Tempos idos, livro de Zeno Cardoso Nunes

Zeno Cardoso Nunes é um nome cheio de títulos, prêmios (Ilha de Laytano, Érico Veríssimo, Lexicografia...) e outras honrarias literárias. Entre as dezenas de títulos, individuais e em publicações coletivas, destacam-se as duas obras: Dicionário de regionalismos do rio grande do sul e minidicionário guasca, ambos com sucessivas edições.

Agora, Zeno nos surpreende com tempos idos (2005: 304), obra em que reúne uns 200 poemas ora recolhidos de livros esgotados (Versos; Briga de touros; e Morcegos ), ora poemas antigos agora oficinados e ainda poemas novos. Em “Adenda” com quase cem páginas inclui fotos, poemas de familiares (principalmente do irmão Rui), um glossário e seu curriculum. Zeno ainda inclui duas valiosas peças literárias: “Prêmio Ilha de Laytano” e “Aspectos da formação da língua gauchesca”. O primeiro é uma valiosa oração (assim lhe chama Zeno) de magistral acabamento, em que o autor, dando as implícitas razões da honraria recebida e merecida, operacionaliza sua carreira literária na máxima fidelidade ao seu trabalho feito. O segundo texto é um potente estudo sobre a formação da língua gauchesca. E como bem a explica:

“E esse português, predominantemente açoriano (trazido a partir dos meados do século XVIII), sofreu, aqui, algumas modificações fonéticas, morfológicas, sintáticas, semânticas e estilísticas, provindas do contato com as gentes de língua espanhola e com os falares dos guaranis, guaicurus, guenoas, charruas, minuanos, araucanos, quíchuas, bem como com algumas vozes de dialetos africanos”.

Neste breve parágrafo, inserto na primeira página, se faz uma poderosa síntese das forças que levaram à formação da língua. O que diz sai devidamente comprovado.

Mas vamos aos poemas em cuja avaliação, importa ter em conta o subtítulo da obra: poesias clássicas e gauchescas. Uns oitenta sonetos de quem sabe o que é um soneto e como se faz e como se oficina. Zeno não é mero improvisador de textos. Nem faz sonetos que são tudo menos sonetos. O soneto tem regras, tem técnica e tem maestria. Claro, estes elementos devem ser vivificados pela luz brilhante da criatividade e é isto que não falta em Zeno. Sonetos vibrantes como “Saudade” ou “O Gênio”. Já “Dulcita”, um dos melhores senão o melhor soneto da obra, é, todo ele, um quadro sensualmente macio e quente, liricamente rebolado e arfante.

Se passarmos ao poema longo, por isso de maior amplitude estrófica, a escolha continua difícil. No entanto, impressiona um texto como “Briga de touros”: um pequeno romance ou sacudida estória falando da luta entre dois touros: o Touro Brasileiro que vence e mata o Zebu vindo da Índia selvagem, o que em transposição semântica se desvela em sentidos vários outros, implicitamente ínsitos. A chave de ouro do remate, lavrada num contexto que diz do comportamento do gado, berrando tristemente em funeral e mais uma vez acumulando o frenético simbolismo da metáfora:

“era o berro do touro brasileiro

lamentando o destino do estrangeiro

que quisera ser dono do seu chão

Nestes versos se identifica simbolicamente a alma gaúcha: ela amando o seu chão, lutando pelo seu chão farroupilha, eternamente seu, eternamente invicta.

Totalmente acessíveis a uma primeira leitura são os textos, de muito seguro acabamento, como “Lagoa do rodeio” e “Morte de pai Joäo”, que, tocando a candente temática da crônica, avançam ternamente no recorte da saudade, figurando o autor, no primeiro, como actante que sustenta o poema e no segundo como o implícito autor-espectador onisciente que faz a narrativa poética. Esta técnica ou mecanismo de Zeno repete-se noutros poemas - o poeta sendo e comandando a construção poética. Outro poema modelar traz o título “Conversa de tolos”: o piano vencendo o violão porque este nunca teve “as carícias inocentes/ de uns macios dedinhos de mulher”. Também aqui os afluentes sentidos simbólicos atirando o poema para outras dimensões.

Outro poema - “O dia “V” - mas agora repassado de amplo fôlego, comemorativo do fim da Guerra Mundial-II. Não menos impressionante para o leitor é o poema “Pensamentos de um cachorro” - um cachorro confessando a fidelidade por seu dono. Sempre o texto aberto para a polissemia que lhe traz novos sentidos.

A leveza da endeixa pulsa em “Alma de guasca”, poema corrido e flutuante nos rendillhados de ritmos cantantes. Até uma ata - “Ata da reunião da Associação dos Fiscais de Tributos Estaduais” lhe mereceu um sinuoso poema, de muito humor, hilariedade e saudade. “Facão”, extraordinário poema de majestade épica, canta o valor desse instrumento que “ajudou a fazer a história”. “Covardia”, inesquecível poema com foros de crônica, sobre Juca Manco, um indio feio que, no bom estilo gaúcho, nunca levaria um desaforo para casa. Cremos ser esta característica - nunca levar desaforos para casa - uma qualidade muito esplendorosa da alma gaúcha. Pelo menos, o poema em tela assim nos convida a pensar.

Também de acabamento perfeito, os poemas constituídos por quadras, trovas e acrósticos. Toda esta variedade de temas, estilos e linguagem nos diz que Zeno Cardoso Nunes é uma figura literária marcante da história literária gaúcha.

António Soares