Filhos $ Amantes (TVD) Cap. 27

Capítulo 27

Rafael sentou-se na cama do hospital. Esperava que viessem buscá-lo. Fora operado semanas atrás. Instalaram-lhe alguns pinos na perna esquerda. O que restava agora era a recuperação. Usaria uma bengala durante certo tempo. Aos dezoito anos sentia a vida profissional arruinada perante tamanho acidente. Parecia ouvir o locutor esportivo, da principal rádio da cidade, narrar:

___ “ Bola nos pés de Firula, avança para o campo adversário... Que beleza minha gente!... dribla um, dois... olho nele... vai marcar...”

“Pedron, um misto de técnico e empresário, mantinha-o num time amador com o sonho de inclui-lo em grande clube da capital. Dentre os outros jogadores era o preferido. Após doses de uísque a mais, passando a mão em sua perna, confessou:

___ És o melhor de todos! És meu Firula dos ovos de ouro! Não deixarei que me afastem de ti...

___ Ninguém vai afastar a gente, desencana! disse Firula.

___ E teu pai?

___ Quando ele toma “umas e outras” fica com a língua solta... Não entende minha amizade com um cara mais velho...

___ Achas mesmo que sou uma bichona?

___ Tás de caco cheio também, vamo nessa!

___ Vou até o banheiro dar um mijão... Queres dar a última balançada, moleque?

___ Vai te fudê, Pedrão!

Pedron se infiltrara em seu cotidiano sem que ele percebesse. Privilegiava Firula com presentes, moto, com quase tudo o quê demonstrasse interesse. Tinha fama de cobiçar adolescentes. Flagrou-o, logo no inicio, a expiá-lo no alojamento onde o time dormia.

___ Que foi Pedron, não consegues dormir? perguntou Firula.

___ Vim ver se vocês estão cobertos... A temperatura baixou... Não quero ninguém resfriado... Vai, cobre-te...

O pai, estivador, não via com bons olhos o relacionamento entre os dois. Reclamava quando Pedron ia buscá-lo de moto ou de carro.

___ Não vejo esse rapaz sair com garotas! É pra cima e pra baixo com esse esquisito... Não tô gostando nada disso!

___ Num se aperreie, homem! O Pedron só qué o bem do bichinho... é só “baba”, procurava tranqüilizar o desconfiado pai, a madrasta baiana.

___ Não fiz filho pra andar cheirando o rabo de veado...

Pedron considerava mais conveniente que a mulherio ficasse longe do time. E se eles insistiam em procurá-las dizia:

___ Que tal comermos pizza e beber coca cola, seus tarados?

Ele tinha planos de muitas cifras para alguns do time, principalmente para Firula. Em breve, sua maior promessa seria destaque na mídia como Kaka, Gil, Diego, Robinho...”

A enfermeira entrou no quarto, tirando-o das recordações:

___ Não vem ninguém te buscar, Rafael?

___ Acho que sim... vô dá um tempo... depois bato um fio lá pra casa...

“ Sua infância foi penosa. Não por falta de dinheiro. O pai, ainda não viciado, virava-se no cais para que nada faltasse à família. Sem entender, viu a mãe, após desentendimento do casal, abandonar o lar, levando a irmã ainda bebezinho. O pai ficara muito aperreado. E se perguntava:

___ Quando a mãe e o nenê vão voltar?

O pai, com rancor, respondia:

___ Esquece aquela imunda... a criança não é minha... elas se perderam no mundo...

Aos oito anos, foi difícil tirá-las do pensamento. O mundo era tão grande e elas deviam ter se perdido mesmo, concluiu. Aos dez anos conheceu a substituta da mãe. Nordestina temente a Deus, impregnada de religiosidade e regras. Obrigava-o levantar-se cedo, mesmo no frio, rezar, ajudar na arrumação dos cômodos. Suas estripulias eram punidas com severidade.

___ Vai ficá de joelho no milho, seu abestado! falava ela.

E quantas vezes não ficou ajoelhado sobre o milho num quarto escuro! O pai não mexia uma palha para mudar aquela educação. Trabalhava, se entregava à bebida lentamente, arranjava arenga.

___ Eta homem doido! Deve sê encosto ou mandinga feita pela ex-mulé, dizia a madrasta.

Ela, na cozinha, adicionava ao feijão carne seca e quiabo. Completava com salada de maxixe, cebola e tomate. Rafael embolava a comida na boca, ouvindo reprimendas:

___ Engole, engole tudo! Esse bichinho é todo nhenhenhém... só pensa na “baba”com a molecada...

___ Se queres sê um grande jogador come... Essa gororoba tem sustança, aconselhava o pai em raros instantes de bom humor...

Citava Garrincha, Pelé, Rivelino, Zico, Sócrates, Romário... O crescimento, livrou-o do que julgava crueldade feminina. Aluno aplicado, no segundo ano do segundo grau, conheceu Pedron numa pelada de praia. Pedron notou naquele mulato de corpo atlético, chute forte, petulante, um craque. Conduzia a bola sem dar chance para o adversário roubá-la. Batizou-o com o cognome Firula. Livrou-o do serviço militar.

___ Teu campo de batalha é outro, moleque! dizia Pedron.

Quando a artimanha da pizza e coca cola não funcionava, indagava curioso:

___ E então, gostaste da putinha?

___ Bom, muito bom... melhor do que pizza de mussarela... só que dá uma larica depois, respondia Firula.

___ Usaste camisinha?

___ Ela me obrigou a usar...O quê mais queres saber?

___ Chupou teu pau?

___ Claro! Disse que nunca viu tão grande... Se quiseres podemos metê os dois nela... Vai sê uma suruba legal! Tás precisando...

___ Quem não tem apetite, não deve ir pra cama nem pra mesa, já disse Denise Frossard.

___ Quem é a gostosa?

___ É uma juíza e deputada, seu tiriça!

Foi ainda Pedron que o conduziu para o hospital. O pai, caído na frente do prédio, não conseguia subir a escadaria, bêbado. Rafael tentou socorrê-lo. Agitado, no alto da escada, o pai desvencilhou-se dele e o empurrou. Rafael rolou os degraus e não conseguiu erguer-se, gemendo de dor. Os vizinhos acorreram, a madrasta ligou para Pedron, o pai não parava de gritar:

___ Matei meu filho, Rafael! Aleijei meu menino!”

Rafael concatenava as idéias. Voltaria a estudar. Seria um advogado, prestaria concurso para o Banco do Brasil. Adeus Firula! Ouviu a voz de Pedron:

___ Estás pronto para ir embora, Firula?

___ Não me chames mais desse apelido! Sou apenas Rafael... pensei que não viesses...

___ Falei com teu pai, vais lá pra casa! Pelo menos por enquanto... O apartamento é grande... Que achas?

___ Não acho nada, Pedron! O que resolveres estará bem!

___ Já levei tuas roupas e objetos... Ânimo moleque! A vida continua... O time vai te visitar no final de semana, a Eulália também... Não marquei nenhum jogo... Podes me ajudar a treinar a molecadinha...

___ É... organizar as fichas, os uniformes, delimitar o campo na praia, armar as traves... limpar privadas...

Pedron, diante de sua amargura, procurou ampará-lo para que andasse. Rafael recusou a ajuda. Apoiou-se na bengala e se encaminharam para o estacionamento. Na rua, de carro, parados no semáforo, dois panfletos chegaram às mãos do jovem. Num estava escrito: Jesus te ama; no outro: Thermas Vapor Dourado te espera...

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