Filhos $ Amantes (TVD) Cap. 47

Capítulo 47

O professor Papeco permanecia na sala, amarrado numa cadeira de espaldar alto e forrada de camurça. Vestia um roupão de banho azul. A cabeça pensa. Não sangrava. Se não estivesse preso, se suporia um mal súbito ou suicídio. Um aparelho de CD permanecia ligado. Pela porta de entrada alguém saia. A voz da cantora parecia embalar seu sono eterno.

“Se eu voar/ Sem saber onde vou/ Se eu andar/ Sem conhecer quem sou/ Se eu falar/ E a voz soar com a manhã/ Eu sei.../ Se eu beber dessa luz que apaga a noite em mim/ E se um dia eu disser que já não quero estar aqui/ Só Deus sabe o que virá/ Só Deus sabe o que será/ Não há outro que conhece tudo que acontece em mim.../ Se a tristeza é mais profunda que a dor/ Se este dia já não tem sabor/ E no pensar que tudo isto já pensei/ eu sei.../ Se eu beber dessa luz que apaga a noite em mim/ E se um dia eu disser que já não quero estar aqui/ Só Deus sabe o que virá/ Só Deus sabe o que será/ Não há outro que conhece tudo que acontece em mim/ Se eu beber dessa luz que apaga a noite em mim/ E se um dia eu disser que já não quero estar aqui/ Na incerteza de saber/ O que fazer o que querer/ Mesmo sem nunca pensar/ Que um dia vais pensar/ Não há outro que conhece tudo que acontece em mim...” ( EU SEI de A. FONSECA E SARA TAVARES ).

A faxineira foi quem encontrou, no dia seguinte, o corpo. Ela fazia a limpeza dos amplos e poucos apartamentos no prédio de três andares. De confiança, tinha todas as chaves. Estranhou a porta destrancada. Seu grito foi abafado pela mão levada à boca ao deparar com a cena. Recuperada do primeiro impacto, vistoriou se não faltava nada. Tudo aparentemente no lugar. Apenas a taça, sobre a mesa da sala, que de modo instintivo pegou, levou para a cozinha, lavou e guardou. Tratou de pedir socorro. Seria discreta em suas declarações. Sabia da preferência sexual do professor, além da bebida. Ele tratava-a com generosidade e respeito... Não permitira que um garoto chegasse ao professor. Vira-o a rondar o prédio a semana passada.

___ O tio me conhece! Ele prometeu me arranjá umas roupas. Chama ele dona!

___ O professor está viajando, vai embora!

Aquele trombadinha teria conseguido entrar e assassinado o infeliz? Mas a porta da rua só abria quem era morador. E todos ali eram pessoas veneráveis...

“O tio Bocudo, quando soube da morte do amigo, ficou aparvalhado. Que maldição acontecia? Vôvo, há dois meses, falecera dentro de um ônibus de enfarte. Carrel sofrera muito. Desta vez era o professor que morria com suspeita de assassinato. A autópsia revelaria a causa mortis. Era mais lógico que fosse de doença no fígado! Bebia de forma escancarada... Não iria ao enterro. Suas pernas não agüentariam se tivesse de carregar o caixão. Era um covarde. A esposa Lalinha que não insistisse. Daria uma desculpa qualquer para não ir. Ela que fosse sozinha ou com a desditosa da Carrel. Evitaria ter que dar explicações para os curiosos... O professor era o único que o suportava. Não reclamava de sua impertinência e desaforos. Abrindo o guarda-roupa para ver o estado do terno preto, lembrou da confusão que arranjara numa feira de domingo. Jovem feirante desconfiou que ele enfiara algo na sacola sem pagar.

___ Aí tio, vai abrindo essa sacola! Mostra o que pegou sem pagar...

___ Que merda tás falando, palhaço?

___ Vô dá uma geral nessa sacola...

___ Vai encontrar tua velha, de perna aberta!

___ Olha o respeito, tio!

___ Tio é a puta que te pariu! Não tenho sobrinho burro como tu...

___ O tio tá querendo arenga... Abre a sacola, anda! Tem coisa aí...

O professor, a comprar na barraca ao lado, presenciou o Tio Bocudo a enfiar a cabeça do acusador, na sacola, agarrando-o pelo pescoço. Tirou-o dali antes que os outros feirantes o linchassem... Agora, quem escutaria suas reclamações contra Lalinha? Reuniu forças e foi ao enterro...”

“Igor também soube do ocorrido com o cliente de forma tão estranha. Clidenora aconselhou-o a não ir ao velório. Não despertar suspeita para cima de ambos seria prudente. Não imaginavam o quê estava por vir. Tinham jantado dias antes na companhia do professor. Ela foi ao jantar pela curiosidade de conhecê-lo. Ele preparou um caldo de nome engraçado: Cabeça-de-Galo. Uma delícia! repetia ela. O professor explicou que “o caldo cabeça-de-galo era um prato típico, regional, tradicional e muito apreciado na culinária nordestina. Devido ao seu poder energético era considerado um potente restaurador de energias, sobretudo após um dia de trabalho ou esforços físicos intensos. Na Paraíba, também era muito conhecido como ‘cura ressaca’ e ‘caldo da caridade’ ou simplesmente ‘sopa de cabeça-de-galo’. Esse prato vem da cozinha da colonização. Acredita-se que é uma herança dos costumes dos escravos.” Beberam, conversaram, animados.

___ Por que não dormem aqui? perguntou o professor. O apartamento é grande. Há três quartos...

___ Não, disse Clidenora. Obrigada! Não durmo bem fora de casa!

Igor a deixava falar. Não tinha certeza se a esposa entraria no jogo que o professor engendrava: os três transando. Ela sorria o tempo todo não demonstrando embaraço em saber do relacionamento dos dois homens. O professor não a tocaria. Queria ver o casal copulando.

O rapaz, remexendo em vídeos e dvds, encontrou o filme Sunday, Bloody, Sunday (Domingo Maldito) de John Schlesinger.

___ Não assisti a este filme, professor! Como é a história? perguntou ele.

___ É a história do envolvimento de um jovem com um homem mais velho e uma mulher: Peter Finch, Glenda Jackson e Murray Head...

___ Nunca transei a três, observou Clidenora rindo, arrependendo-se depois do que tinha dito, desviando o olhar de Igor.

___ Então vais gostar deste, falou o professor: Threes Owe (Três Formas de Amar) de Andrew Fleming. É mais moderninho...

Começaram a ver o filme. Clidenora havia tomado tanto vinho que anulara a propalada ação do caldo. Adormeceu na poltrona. O professor ajudou Igor a carregá-la para um dos cômodos. Ajeitaram-na em uma cama.

___ Não está acostumada a beber, professor!

___ Ela é muito graciosa, parabéns! Tem certeza que não acorda?

___ Normalmente tem sono pesado, tranqüilizou-o Igor. Tá a fim de algo?

___ A presença dela não te inibi?

___ Sou profissional... Onde quer brincar, professor?

O professor abraçou-o ali mesmo. Pediu para que ficasse nu. Queria olhá-lo excitado e a Clidenora adormecida.Tinha um pedido a fazer para Igor. Não tivera coragem ainda. No momento propício o faria.

___ E se ela despertar e vir-me beijando tua bunda, assim... e chupando teu pau tão duro, insistiu o professor.

___ Pode ficar sossegado, ela não despertará...

Pela manhã o casal partiu...”

No dia de sua morte, o professor voltava para casa. O carro mais uma vez apresentara defeito. Entardecia. Tomou um ônibus. Reparou Jupira sentada num dos assentos. Ao notá-lo ela sorriu. Sentou-se ao lado dela. A jovem carregava um embrulho.

___ O que é isso? perguntou o professor.

___ Ganhei um vestido!

___ Resolveste virar mulherzinha?

___ Não sei... como garoto os fariseus respeitam mais...

___ Estás indo para onde?

___ Ia procurar o tio!

___ A mim?!

___ É... Aquela mulher não deixa eu entrá...

___ Que mulher?

___ A faxineira pentelha...

___ Como descobriste meu endereço?

___ Segui o tio, um dia...

___ O que desejas de mim?

___ Sonhei que o tio precisava levá um lero com eu...Tinha um trabalho pra eu detonar...

O professor olhou-a atentamente. Aquela criança podia realizar o que vinha conjeturando. Não teve coragem de pedir para Igor. Mesmo ao tio Bocudo pensou em recorrer. O velho amigo dissera, abandonando as atitudes de bronco: o homem é violento e drástico em suas decisões. Pedro Nava deu um tiro nos miolos! Afastou essa hipótese, sabendo de sua fragilidade diante da morte: não sei matar Papeco, nem de esganar a Lalinha quando me enche o saco...

Jupira sonhara com ele. Tudo estava preparado. Não comprometeria seu anjo exterminador. Pediria que o ajudasse em determinadas atitudes que ele não podia realizar sozinho. Desceram no ponto final. Caminharam para a casa do professor.

___ Aquela dona chata, vai estar lá, tio? Ela pensa que sô menino! disse Jupira.

___ Não, hoje é folga dela. Ninguém vai atrapalhar...

___ O tio vai querê “aquelas coisas”?

O professor não respondeu. Chegaram ao prédio. Subiram lances de escadas até o terceiro andar. A menina seguia-o muda. Entraram no apartamento e ela exclamou:

___ Como é legal aqui, tio! Aquela estátua... é tua mãe?

___ Não, é uma réplica da Pietá... Fica à vontade, pode olhar tudo... Vou até a cozinha preparar um suculento lanche, falou o professor.

“Jupira, quando viu a foto do professor estampada num jornal de banca, compreendeu a esquisitice de seu pedido e o porquê lhe dera tanto dinheiro... Ele tratou-a como a uma princesa. Pediu para que tomassem banho juntos. Parecia feliz. Foi carinhoso. Passou xampu em seus cabelos curtos, ensaboou-a. Ela permanecia encantada com a dimensão do quarto de banho. Tinha até banheira! Ficaram no seu interior, por um bom tempo, envoltos em espuma. Deixou-o satisfazer-se como fizera na praia. Doeu um pouco, mas ele prometeu pagar o que ela quisesse. Após, secou-a, perfumou-a e pediu para que usasse o vestido.

___ Ponho a calcinha também, tio?

___ Não, ainda não... Só quando fores embora...Usa estas luvas pretas, pediu ele, vestindo um roupão de banho azul.

___ Nossa, pareço uma madama! disse Jupira, admirando as mãos.

___ Pareces um anjo, pareces Gilda (Rita Rayworth) disse, referindo-se ao filme de Charles Vidor...

___ E esta roupa velha?

___ Coloco numa saco depois, disse o professor.

A mesa da sala estava posta com o que ela mais gostava de saborear. A jovem achou curioso a taça que permanecia à frente dele sem ser tocada. O professor ora olhava para o objeto, ora para Jupira mastigando. Ele tinha um sorriso nos lábios indecifrável. Ao fartar-se de comer ela disse:

___ Vô dá de pinote, tio! Parece que vai chovê... Tá ouvindo o vento? Quem vive nas ruas sabe das tempestades...

Ele ergueu-se, tirou a mesa e foi buscar algo. Voltou, trazendo metros de cordão e vários maços de notas. Colocou o dinheiro na sacola com as vestes usadas. Sentou-se numa imponente cadeira. Pediu para Jupira que o amarrasse. Seria uma brincadeira. Ele se soltaria, logo que ela fosse embora, como num truque.

___ É mágica feito a do Mr. M, tio?

___ Mataste a charada...

___ O tio vai aparecer em outro lugar?

___ Isso... vou aparecer em outro lugar mais tranqüilo, sem sofrimento, sem o peso da vida...

Ela cumpriu suas ordens a risco, amarrando-o do pescoço aos pés. Apertou bem os nós. Deu-lhe de beber o conteúdo da taça, depositando-a depois sobre a mesa. Por último ligou o aparelho de CD. Sorriram um para o outro e ela saiu. No corredor, espiou a dinheirama dentro da sacola. Nunca vira tanta “bufunfa”. Descendo as escadas ouviu a voz da cantora: Só Deus sabe o que virá/ Só Deus sabe o que será/ Não há outro que conhece tudo que acontece em mim...”

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