Filhos $ Amantes(TVD) Cap. 23

Capítulo 23

Na “Chácara do Vôvo” realizava-se a festa de Carrel. A tradicional noite de queijos e vinhos. A cada convidado era exigido trazer tais iguarias. As mesas, espalhadas pelo amplo jardim, eram ocupadas gradativamente. À beira da piscina belos corpos desnudos ou pintados regalavam os olhos menos habituados como se fossem esculturas gregas. Um telão mostrava clips de cantores pops internacionais. Atores, vestidos de fantasias bizarras, faziam performances entre os convivas. Distribuíam mimos, maçãs e cachos de uva. Seguranças, atentos às câmeras colocadas em pontos estratégicos, controlavam toda a ação externa da propriedade...

Quem era Carrel? Homem ou mulher? Na verdade, ninguém jamais a vira. Esse mistério tornava suas festas mais concorridas. Trechos eram gravados, editados e mostrados na programação da tarde das TVs. Famoso apresentador de acontecimentos sociais, Adauri Filho, compilava tomadas em entrevistas... Contam que, aos vinte e dois anos, ela participou de recepção no palácio de Buckinghan, oferecido pela rainha da Inglaterra à celebridades do mundo do cinema. Ela presenciou o encontro de Brigitte Bardot e Marilyn Monroe em pequenos toaletes de senhoras do palácio, discreta. A atriz francesa, aos sessenta anos, declarou:

___ Eu estava intimidada em ser apresentada à rainha. Tivemos de ensaiar uma série de rituais... Não podíamos usar grandes decotes... Nem se vestir de preto, pois na corte, só a rainha se veste de preto. Eram rituais chatos. E quando nós íamos ser apresentadas à rainha, eu corri para os pequenos toaletes de senhoras para ver se o meu nariz estava brilhando ou coisa assim. E quem estava ali? Marilyn! Ficamos, as duas, passando pó no rosto e se olhando. Nós nos cumprimentamos e foi a primeira vez que a vi de perto. Era linda, uma gracinha naquele toalete de senhora, em Buckinghan, pouco antes de sermos apresentadas à rainha. Foi a única vez, na vida, que vi Marilyn Monroe e nunca esquecerei...

Carrel também não esqueceu o encontro das duas estrelas. Foi com pesar que ela compareceu ao funeral de Marilyn em 1962. Ficou intima de La Bardot e por seu intermédio a francesinha veio ao Brasil e tornou as praias de Búzios famosas.

Se perguntássemos a um ou outro convidado se conheciam Carrel, eles responderiam:

___ Ela não existe, é uma personagem virtual...

___ Fixe o olhar naquele ponto e a qualquer momento ela aparecerá, acenando: um luxo!

Carrel, portanto, podia ser uma daquelas pessoas presentes ou a chegar: Miss Planet, por exemplo. Braço direito de Carrel, dirigia a sauna gay Thermas Vapor Dourado. As atenções foram voltadas para ela a entregar cartões da badalada casa de banhos. Conversava com amigos e possíveis novos sigs. Discreta, saboreava o prazer de ouvir narrativas curiosas sobre a vida de Carrel... Velha senhora anunciou, a quem estivesse por perto, que sabia a autêntica história da ex-modelo. Incrédulos, alguns se aproximaram mais.

“Carrel, na realidade, chamava-se Augusto César Carrel. Um gentil mancebo que conheci e privei da amizade aos dezesseis anos. Éramos tão jovens! Com traços delicados, sem ser afetado, vivia a puberdade num bairro da periferia do Rio de Janeiro. Os cabelos compridos, a pele e os olhos claros delineavam uma beleza ímpar. Sua magreza e postura fidalga atraiam a atenção de todos. Um negro, de apelido Tora, corpulento, bandido contumaz, ficou perdido de desejo pelo moço. Passou a persegui-lo. Numa chamada telefônica deixou explícita sua sensação:

___ Gosto de tu e tu vai sê meu...

___ Deixa disso, cara! Sou um homem!

___ Num tem “portância”...tô por dentro dessas batucada diferentes...

___ Cai fora! Vai pro caralho!...

Augusto pensou em contar para os pais o que acontecia. Procurar a polícia e até armar-se. Teve vergonha da situação e nenhuma coragem de enfrentar o degenerado. Envolver-se com um tipo daqueles só abalaria sua reputação. Conhecera Tora num bailinho do clube. Custou a perceber as intenções libidinosas do calhorda. Ficava sisudo quando as garotas se aproximavam para flertar com o escolhido. Surgia nos bares e lanchonetes que Augusto freqüentava. Se o jovem voltava para casa tarde da noite, encontrava-o esperando nas esquinas. Como enfrentá-lo? Era forte e brigão! Além disso um marginal! Na família de Augusto havia um primo que ingressara na senda do crime. Ligado a conhecido bicheiro afastara-se dos parentes para viver como meliante. Vulgo “Pacau”, pois faltava-lhe um dedo, era dono de um ponto de drogas. Não queria seguir esse destino, transformando-se num criminoso. Precisava arranjar uma saída honrosa. Não podia entregar-se à pressão do pervertido. Servir de fêmea para o malandro, enojava-o... Em certa madrugada, alcoolizado, Tora ligou:

___ Sô eu, Carrel! Vem dengá teu Tora! Tô bebum, sem ninguém...

___ Vai tomar no cu, seu merda! Pára de me tratar como se eu fosse mulher! Vai procurar tua turma...

___ É assim né! Tenho um berro...Todo dia vejo tua mãe passá pa comprá pão na padaria... Não custa nada enchê a velha de arrebites...

Aquele anormal o estava levando ao desespero. Precisava prevenir os pais, convencê-los a se mudarem do bairro. Tora podia cumprir a ameaça. Tinha que sumir, não atender mais seus telefonemas. Como livrar-se do pesadelo? A avó, nos momentos intrincados, dizia:

___ Os problemas do mesmo jeito que surgem, desaparecem. É só dar tempo ao tempo...

Augusto voltava para casa de ônibus. Viu sentado num banco o primo Pacau. Foi notado por ele também:

___ E aí Guto? Não fala com os pobre?

___ Como vai primo?

___ Só nas quebrada... O garotão cresceu! Como vai a vida?

Não podia responder que estava tudo bem. Contou o quê o atormentava. Pacau conhecia Tora. Indignado, deixou escapar:

___ Nego perobo! Com parente meu, não!

___ Dá só uma biaba nele, primo!

___ Fiquei de bronca com esse puto, garoto! Quem vacila, baila na curva...

Augusto sentiu-se mais aliviado ao dividir o problema com outrem. E qual não foi sua surpresa ao deparar, um dia, com o Tora. Este, ao vê-lo, baixou os olhos, mudou de calçada. Foi a última vez que o encontrou. A polícia achou-o morto num matagal. O pênis decepado, uma estaca enfiada no ânus, o rosto desfigurado. Acerto de contas entre malfeitores, concluiu a lei. Hoje Pacau, convertido, é respeitável pastor evangélico, depois de cumprir pena em Bangu 1. Quanto a Augusto...”

A senhora não terminou a narrativa. Alguém iniciou outra história sobre Carrel:

___ Esse é seu nome de guerra. Foi garota de programa em São Paulo, modelo em Nova York. Casou com um nobre italiano. Ficou rica e famosa. Vive em Saint-Tropez...

___ Nada disso, queridinha! protestou Loreta Fering. Carrel era um transexual que virou mulher. Fez operação em Marrocos. Vive com ex-playboy, bem mais velho do que ela. Esta propriedade foi presente dele...

___ Vejam! disse um convidado: é ela!

Uma sombra passou em frente da janela principal da casa. Todos olharam. Um aceno e a festa continuou...

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