Análise de "O Mal" de Paul-Ricoeur Parte I

I – A experiência do mal: entre a repreensão e a lamentação

O fato de a tradição judaico-cristã colocar fenômenos como o pecado, o sofrimento e a morte num mesmo plano dá um caráter enigmático ao mal. Assume-se a concepção da retribuição em que a realização do mal, individual, coletiva, ou mesmo hereditariamente, engendra o sofrimento como uma espécie de pena. No entanto, o princípio da retribuição não justifica o mal que acomete aqueles que agem bondosamente. E, na medida em que o sofrimento é tomado como ponto de referência que a questão do mal se distingue do pecado e da culpabilidade. Antes de apontar uma profundidade comum no fenômeno do mal cometido e do mal sofrido, é preciso afirmar a disparidade de princípio.

O mal moral – pecado, para a religião – é o que torna a ação humana digna de imputação, de acusação e de repreensão, sendo a imputação consigna a um sujeito uma ação passível de apreciação moral, a acusação à violação do código ético dominante na comunidade e a repreensão o juízo de condenação, em virtude do qual o autor é considerado culpado, merecendo, portanto, a punição. A repreensão é, enquanto condenação, a declaração desse castigo que tem como finalidade, infligir o sofrimento àquele a quem é imputado o mal moral. Por seu turno, existe uma correlação tênue entre mal moral e sofrimento. É claro que o que faz sofrer, num primeiro entendimento, não é o homem (pois, para este, não há necessidade de uma ação direta), mas algo enigmático (divinizado), que tem o poder de impor a pena. Entretanto, há instantes em que se reconhece a ação humana como agente direto do mal. Sobre isso, mencionam-se as lamentações do rei israelita Davi no Antigo Testamento bíblico. É oportuno dizer que algumas dessas, lidas no livro dos Salmos, reconheciam que a vitória de seus inimigos estava relacionada a uma de suas falhas. É o caso, por exemplo, das diversas adversidades que lhe acometeram após o crime contra Urias que tinha como objetivo possuir a mulher alheia, Bete-Seba. A repreensão e a punição anunciadas pelo profeta Natã indicavam que o mal seria suscitado sobre toda a casa do rei (II Samuel 12.11). Um dos saldos foi a morte de seu primeiro filho com Bete-Seba.

Sendo assim, a filosofia e a teologia são convidadas a pensar o mal como raiz comum do pecado e do sofrimento pelo encadeamento destes dois fenômenos: a punição como sofrimento físico e moral acrescentado ao mal moral o castigo corporal, a privação de liberdade, a vergonha e o remorso (culpabilidade de pena); por outro lado, uma causa do sofrimento é a violência exercida sobre o homem, pelo homem, pois fazer mal, prejudicar outrem, de modo direto ou indireto, é fazê-lo sofrer. O mal cometido por um tem sua réplica no mal sofrido pelo outro. “Quando o homem se sente vítima de outro homem, o grito da lamentação é mais agudo” (p. 25). Pensar essa raiz que põe em unidade mal moral e sofrimento torna-se confuso se são perfilhadas as várias causas do sofrimento não apenas como simples efeitos sociais, mas também, de infortúnios naturais (sem deixar de dizer a angústia pela própria finitude, pela expectativa da morte).

O pressentimento de que pecado, sofrimento e morte exprimem a unidade profunda da condição humana é o ponto pelo qual a “hermenêutica dos símbolos e dos mitos destrona a fenomenologia do mal, fornecendo a primeira mediação lingüística a uma experiência confusa e muda” (p. 25), isto é, os elementos componentes da explicação mítica servem como uma primeira justificativa unificante (ainda que não argumentada) entre concepções inicialmente díspares. Esta unidade profunda é apontada por dois indícios da experiência do mal. Considerando o mal moral, percebe-se que a incriminação de um agente responsável traz a experiência da culpabilidade (que pode se designar, por exemplo, como pecado cometido – já que um dos sentidos etimológicos dessa palavra é ‘aquilo que não acerta o alvo’, ou o da ‘atitude marginal’). “Esta encobre o sentimento de ter sido reduzida por forças superiores, que o mito não teria dificuldades em exorcizar” (p. 25). O mito, então, exprime o sentimento de pertencer a uma história do mal que abrange a todos (e a cada um em sua individualidade dentro desse processo), tendo como efeito o fato de o homem se sentir vítima ao mesmo tempo em que é culpado. Esta confusão também é encontrada no âmbito culpado e vítima. Se a punição é sofrimento reputado e merecido, pode ser que todo sofrimento tenha por causa uma falta cometida conhecida ou desconhecida. A lamentação tem, por assim dizer, uma característica de ser apenas uma constatação de um sofrimento que tem como origem uma falta fragmentada (que pode ser temporal e imputada a um individuo específico, o que não faz nenhuma diferença, já que todos se sentem igualmente responsáveis), mas que atinge a todos.

Acesse meu site: caixasurrealista.com

Acesse meu blog: caixasurrealista.blogspot.com

Ricardo Toledo
Enviado por Ricardo Toledo em 01/10/2009
Código do texto: T1842515
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.