MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

“A educação é um gesto nobre, é a respiração mansa e natural, é o compreender de todos os sentimentos próprios e alheios, é o andar, o comer, o conhecer dos valores de seu próprio interior; e isso ninguém poderá ou conseguirá mostrar ou ensinar. O bem que uma alma possui, é a primeira característica que o corpo adota como parte de si e ao nascer, podemos usufruir desse bem, desse único e precioso bem. Somente enquanto estamos vivos. Não antes, nem depois. Só enquanto estamos vivos."

Patricky Field

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

MARCO INICIAL DO REALISMO NO BRASIL

Machado de Assis, sem freqüentar normalmente o ensino formal, transformou-se no maior escritor brasileiro, abrindo com sua obra o caminho para a renovação das letras nacionais, trazendo, na segunda fase da sua produção literária, as marcas fortes do Realismo. É o exemplo de um homem que cresce, partindo do nada para a glória, contrariando alguns dos preceitos realistas, que colocavam o ser humano sob o jugo esmagador do determinismo. Nascido no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, filho de mulato em uma sociedade ainda escravocrata, paupérrimo, sofrendo de gagueira e epilepsia, nada indicaria que Joaquim Maria Machado de Assis teria, ao morrer em 1908, um enterro de estadista, seguido por milhares de admiradores pelas ruas da cidade em que nasceu, viveu e morreu. Autodidata, aos 15 anos começa a trabalhar em tipografias, onde conhece escritores importantes, como Manuel Antônio de Almeida. Em 1855 inicia sua carreira literária. Consegue, logo depois, um emprego na Secretaria da Fazenda. Trabalha a vida toda na burocracia, na qual vai galgando posições até ser Ministro substituto. Mas a carreira burocrática é apenas uma forma de ganhar o sustento, ainda que humilde, que o possibilita escrever. Contribui com diversos jornais e revistas e, com a publicação de seus livros de poesia, contos e romances foi ganhando em notoriedade e respeito. Em 1869, casa-se, enfrentando grave preconceito racial da família, com a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais. Em 1876, é considerado, na companhia de José de Alencar, um dos maiores escritores brasileiros. Em 1881 inicia a publicação dos seus romances realistas. Em 1896 é um dos principais responsáveis pela fundação da Academia Brasileira de Letras, do qual é eleito presidente vitalício. Em 1904 morre Carolina. Quatro anos depois, em 1908, Machado de Assis, consagrado como o maior escritor brasileiro, é enterrado com pompa no Rio de Janeiro. O mulato paupérrimo do Morro do Livramento tornara-se um dos homens mais respeitados do país.

Introdução

Memórias Póstumas de Brás Cubas – publicado em 1881, é o primeiro romance realista, iniciando a fase de maturidade de Machado de Assis. Além de inaugurar o Realismo brasileiro, apresenta as mais ousadas experimentações na prosa do país e introduz o romance psicológico na literatura brasileira. Em vez de enfatizar os espaços externos, foca o interior dos personagens, com suas contradições e problemáticas existenciais.

Narrado por um defunto de forma agressiva, que começa contando detalhe do seu funeral. Utilizando vários recursos narrativos, Machado surpreende a cada página com sua ironia cortante e, acima de tudo, com a inteligência que consegue prender o leitor. Com idéias modernistas e descobertas da psicanálise, esta obra irônica eleva a literatura brasileira a um patamar jamais antes atingido. A obra é organizada em blocos curtos, os 160 capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, desenvolvem segundo o ritmo do pensamento do narrador.

O romance apresenta a vida inútil e despercebida de Brás Cubas, relata a história de um homem rico, de uma nobreza duvidosa, um tanto forjada pelos ascendentes, que passa pelo mundo de maneira superficial, despreocupada e egoísta. Nasce rico, é mimado pelo pai, tem uma mãe de saúde sensível, um tio (João) que aparece como um libertino, outro tio cônego e outros parentes que, de uma ou outra maneira, influenciam na formação moral do menino terrível que ele foi. Aos dezessete anos apaixona-se por Marcela, uma mulher volúvel, interessada muito mais no ouro, na riqueza, na ascensão social, que no amor. Ela brinca com o amor do garoto, trocando carinhos com os presentes que Brás Cubas trazia.

Presenteia tanto a amada que fica endividado e é abandonado pela amante.

Protegido e perdoado pelo pai que fica irritado com o gasto excessivo, é enviado para a Europa em Coimbra – Portugal, estudando direito e vivendo sem objetivos de vida. Típico burguês da segunda metade do século XIX encarna o homem que passou a vida sem conquistar nenhuma realização efetiva. Se na infância o personagem fora uma criança abastada e protegida, torna-se um jovem adulto leviano, em busca da melhor maneira de tirar vantagem. Sua conduta fica explícita quando descreve sua formação universitária na Europa:

“Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim – embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e política para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia a casca, a ornamentação (...)”.

Quando volta ao Brasil, a pedido de seu pai, por causa da doença da mãe, se defronta pela primeira vez com a questão da morte e vive então um momento de introspecção e reflexão. Quando reencontra Marcela velha e doente, com o rosto deformado pelas bolhas, retoma a idéia da passagem do tempo. A isso Brás chama de teoria das edições da vida, anunciada nos primeiros capítulos, mas comentada muito depois.

“Pois sabei que, naquele tempo, estava eu na quarta edição, revista e emendada, mas ainda inçada de descuidos e barbarismos; defeito que, aliás, achava alguma compensação no tipo, que era elegante, e na encadernação, que era luxuosa.”

O pai deseja que ele se case com Virgília, a filha de um político, o Conselheiro Dutra, mas ela acaba se casando com o político Lobo Neves, interessada no título de marquesa. Brás Cubas, no entanto conhece e se interessa por Eugênia (filha de uma amiga pobre da família) que é coxa. Isso diminui, e muito, o amor de Brás Cubas por ela. Lobo Neves rouba-lhe a noiva e a candidatura de deputado, prometida pelo pai da moça. Virgília viaja com o marido, mas quando retorna, acaba transformando-se em amante de Brás Cubas. É o amor que marca nossa personagem. Acobertados por dona Plácida. Antes de o caso começar, morre o pai de Brás. Começa então um litígio entre ele e a irmã Sabina pela herança. Os amantes vivem seus dias de glória, que acabam quando Lobo Neves parte para o Norte, para mais um cargo no governo. Brás, sozinho, namora então a sobrinha do cunhado Cotrim, mas a garota morre aos 19 anos. Ele, que já se tornara deputado, fracassa na tentativa de virar ministro de Estado. Frustrado, funda um jornal de oposição.

Brás Cubas reencontra–se muitos anos depois com um amigo da infância, Quincas Borba. Quincas é um mendigo que vai enlouquecendo e ao morrer, está completamente fora de si. Esse amigo doutrina-o no Humanitismo, uma filosofia desenvolvida por ele e apoiada no Positivismo e no Evolucionismo. Brás Cubas chega a deputado, perde a chance de ser ministro e passa para a oposição. Pouco a pouco vê parentes, amigos e conhecidos enlouquecer, morrer, desaparecer. No final da vida quer inventar um emplasto, que aliviaria a melancólica humanidade, curando todos seus males. É a primeira e última tentativa de deixar sua marca no mundo, de redimir-se de uma vida vazia e sem propósito. Procurado por Virgília, já idosa, Brás ampara dona Plácida, que morre pouco depois. É um período cheio de perdas e decepções: morrem Marcela, o louco Quincas Borba, Lobo Neves e Eugênia aparece em um cortiço, triste e amargurada.

Ao tentar inventar um emplasto que lhe daria a fama tão desejada, Brás Cubas adoece e recebe a visita da ex-amante Virgília e do filho dela. Morre depois de um delírio, aos 64 anos, sozinho, sem deixar filhos e sem encontrar o seu lugar no mundo. Decide, então, contar sua vida em detalhes, pela experiência da morte, sua narrativa segue a lógica do pensamento.

Esse é um rápido esboço do enredo de "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Nesta obra, o que menos interessa é justamente a sequencia dos acontecimentos. Machado deixa de lado os pormenores, a lógica do enredo, a cronologia, partindo para a intimidade das personagens, principalmente de Brás Cubas. Há uma profunda crítica à sociedade expressa pelo narrador nas suas colocações.

No início do romance somos surpreendidos pela dedicatória:

“Ao verme/ que / primeiro roeu as frias carnes/ do meu cadáver/ dedico/ como saudosa lembrança/ estas/ memórias póstumas". Estamos na presença de um defunto autor, alguém que morreu e, desde eternidade, decide contar sua vida, partindo do seu enterro, acompanhado por onze amigos.

DO ROMANTISMO AO REALISMO

A obra de Machado de Assis pode ser dividida em dois momentos bem distintos: as obras da juventude, com forte influência do Romantismo e seu progressivo amadurecimento, até chegar ao Realismo de suas obras da maturidade. Entre estas, as mais destacadas e consideradas são Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899). Machado de Assis elevou a prosa brasileira ao nível das melhores escritas no mundo em sua época. Sua obra não almeja mais apenas divertir, moralizar ou afirmar valores nacionais, mas visa analisar o espírito humano, refletindo sobre valores universais, sem jamais perder de vista a realidade brasileira.

NARRADOR – O PERSONAGEM CENTRAL

O romance tem o objetivo de desarticular: é narrado por um defunto, que reconta a própria vida, do fim para o começo, num relato marcado pela franqueza. "Falo sem temer mais nada", diz o morto. É Brás Cubas, personagem de grande densidade psicológica, quem comenta as próprias mudanças. Brás Cubas, classificado pelos críticos como o grande hipócrita da Literatura brasileira, é um sujeito sem objetivos e muito contraditório, sempre rondando a periferia do poder.

AS INOVAÇÕES DE MACHADO DE ASSIS

Escritor dedicado à problematização e ao questionamento da função da Literatura, Machado de Assis inova, neste livro, a temática, a estrutura e a linguagem.

Na temática, investe na complexidade dos indivíduos, que retrata sem nenhuma idealização romântica:

“(...) Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis (...)”

Aqui, por exemplo, constrói uma frase realista típica, contrapondo ao romantismo do envolvimento de 15 meses os 11 contos de réis. Ao contrário dos personagens românticos, que se movem por um objetivo, e estabelecem metas ou fazem algo notável, a trajetória de Brás Cubas e dos personagens que o circundam nada tem de especial.

A estrutura de Memórias Póstumas de Brás Cubas tem uma lógica narrativa surpreendente e inovadora. A seqüência do livro não é determinada pela cronologia dos fatos, mas pelo encadeamento das reflexões do personagem. Uma lembrança puxa a outra e o narrador Brás Cubas, que prometera contar uma determinada história, comenta todos os outros fatos que a envolvem, para retomar o tema anunciado muitos capítulos depois. A aparente falta de coerência da narrativa, permeada por longas digressões, dissimula uma forte coerência interna, oferecendo ao leitor todas as informações para conhecer a visão de mundo de um homem que passou pela vida sem realização nenhuma, apenas ao sabor de seus desejos. Logo nas primeiras páginas, o escritor brinca com a expectativa do leitor de chegar logo às ações do romance. Machado de Assis, por intermédio do seu narrador, se dirige diretamente ao leitor, metalingüisticamente, para comentar o livro. Diz Brás Cubas:

“Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem”.

Ao usar a metalinguagem, Machado convida o leitor a refletir sobre a estrutura da obra e perceber dois níveis de leitura: a que revela diretamente o personagem e a que o faz objeto de crítica do autor.

Machado de Assis foi o mais ousado dos escritores brasileiros anteriores ao Modernismo (1922) na experimentação de novas formas de expressão, nesta obra, mostra sua articulação perfeita entre o texto e a realidade:

Exemplo: para traduzir a frustração de Brás Cubas quando não consegue se tornar ministro, a solução do autor foi deixar o Capítulo 139 em branco. No capítulo seguinte, explica:

“Há coisas que melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo anterior”.

O autor também questiona a forma tradicional de expressão, acreditando que falta a ela a capacidade plena de levar ao leitor os sentimentos do personagem. É essa preocupação que faz Machado de Assis subverter a forma para adaptá-la ao conteúdo que deseja transmitir, como neste trecho do Capítulo 55 – “O velho diálogo de Adão e Eva” –, em que descreve o auge da paixão entre Brás Cubas e Virgília:

A ironia é um dos traços mais marcantes da obra de Machado de Assis. Entendem-se como mais um recurso para combater as verdades absolutas, das quais desacreditava por princípio. A construção irônica prevê sempre outros sentidos para o que é dito. Machado de Assis utiliza-se da ironia como um recurso para fazer o leitor refletir sobre as declarações, pensamentos e conclusões do narrador Brás Cubas.

Ao comentar, no primeiro capítulo, sobre o amigo que lhe presenteia com um empolado discurso fúnebre, o narrador agradece as palavras ditas em tom de comoção exagerada com uma frase:

“Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei".

O desvio de assunto é outro elemento importante da linguagem machadiana. Consiste na interrupção da narração, que envereda por assuntos desvinculados do tema inicial, mas mantendo com ele alguma analogia criada pela mente de quem conta. Essa analogia, com algum esforço, pode ser percebida pelo leitor, desde que ele se mantenha atento.

O leitor da obra é sempre questionado por Machado, (um diálogo do autor com o leitor) que mobilizam a emoção e a imaginação. É o que acontece, na parte inicial do romance, quando Brás Cubas deixa em suspenso por vários capítulos a explicação para sua morte, que prometera desde o início, para passear por outros assuntos. Quando volta a falar da causa de sua morte, é para comentar, com ironia “... acabemos de uma vez com o nosso emplasto”. Como se já tivesse explicado antes do que se tratava!