outro tempo. Lida mesmo com aspectos próprios da natureza humana, neste caso, cobiça e vaidade, tal como Lima Barreto o fez, de forma alegórica e sarcástica, no seu conto A nova Califórnia. Ali, como cá, valores éticos-morais e até espirituais são negociados, sem pejo algum, na insana busca da riqueza material. Se de um lado, há um Raimundo Flamel que, de maneira voluntária ou não, engana a todos com a sedução do ouro, de outro, há uma velhota “velhaca” que, de olho no seu próprio ouro, não se deixa enganar por ninguém. Portanto, São Luís, no romance em análise, poderia ser qualquer outro lugar do mundo. Idiossincrasias à parte, as pessoas têm atributos que lhes são comuns, perpassando a tríade sentimento-razão-volição.

Assim, o provincianismo de Josué Montello é apenas aparente, e sua arte comprova a perspicácia de atingir um público bastante amplo e heterogêneo, não podendo, jamais, este autor ser estereotipado de nostálgico ou coisa desse tipo, por preferir não alargar a vista além dos limites da Ilha do Amor (ou de Alcântara, como noutro romance). Pelo contrário, seus olhos vão ao lugar dos espíritos dos homens, e isto independe dos limites da geografia e da cultura.

Quanto à relação literatura-paisagem em Labirinto de espelhos, São Luís, da Praia Grande, do Largo dos Remédios e do Cais da Sagração, só não ascende ao posto de protagonista – a exemplo da embarcação que dá nome ao célebre O conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago –, porque Tia Marta, pertinaz como só ela, não o permite. A velha é simplesmente o centro de tudo. Não o seria, porém, se os seus sobrinhos não fizessem questão de lhe serem periféricos (até a possível partilha dos bens). Fosse-lhe isto possível, Tia Marta viveria sozinha e longe de todos eles. Enfim, foi a corrida pelo “cascalho” da velha que acabou por entronizá-la.

Mais do que isso, o próprio título do livro, “Labirinto de espelhos”, tomado a empréstimo do vate espanhol Antonio Machado, é sintomático nessa entronização, pois o próprio narrador escreve: “Havia ali, nessas ocasiões, uma espécie de labirinto de espelhos humanos, diante dos quais se refletia a mordacidade de Tia Marta. A figura hirta passava por eles, zombeteira ou austera, e a imagem se estampava nos semblantes que se contraíam [...]” (MONTELLO, 2000, p.41). Depreende-se desta passagem que não havia lugar onde se pudesse armar conluio sem que os olhos da velha não se mostrassem penetrantes, sempre em negativas rudes. Aliás, um labirinto de tal natureza é abstrato, psicológico e, quiçá, metafísico.

Fala-se, hoje em dia, em “labirinto de espelhos” como forma da criança descobrir-se a si mesma, pelas imagens que de si são projetadas, num pequeno mundo de complexidade a ser desnudado em busca da porta de saída (ou de entrada para o mundo). É isto um meio de aprendizagem. Falem os psicólogos e os pedagogos. No caso do Labirinto de Josué Montello, o espelho deve projetar, não a imagem de quem se contempla, mas a de outra pessoa, em todo canto, uma única imagem. No caso, a da Tia Marta.

A sensação de se buscar o próprio rosto e não encontrá-lo, na frente do espelho, já seria assustadora; todavia, mais ainda o é quando, em vez do vazio, aparece uma outra face. Salvo o caso do Espelho Mágico da Rainha Má de Branca de Neve e os Sete Anões, em que o espelho não é um mero espelho, será sempre uma experiência de terror. Isto dito, tem-se que o tal labirinto é um meio revelador de miragens, alucinações e, o pior, a sensação de que não existe saída. Todo labirinto que se preze tem apenas uma saída e um sem-número de atalhos e portas fechadas. Quando alguém tem uma imagem a persegui-lo, dobra-se a vontade de achar a porta verdadeira. No romance, a sensação de que a saída não aparecerá cresce à medida que a trama se vai desenrolando. A dúvida não era apenas se algum dos sobrinhos teria a feliz ventura de figurar no testamento de Tia Marta: mas se viveriam para ver isso.

O desejo de todos eles (Quincas, Teles, Florêncio, Clementino, Paquita, Justino, Proença, Cotinha, etc.) era que a velha se fosse. Cada qual tinha seus interesses, com a morte de Tia Marta e o despojo da herdade: Teles pretendia voltar para Belém; Justino, comprar um sítio na Maioba; Quincas, ser político de sucesso; Cotinha, ficar com as jóias da velha e arranjar um marido; Clementino, deixar de ser apenas um flautista e afinador de pianos; fora os outros. Em todos, a gana da riqueza em nada os constrangia no tocante ao desejo da morte da parente. As falas desses personagens aludem claramente a isso, até mesmo apelando para Deus, para os santos ou o que mais fosse necessário.

“ [...] Teles chegara ao extremo de apelar, vezes seguidas, para os bons ofícios de São Cipriano; mas o santo, se o ouvia, fizera ouvidos de mercador: Tia Marta continuava a gozar excelente saúde. Nem de resfriado se queixava o demônio da velha” (MONTELLO, 2000, p.47). Justino imitou-lhe a reza: “- Tu não vês, Senhor, que Tia Marta não faz falta a ninguém aqui na Terra? E então? Que te custa acabar com ela?” (MONTELLO, 2000, p.98). Seu desejo era enfático: “- Antes do Ano-Bom, Tia Marta já terá morrido” (MONTELLO, 2000, p.141). A velha insistia em não morrer. Quincas chegou mesmo a pensar em matá-la: “- Ou eu a mato, ou ela nos enterra” (MONTELLO, 2000, p.92).

Quando Tia Marta adoeceu, simplesmente não morria. Clementino ficava na torcida: “ – Hás de acabar, hás de acabar, com o favor de São Benedito!” (MONTELLO, 2000, p.143). E Justino: “Meu Deus, quando isso acaba?” (MONTELLO, 2000, p.145). Alguns deles, “A princípio, passavam noites em claro, ali na sala de jantar, conversando em voz baixa, pelos cantos, a aguardar o último suspiro de Tia Marta” (MONTELLO, 2000, p.143). Também o Proença: “Pela manhã, Proença aparecia à porta da alcova, inteirava-se do aspecto da doente (‘Ainda está viva, meu Deus!”)”(MONTELLO, 2000, p.144). E nada da velha morrer!

A velha continuava vivendo, trazendo o terror de seus augúrios aos sobrinhos: ela prometera enterrar a todos. Quincas sabia disso, e certa vez chegou a dizer para a tia: “-Nessa marcha, a senhora vai aos cem anos e enterra a todos nós!” E o que ela respondeu? Sem cerimônia, disse-lhe: “- Com o favor de Deus!” (MONTELLO, 2000, p.85).

Ao adoecer, pensou: “- Parece que desta vez o olho grande dos parentes me derrubou. Custei um pouco, mas caí”. Contudo, estava firme no seu propósito: “- Caí, mas ainda me levanto, com o favor de Deus. Não é assim, do pé para a mão, que me despacho deste mundo. Ainda hei de ver muito parente meter-se na cova antes de mim!” (MONTELLO, 2000, p.130).

A ameaça de Tia Marta era horripilante. “Tia Marta ia cumprindo o que prometera: com o favor de Deus, continuava a levar os parentes ao cemitério, como se sua predestinação fosse realmente sobreviver à família, assistindo, impassível, ao sepultamento de cada um dos parentes” (MONTELLO, 2000, pp.92-93). Ela até mencionou para os sobrinhos o desejo sombrio: “- Sonhei que um anjo me dizia que todos vocês vão morrer antes de mim [...]” (MONTELLO, 2000, p.143). E quando, já doente, soube da morte do Florêncio, que pereceu numa tormenta marítima, disse: “- E eu que pensava morrer antes dele!” (MONTELLO, 2000, p.142). Tia Marta disse uma vez a Paixão: “- Paixão, meus parentes, que só pensam na minha morte, afinal se convenceram de que tão cedo eu não me passo para o outro mundo e que eles todos – se Deus quiser – vão na minha frente” (MONTELLO, 2000, p.108).

E de fato, uns após outros iam morrendo: morreu o Teles, de uma doença; a Paquita, suicidou-se; o Florêncio, já dito, morreu no mar. Que mais restava a acontecer? Era mesmo um labirinto, labirinto de desespero.

Por exemplo, ao Teles, que muito sonhou com a dinheirama e a possibilidade de regressar a Belém, mandando “São Luís ao inferno” (MONTELLO, 2000, p.51), apelando com todas as preces a São Cipriano, bastava uma palavra de Tia Marta, e a sensação da derrota lhe tomava o ânimo. A velha não morria e ainda debochava de todos. Teles, certa vez, após ser destratado pela tia e por esta expulso do casarão, percebeu ser a coisa era mais difícil do que imaginava. “E jamais Belém pareceu tão distante ao Teles quanto nessa noite” (MONTELLO, 2000, p.54).

O pobre Teles, muito doente, morreu na miséria, num quarto alugado na Camboa, e nem nos seus últimos momentos foi digno da misericórdia da tia. Quando chegou o Justino, outro sobrinho, encontrando ali a Tia Marta, que viera a pedido do moribundo, e tendo perguntado por este, a velha, serenamente, disse que o mesmo havia morrido, e acrescentou: “- Morreu calmo e lúcido. Só no fim delirou um pouco com a eterna mania de que eu ia deixar algum dinheiro para ele no meu testamento. Mas foi coisa rápida, que passou logo” (MONTELLO, 2000, p.90). Se assim fora, Teles teria vivido a vida inteira delirando.

O desespero era também de Justino. Tia Marta dizia que chegaria aos cem anos. O sobrinho assustava-se: “- E se ela chegar mesmo aos cem? Quer dizer que perdemos o nosso tempo. Sim: de que me adianta que ela morra com cem anos? Não terei morrido antes dela? É bem possível que sim. Mas vamos lá que ainda viva: estarei velho, com o pé na cova” (MONTELLO, 2000, pp. 97-98).

Haveria ainda esperança? Se havia, deveria superar também a ameaça dos agregados. Carmencita, a jovem pianista, companhia constante de Tia Marta, era invejada pelos parentes da velha. Florêncio, pouco antes de morrer, já esboçava esta preocupação: “- Estamos perdendo o nosso tempo em engrossar a velha, meu caro Clementino! Tia Marta – o diabo me leve, se eu estiver enganado! – acaba deixando tudo o que tem para aquela espanhola! Você ainda não reparou como a velha trata a Carmencita? É só de ‘minha filha’” (MONTELLO, 2000, p.61). Fazia sentido, afinal, a menina era quem aturava a idosa o dia inteiro. Clementino também pensou nisso: “[...] E a imagem de Carmencita recortava-se-lhe no espírito, muito rica, enquanto ele, o Teles, o Florêncio, todos os parentes, que tinham realmente direito à fortuna de Tia Marta, continuavam a mesma vida apertada, ao desamparo da sorte. Ah, vida! Ah, mundo!” (MONTELLO, 2000, pp.65-66).

Além dela, havia ainda o “crioulo” Paixão, o qual veio de mansinho e se tornou queridinho de Tia Marta. Gostava de maior prestígio do que os próprios parentes. Freqüentava assiduamente a sua casa, onde era bem recebida, passava horas batendo papo e jogando baralho com ela. Almoçava, jantava, às vezes, até dormia lá. Foi quem lhe preparou a festa de 75 anos e, depois do falecimento de Tia Marta, o funeral. Era um rapaz “Inteligente, sabendo escrever com desembaraço, e tendo mesmo alguma ilustração literária, jamais pretendera subir na vida, conquanto gozasse da intimidade dos figurões da terra” (MONTELLO, 2000, p.18). O prazer de Paixão era estar no meio da gente “graúda” de São Luís, e o narrador, parece, nesta última passagem, mostrar o desinteresse do rapaz pela fortuna da idosa.

Tia Marta retribuía-lhe a confiança, o que só aumentava o desconforto dos parentes, como nesta fala dirigida a Justino: “- Não perturbes, que o Paixão é de casa [...]” (MONTELLO, 2000, p.42). Por isso, os olhos da família se voltaram contra Paixão. Ora, nenhum dos parentes era bem recebido no casarão, somente o “crioulo”. Justino, de longe, era quem mais lhe era hostil: “Justino, depois de um silêncio, encolheu os ombros, torceu um pouco a cabeça, mentalmente mandou o Paixão ao diabo por vê-lo imiscuir-se em assuntos ligados à família” (MONTELLO, 2000, p.96). E também: “- O Paixão quer mesmo passar a perna em toda a família. Cada dia faz-se mais afoito. Isso não pode ficar assim! Não está direito! Temos de dar-lhe uma lição!” (MONTELLO, 2000, p.97). Ou ainda: “- Acabo de vir da casa de Tia Marta. O diabo daquele crioulo anda a roer-nos a corda” (MONTELLO, 2000, p.99).

Mortos de um lado, Tia Marta, agora moribunda, de outro, demais parentes de outro ainda, o desfecho dessa trama revelar-se-ia extremamente trágico e extremamente cômico. Depois de morta Tia Marta, foram ler seu testamento, na presença do escrivão, de Paixão e dos “sobreviventes”. No final, uma tremenda surpresa. Quando já se dizia que a velha deixara toda a sua fortuna para a Santa Casa, veio o golpe de misericórdia: “Somente a metade de sua fortuna a velha destinara a essa benemerência póstuma. A outra metade tocara aos sobrinhos, com uma condição expressa: que o legado só lhes fosse entregue trinta anos depois”. Parecia mentira. E o sarcasmo era maior: “E havia ainda uma cláusula, que lhe dizia do espírito piedoso: durante todo esse tempo, os juros correspondentes ao legado destinavam-se ao pagamento das missas pelo eterno descanso da alma da testadora” (MONTELLO, 2000, p.202).

De fato, foi um duro golpe: “Quincas Peixoto rodava na sala, esbaforido, olhos pulados, sapateando a ira nas tábuas do chão”, dizendo: “- Derruba-se tudo na Justiça! Ela não podia fazer o que fez! A lei está do nosso lado!”. E concluía: “- Em trinta anos estaremos todos debaixo da terra. E para que vou querer dinheiro na sepultura? Bolas! Só mijando na cova da velha” (MONTELLO, 2000, p.202). Todos estavam revoltados: Quincas, Justino, Cotinha, Dolores...

Tia Marta guarda enormes semelhanças com a velha Maria do Patrocínio, ou simplesmente Dona Titi, do romance A relíquia, de Eça de Queiroz, a qual, rancorosa e sem piedade, ao morrer, deixa sua fortuna aos clérigos católicos, em detrimento dos familiares, inclusive, do seu sobrinho Teodorico Raposo, que procurou lhe fazer os gostos, até o de lhe trazer uma relíquia sagrada ao peregrinar à Terra Santa, embora essa relação sempre tenha ocorrido num clima muito hostil.

No decorrer da história, a dureza de Tia Marta pôde significar, para os infelizes parentes, uma espécie de pacto com o demônio. Até isto foi cogitado. Quincas disse: “- A família está se acabando! Nestes últimos seis meses, três espicharam a canela: a Paquita, o Teles, o Florêncio. Só o diabo da velha é que não se despacha! Sou capaz de apostar que aquele traste tem partes com o diabo” (MONTELLO, 2000, p.156).

Dolores, noutra parte, teve impressão semelhante: “E a Dolores, persignando-se, como se estivesse a ver por trás do espelho da cama a figura vermelha do Diabo, com quem a Tia Marta havia feito um pacto de sangue” (MONTELLO, 2000, p.186). Seria o caso de que a velha intentara mesmo enterrar todos os sobrinhos – que não eram ainda velhos – através de um pacto satânico?

Fosse mera crendice ou não, o certo é que os parentes começaram a aventar essa possibilidade. Tanto que o demônio surge mais uma vez na imaginação de Dolores: “A velha, reluzindo na claridade das velas a seda do vestido preto, com um medalhão de metal sobre o peito murcho, estaria na iminência de levantar-se da cama, ágil, ríspida, assistida pelo Demônio, que lhe daria a mão” (MONTELLO, 2000, p.186). Essas especulações surgiam da frustração.

Na verdade, Tia Marta era uma católica praticante, fazendo tudo girar em torno de uma religiosidade – apesar de não tão profunda – sempre presente. Nas falas e nos gestos. Vemo-la expressando: “graças a Deus” (MONTELLO, 2000, pp.96,123); “com o favor de Deus” (MONTELLO, 2000, pp.85,92,130); “se Deus quiser” (MONTELLO, 2000, p.108). Estas expressões podem não caracterizar grande devoção, pois fazem parte do vocabulário interjetivo popular brasileiro. Entretanto, Tia Marta dá margem a que se pense mais além em sua relação com a religião.

Falava, de vez em quando, na “vontade de Deus” (MONTELLO, 2000, pp.29,89), tomava Deus como testemunha da sua vida (MONTELLO, 2000, p.105) e também pensava em Deus pra hora da morte: “Eu quero ser enterrada como Deus quis que eu vivesse: com o que houver de melhor” (MONTELLO, 2000, p.181). Tia Marta abre a porta para que se contemple sua devoção aos santos, especialmente, Nossa Senhora dos Remédios. Devoção não só dela, mas também de outros personagens.

As alusões a essa Santa e à sua Igreja são muitas: “Apenas saía da casa aos domingos, quando Artur, após a missa na igreja dos Remédios, a levava em giro pela cidade [...]” (MONTELLO, 2000, p.16); “Até a procissão de Nossa Senhora dos Remédios, que abalava a cidade de São Luís [...]” (MONTELLO, 2000, p.47); “Aos domingos, saía para a missa, mas era ali perto, a dois passos, na igreja dos Remédios” (MONTELLO, 2000, pp.75-76); “[...] Nesse caso, minha idéia é mandarmos rezar uma missazinha de ação de graças, aqui mesmo na igrejinha dos Remédios [...]” (MONTELLO, 2000, p.96); “[...] na derradeira noite da festa dos Remédios [...]” (MONTELLO, 2000, p.122); “Cotinha e Dolores, ao fundo da casa, suspiravam, extenuadas, pedindo a Nossa Senhora dos Remédios e a São José de Ribamar que olhassem aquele despropósito” (MONTELLO, 2000, p.186); “[...] logo após a missa de sétimo dia, rezada muito cedo, na igreja dos Remédios” (MONTELLO, 2000, p.194); “O velho carro saiu pelo fundo da casa, entrou pela pequena rua que contorna a igreja dos Remédios” (MONTELLO, 2000, p.203).

A igreja de Nossa Senhora dos Remédios (na Praça Gonçalves Dias) está do início e ao fim marcando presença, até mais do que a própria santa. O fato de estar localizada perto da casa de Tia Marta, de certa forma, lhe dá mais visibilidade, mas não é só isso. O ambiente era realmente povoado de santos católicos.

Sem a terminação características (dos Remédios), há outras alusões a Nossa Senhora, que merecem destaque: “[...] alcançava a praça onde se levantava a ermida de Nossa Senhora [...]” (MONTELLO, 2000, p.55); “Parecia que Nossa Senhora havia baixado do Céu para demonstrar-lhe a porta do Paraíso” (MONTELLO, 2000, p.111); “Às dez e pouco, se Deus quiser, com a saída da Lua e a ajuda de Nossa Senhora, boto a proa no rumo da Cerca” (MONTELLO, 2000, p.135); “Felizmente, Nossa Senhora amainara a tormenta [...]” (MONTELLO, 2000, p.136); “-Minha Nossa Senhora!” (MONTELLO, 2000, p.161). Apenas uma vez aparece menção a ela como Virgem: “E por que temer, se trazia no peito, por cima do coração, tatuada em grandes letras, a sua invocação à Virgem?” (MONTELLO, 2000, p.136).

Nossa Senhora, não somente tem igreja e missa, mas também procissão e festejo, além de ser invocada através de preces e de lhes serem creditadas determinadas graças, como olhar para a situação de seus devotos e acalmar as tormentas da vida. O nome de Jesus não tem grande presença nesta história, justamente pela proeminência que é dada à santa.

Santo Antônio também está presente, sobretudo, na crença de Cotinha, que vivia a pensar em casamento. Guardava consigo a imagem do santo “casamenteiro”: “Ficou a olhá-lo, embevecida e feliz, e, como o aposento, assim fechado, fosse sombrio, levantou-se para acender o pavio da vela, a dois passos, no local do castiçal de cobre, aos pés da imagem de Santo Antônio” (MONTELLO, 2000, p.77). Cotinha costumava a assistir casamentos na igreja de Santo Antônio e empregava grande esforço para pegar o buquê que a noiva atirava, na esperança de encontrar um marido: “[...] ei-la a confundir-se com a multidão, no intuito de colher no préstito, à saída da noiva, o seu botão de laranjeira”; e quando o colhia, dizia, toda feliz: “- Agora caso” (MONTELLO, 2000, p.79). Leitora de romances, Cotinha vivia melancólica, assaltada por desejos de abandonar tudo e ir para um convento, etc. E chorava trancada no quarto, pensando em morrer, tudo porque lhe faltava um marido. Quando abria o enxoval, ficava mais triste e, então, rezava ao santo: “- Dê um marido para mim, Santo Antônio! – implorava, de joelhos, com as mãos segurando os pés da imagem” (MONTELLO, 2000, p.80). Houve um momento em que ele resolveu seguir a vida monástica: “E agora, na palidez da sua derrota, distraía-se em atender, com fervor acendrado, às obrigações da irmandade a que se filiara” (MONTELLO, 2000, p.128). Pouco depois, porém, desistiu da vida casta e voltou a desejar o matrimônio. A última menção do santo no romance ainda acontece em relação a ela: “E o sonho dos vinte anos refluía-lhe à consciência, mais uma vez, dando-lhe a esperança de que, em breve, com o favor de Santo Antônio, e adornada com as jóias de Tia Marta, encontraria quem a quisesse” (MONTELLO, 2000, p.133), fato que não ocorreu.

Outros santos de grande presença são: São Cipriano (MONTELLO, 2000, pp.47,52,54,88), sempre ligado ao Teles; São José de Ribamar (MONTELLO, 2000, pp.175,186); São João (MONTELLO, 2000, p.81); São Pantaleão (MONTELLO, 2000, p.66); São Pedro (MONTELLO, 2000, p.109); e São Benedito (MONTELLO, 2000, p.143). Desta forma, todos estes santos (seus nomes, imagens, igrejas, missas, festejos) dão um toque plenamente católico e, por vezes, supersticioso, à história. O conhecimento do cenário e também a época ajudam a melhor entender a força desse catolicismo, muitas vezes rústico, dos personagens. A cidade era essencialmente católica, além de lendas e crendices variadas.

Mas não é só isso: há mais menções a igrejas (MONTELLO, 2000, pp.81,136,147, 157,159,196), sacerdotes (MONTELLO, 2000, pp.64,81,87,102,181,189,190,201), missas (MONTELLO, 2000, pp.64,80,101,128,194,196), oratórios (MONTELLO, 2000, pp.123,130, 131,147,152,154,183,185), terços (MONTELLO, 2000, pp.85,185), velas (MONTELLO, 2000, pp.143,147,152,154), crucifixos (MONTELLO, 2000, pp.147,160,189,190), além de trajes de cerimônia, funerais e práticas, como tomar a bênção, benzer-se, recitar ave-marias, cantar hinos, leitura da História Sagrada e manifestação das Pastorinhas de Natal e algumas poucas alusões à Bíblia.

Isto posto, contemplada a riqueza cultural exposta em Labirinto de espelhos, que decorre dos tipos inesquecíveis de seus personagens, como da cidade que fala, sem descurar de todas as relações inter-pessoais, ambições, vingança, tragédias, frustrações, desespero e sarcasmo, próprias da mente genial de Josué Montello, fica a pergunta: como um mar de lama, de ignorância e vaidade, de todos os lados, pôde sobressair-se num ambiente que tinha tudo para ser pacífico e divino? A complexidade da vida humana e as vicissitudes do mundo podem explicar isto, mas o gosto amargo de nossa má natureza é que não morre com Tia Marta.

Referências:

BENJAMIN, Walter. A crise do romance. Sobre Alexanderplatz, de Döblin. In: __ Magia e Técnica. Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, pp.54-60. (Obras Escolhidas, vol. 1).

BRESCIANNI, Maria Stella. História e Historiografia das Cidades, um percurso. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.). Historiografia Brasileira em perspectiva. 5.ed. Rio de Janeiro: Contexto, 2003, pp. 237-258.

OLIVEIRA, Franklin de. Literatura e civilização. Rio de Janeiro: DIFEL, 1978.

Claunísio Amorim Carvalho
Enviado por Claunísio Amorim Carvalho em 06/07/2008
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