Filhos $ Amantes (TVD) Cap. 2

Capítulo 2

A caminho da sala de leitura, Vôvo prestou atenção na letra da música que provinha de lá.

“Ela agora mora só no pensamento/ Ou então no firmamento/ Em tudo que no céu viaja/ Pode ser um astronauta/ Ou ainda um passarinho/ Ou virou um pé de vento/ Pipa de papel de seda/ Ou quem sabe um balãozinho/ Pode estar num asteróide/ Pode ser a estrela D’alva/ Que daqui se olha/ Pode estar morando em Marte/ Nunca mais se soube dela/ Desapareceu...” ( Samba da Pergunta de Pingarilho/Marcos Vasconcellos ).

Ele entrou na sala e olhou Carrel com ternura. Lia o jornal. Não tinha a beleza de outrora. Mas, quem a retém com o passar do tempo? Seu jeito masculino, magra, até se acentuara. Os cabelos curtos, alourados a tornavam ainda sedutora. Modelo famoso dos anos sessenta, suas fotos eram raras na mídia. Era como se ela tivesse recolhido todas para ser esquecida. Fora disputada por costureiros da estirpe de Denner e Clodovil. Disse ao percebê-lo:

___ Andas flutuando pela casa? Não te ouvi chegar!

___ Estou gordo demais para flutuar, querida! Tu és quem estás esquelética. Preciso te nutrir de massa... Estás com fome, tofu?

___ Tô... E a dor no peito?

___ Devem ser gazes, passou. O almoço tá pronto... O quê minha erva tá lendo?

___ A coluna de Mônica Bergamo. Fala de um luxo: o Volvo!

___ Não sabia que eu era um luxo!

___ Não és tu, seu bobo! É o Volvo...

___ Tô à deriva! É Vôvo ou Volvo?

___ É o carro Volvo super luxo, curry! É um lançamento, deve custar uns R$300 mil...

___ Menos, Carrel! Temos três carros na garagem... Esquece esse luxo...

___ Dentro desse carrão pode-se ouvir dvd, mandar fax, beber champanhe e o diabo a quatro... Uma tentação!

___ É melhor pensares em Vôvo na cama... Respira fundo e esquece essa coisa demoníaca...

Ela, decepcionada, dobrou o jornal e mudou de assunto. Estava compilando texto para o site da Internet. Ele precisava apressar-se com sua parte pois a provedora colocaria o material no ar após a meia noite.

___ Estou escrevendo um livro, Vôvo!

Sempre que ficava contrariada, Carrel dizia estar escrevendo um livro.

___ Ficaste zangada com a minha indiferença ao teu entusiasmo pelo carro, minha linda?

___ Já esqueci... Desaprendi a dirigir, adoro andar a pé, é mais saudável... Satisfeito? A campainha está tocando, caríssimo!

___ O quê?

___ A campainha...

Vôvo foi atender a porta. Deparou com o tio de Carrel. O senhor Bocudo, com o dedo na campainha, parecia impaciente.

___ Eh, chega sô! Tá tenso por quê, tio?

___ Porra! Vocês estão surdos ou tavam metendo? perguntou o tio em gestos grosseiros.

___ Entra logo, titio! Estamos evitando os cobradores! Relaxa...

___ Lá sô veado pra relaxá!

___ O tio como sempre está com a língua afiada! disse Carrel, abraçando-o. Chegou bem na hora! O almoço vai ser servido...

___ Hum... tô sentindo o cheirinho de alecrim! observou o tio.

___ São meus temperos favoritos: alecrim, hortelã, manjericão, explicou Vôvo. Quer ir ao banheiro, tio?

¬___ Que mané banheiro! Sou apenas impotente, não mijão. Se bem que sinto estar sempre com a bexiga cheia...

___ O tio está precisando fazer um exame de próstata, aconselhou Vôvo.

___ Não quero saber de médico safado enfiando o dedão no meu cu, disse o tio.

Carrel conduziu o tio ancião até uma poltrona, ponderando:

___ Bexiga vazia, morte tardia... É educado lavar as mãos quando se chega da rua, tio! O lavabo fica ali...

___ Tá bom, conheço a porra desta casa de cor... eu lavo daqui a pouco! O quê aconteceu com a desgraça dessa campainha?

___ Está com defeito como o senhor, respondeu Vôvo em tom zombeteiro. Só pega no tranco...

___ Olha o respeito, sua harpia!

Vôvo jogou um beijo na direção do tio, colocando os pratos na mesa.

___ A besta do porteiro não queria me deixar subir...

___ O interfone está avariado e o empregado é novo. Não reconheceu o tio, explicou Vôvo.

___ Cadê aquele cachorro idiota? Não late mais quando chega alguém?

___ O Barão ficou de mal com Vôvo. Está fazendo lei do silêncio, disse Carrel

___ São dois veadinhos! Põe o vira-lata na rua, dá veneno pra ele! sugeriu o tio.

___ Menos tio, menos! protestou Vôvo. Nós amamos o bichinho...

___ Homem não ama, sobrinho! Tem tesão...

___ Além de macho velho e com defeito, o tio sofre mais do quê? perguntou Vôvo ironicamente.

___ Eu ofendi alguém? Se quiserem eu vô embora! A Lalinha não ligou que eu vinha, Carrel?

___ Dissimulado! A linha telefônica foi cortada, velhinho! Falta de pagamento, inventou Vôvo.

___ Esta casa tá numa titica de fazer dó, hein! disse o tio, levantando-se.

Foi lavar as mãos e depois os três encaminharam-se para o salão de almoço.

___ Vocês estão na pindaíba mesmo, com três carros na garagem? perguntou o tio.

___ Enfim a divina decadência! Breve seremos sem-teto a protestar em supermercado, shopping-center, preconizou Vôvo ao olhar de censura da esposa. Quem sabe, abra um restaurante à la carte com meu amigo Waldair , em Niterói, desconversou.

___ Prefiro investir em ações, falou Carrel.

___ Não pagam nem a porra da conta do telefone e falam em investir! prejulgou-os o tio.

Carrel olhou para Vôvo com ar de preocupada. O tio podia sair por aí espalhando que estavam falidos.

___ O quê Vôvo diz sobre dividas são pilhérias, tio! Não é Vôvo?

___ Claro, é tudo brincadeirinha, minha páprica!

___ Se eu fosse vocês, passava pra frente este maracanã! aconselhou o tio referindo-se ao apartamento. Pra que cinco banheiros? Só têm duas bundas! E esses quadros valiosos nas paredes? Minha irmã sempre teve mania de grandeza! Deixou uma porra de herança cara demais...

Carrel torceu o nariz não concordando com o tio. Saiu em defesa da falecida mãe. Ela sustentara erros e acertos da filha sem reclamar. Gostava do que era bom. Soube viver. Odiava a mesquinhez. Sempre repetia:

___ Por quê morrer de fome com a despensa abarrotada de comida?

___ Tá bom, tá bom! Era uma metida como tu! Qualquer dia vocês tão comendo o Plutão...

___ É Barão, tio! corrigiu Vôvo, achando que ele se referia ao cachorro.

O animal, ouvindo o nome, surgiu no salão, abanando a calda, timidamente.

___ Taí o boa vida! exclamou o tio.

Vôvo abraçou-o como se quisesse fazer as pazes. Foi aceito nos afagos e o cão começou a latir. Tentou lamber o tio.

___ Não me lambe! Não me lambe, filho da puta!

___Calma, tio! Ele tomou todas as vacinas. Come ração importada, tem banheiro só dele, enfim, é tratado como um bebê, afirmou Carrel.

___ Então são duas bundas e um rabo... Esse aí vive melhor do que eu...

O tio Bocudo, às vezes, se sentia um traste perambulando na vida. Um ninguém a ouvir a mulher palrando que fulano era infeliz, sicrano um coitado. E ele? Mas, um bocado de palavrões a fazia enxergar que também existia. Os sobrinhos estranharam o silêncio do tio. Foi Vôvo quem primeiro falou:

___ O tio não está gostando do aspecto da comida?

___ Tá ótimo! Cozinhas muito bem Vôvo!

___ Está se sentindo bem mesmo, tio? perguntou Carrel cismada.

___ Estou pálido, tá saindo urina pelo meu nariz?

___ Não... O senhor elogiou Vôvo, não percebeu tio?

___ É!...Este lugar é confortável, continuou o tio, apreciando a decoração sala.

___ Há compartimentos numa casa que são importantes. Para mim é a cozinha. Gosto de cozinhar desde moleque, confessou Vôvo. Aprendi a fazer uma carne-de-sol com o João Batista, deliciosa!

___ Não foi com o João, caro! emendou Carrel. Foi com o Waldair!... Adoro banheiros...

___ Sem essa, cozinha pra mim é pra comer, banheiro é pra cagá! disse o tio, recuperado da momentânea emoção.

___ Esse é o tio Bocudo! exclamou Vôvo aliviado.

___ Um troglodita, disse Carrel, sorrindo... Adoro belos banheiros, exalando a pinho. Se fosse do poder público edificaria muitos... Meu lema seria: urine e defeque com gosto e conforto. Odeio essas cloacas que proliferam por aí...

___ Os que existem já têm libertinagem demais... É só pô o pau pra fora e tem neguinho regulando! Pus pra correr, um dia desses, um puto aos berros: isto aqui tá velho, só sai urina, menti. Não tem viagra que dê jeito... cai fora!

Vôvo começou a servir as iguarias e perguntou de modo provocador ao tio:

___ O tio tá mortinho mesmo? Não experimentou catuaba, ovos de codorna, injeção? Nada pela manhã?

___ Nem tesão de mijo, seu sacana! Põe mais comida...

___ A tia deve sentir falta, pressupôs Carrel.

___ Aquela lá deu graças a deus! Dizia que eu machucava ela. Eu não sabia quando a bruaca tava gozando ou sentindo dor...

___ Vai-se o tesão, ficam os colhões, assegurou Vôvo.

___ Vamos almoçar em paz, rapazes! Comer também é prazer, findou Carrel.

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