Como o soldado conserta o gramofone
                       
Sasa Sanisc (Sacha Stanichitch)

   
 Pouco sabia sobre a guerra que acabou com a Iugoslávia até ler esse livro escrito por Sasa Sanisc.  Nada sabia sobre este autor, fruto da guerra. Agora o que sei sobre essa guerra é bem mais do que qualquer texto escrito para livros de Geografia, História ou Política. Sei da guerra através do ponto de vista de uma criança, Aleksandar Krsmanovic, alter ego do autor.

    É um romance. É a busca do passado para poder saber quem é e ocupar seu lugar no mundo, sem seqüelas. Continua a ser a tentativa de sobrevivência de alguém que a viveu em seu período de formação do caráter. Uma criança, de idade indefinível, entre os nove e os quatorze.

    O romance começa com a morte do avô de Aleksandar. Slavko, o avô, era sérvio e nacionalista. Era partidário de Tito, construtor de um país que nunca foi nação, pois abrigava em seu ventre várias nações em ponto de ebulição.

 A estrutura do livro não segue os padrões considerados normais para um romance. Os episódios estranhos e mirabolantes se sucedem. São as lembranças do menino que vêm à tona. Inaugura-se uma privada com uma festa. E um idiota sérvio acaba com a festa dando um tiro porque os músicos tocavam músicas bósnias. O cotidiano se transfere para os porões das edificações onde se passa a viver uma vida comunitária. Mas as crianças continuam crianças.

O avô retorna a vida através das lembranças do neto. E essas lembranças são anteriores a guerra – Aleksander, autor e ator de sua própria história recupera sua infância. O tempo antes daquele tempo em que tudo se transformou. As lembranças dele se remetem as nossas. São arquetípicas. Os desfiles em homenagem a Pátria, o relacionamento com os colegas, o nascimento do preconceito, a paixão pelo futebol e pela pesca. Quando ele ganha o campeonato local de pesca no Rio Drina não pode ir para as etapas finais: a guerra já começou. Bósnios, sérvios e croatas passaram a se odiar mutuamente. Um ódio fratricida estimulado inclusive pelas religiões: católicos, ortodoxos e muçulmanos. É 1991, o avô está morto e os peixes do Rio Drina passam a receber alimentação suplementar – os cadáveres dos muçulmanos. A cidade onde o menino vive começa a se esvaziar. Sua família também emigra: o pai é sérvio, a mãe bósnia e muçulmana.

   Em 2002, Aleksander, já adulto, volta à terra natal, Visegrad. Volta em busca de suas lembranças e de uma menina desconhecida que conheceu nos porões da guerra e da qual pouco sabe. Tudo para ele passa a ser estranho. Sonho e realidade se confundem.

   Há um capítulo no livro que me deixou perplexa: há um cessar fogo e grupos inimigos descansam jogando uma partida de futebol... entre si. Mas o cessar fogo cessa antes que a partida acabe...  Vale à pena ler esse capítulo. Se mais não valesse o livro, valeria por esse capítulo.

   Só a mente de uma criança poderia elaborar um livro sobre a guerra tão terno e ao mesmo tempo tão dolorido. 

   Haverá esperança para o homem? Não sei, Queria saber. Queria acreditar que sim. Mas olhando por minha janela e olhando para o céu cinzento e ouvindo a chuva fria que cai sinto vontade de chorar. Mas, quem sabe, talvez amanhã brilhe o sol e eu pense diferente. 
  
(Foto Ponte sobre o Rio Drina) Busca Google.


Após ser dividida em 1991, a antiga Iugoslávia deu origem às seguintes unidades territoriais, atualmente:


1. República da Bósnia e Herzegovina;
2. República da Croácia;
3. República da Macedônia;
4. República de Montenegro;
5. República da Sérvia;
5a. Província de Kosovo
5b. Província de Vojvodina
6. República da Eslovênia;


A Iuguslávia hoje é composta pela Servia e suas duas províncias e Montenegro - se é que já não mudou.
A cidade de Visegrad fica na Bósnia - Herzegovina.