"O Dia em que Lacan me Adotou" Gérard Haddad

O psicanalista Gérard Haddad, que antes de enveredar-se pelo caminho da psicanálise exerceu a profissão de agrônomo e por ela percorreu os caminhos do arroz na África, elabora, neste livro, o testemunho de sua análise de doze anos com Jacques Lacan.

De tom discretamente autobiográfico, discretamente, já que, embora poupe detalhes de suas relações do âmbito puramente emocional, o texto não poupa, no entanto, as aventuras intelectuais suscitadas pela experiência da “cura” analítica, via Lacan. Cura que leva o autor a reatar-se não só com sua precoce, mas inibida, vocação para a psiquiatria, como também, e principalmente, com a tradição judaica que o ascende. Leva-o, afinal, ao cumprimento da vontade paterna.

Ao longo do processo de análise, Gérard Haddad vai ficando cada vez mais interessado pela teoria psicanalítica e pela religião judaica.

Na verdade nosso autor parece ter ficado completamente obcecado pela idéia de comparar a psicanálise ao judaísmo. Na busca do significado das comidas oferecidas nas datas comemorativas judaicas, concluiu que o sentido estava no próprio nome das especiarias, conclusão que dá origem a seu trabalho intitulado “Comer o Livro”. Suas pesquisas traçam um paralelo entre o Midraj, o Talmude e a psicanálise e argumentam que o texto bíblico pressupõe um conteúdo manifesto que encobre conteúdos latentes, a mesma suposição que, como se sabe, funda a psicanálise clínica. Estas pesquisas dão origem ao livro “O Filho Ilegítimo – As fontes talmúdicas da psicanálise”. Também escreveu "Mainômides", que relata a vida do médico, cientista e talmudista do século XII, Moisés Mainômides.

Nos primeiros capítulos de “O Dia em que Lacan me Adotou”, Haddad nos convida a acompanhar sua trajetória pré-análise e nos envolve na lógica deliciosamente subjetiva que o leva da Tunísia, seu país de origem, à França e, ao divã de Lacan.

A partir do encontro com o grande psicanalista, o relato concentra-se no inusitado e até folclórico estilo clínico do Dr. Lacan, com suas brevíssimas sessões de análise que, segundo o autor, por vezes não passavam de cinco minutos ou menos ainda. Mas Haddad narra outras singularidades, como grunhidos e olhares significativos que o famoso e polêmico psicanalista lhe lançava de pé, a ele deitado no divã. E, também, as manobras que incluíam dias e horários imprevisíveis para os encontros, com pagamentos altíssimos. Porém, todas estas esquisitices, nos conta Gérard, operavam mudanças significativas que implicavam em um processo analítico para além das paredes do consultório. Se Lacan, por um lado, encerrava a sessão precocemente, por outro, provocava no analisando um estar continuamente em análise. Era necessário, digamos, fazer a lição de casa, garantida, talvez, pela transferência que ali operara genuinamente.

A narrativa torna-se particularmente interessante quando o autor descreve seu árduo percurso para tornar-se, ele próprio, um psicanalista. Para tanto terá que, antes de abrir mão, de vez, de sua, até então promissora, carreira de agrônomo, conciliá-la com a volta aos bancos escolares. Inicia um curso de Psicologia para, em seguida, após um grunhido de Lacan, abandoná-lo. Decide então pisar a psicanálise pela “porta da frente”, representada, em seu imaginário, pela formação médica, profissão também escolhida por seu irmão e aprovada por seu pai. Paralelamente, começa a freqüentar os seminários de Lacan; a mergulhar na leitura dos “Escritos”, que passam a lhe fazer companhia nas viagens à África; e, claro, a percorrer os textos de Freud.

Mas isso não bastava, era necessário se fazer conhecido na Escola Freudiana de Paris, o antro da psicanálise lacaniana. E então o autor nos coloca no divertido palco que marca a história da psicanálise francesa, e assistimos às cenas protagonizadas pelos iminentes teóricos lacanianos, como Charles Melman, Erik Porge, Françoise Dolto, entre outros, e pelo próprio Lacan, um excelente performático. Vale destacar a descrição do episódio burlesco de Françoise Dolto em seu programa de rádio, quando respondia às perguntas dos ouvintes. Um dos ouvintes pedia uma solução para a enurese de seu filho e Dolto simplesmente o aconselhou a deixar. ao lado da cama do menino, um copo com água. Françoise Dolto tem vários livros publicados sobre psicanálise infantil, entre eles “Psicanálise e Pediatria”, “O Caso Dominique”, “A Causa dos Adolescentes” e “Quando os Pais se Separam”, livros aos quais me remeti diversas vezes quando trabalhava com clínica infantil. É classificada por Haddad como representante da linha cristã da psicanálise, o que para mim é novidade.

A fogueira das vaidades dos psicanalistas franceses culmina com a controvertida dissolução da Escola Freudiana de Paris, iniciativa atribuída por Melman, ao genro de Lacan, Jacques-Alain Miller, que a teria evocado na análise a que se submetia com o próprio Melman. As conseqüências desta dissolução e as inúmeras facções institucionais que surgem a partir de então são bem conhecidas por aqueles que, como eu, também freqüentaram os circuitos de estudos lacanianos.

Um tom irônico permeia o discurso de Gérard Haddad, que supondo estar sendo fiel a seu mestre e analista Lacan, cai nas armadilhas de Miller, e acaba sendo cúmplice deste no episódio da dissolução da Escola.

Haddad virá a tornar-se consciente de suas ingenuidades tardiamente. E a gota d´água que o leva a romper com esta ingenuidade é representada pela questão do passe, artifício imposto aos pretendentes a analistas, que consiste em prestar depoimento ou testemunho da análise a que o aspirante submete-se a um terceiro analista. O livro narra todas as dificuldades que Haddad encontrou para a realização de seu passe, que afinal acabou não ocorrendo, mas motivou-o a escrever esta obra. Assim, dirige seu testemunho a nós, leitores. Sorte nossa.

Rocio Novaes
Enviado por Rocio Novaes em 21/02/2006
Reeditado em 20/07/2011
Código do texto: T114524