Capítulos 12 e 13 (extraídos do romance "O Único")

Capítulo 12

O fiscal do Banco Oficial S/A exercia rotina normal de trabalho. Naquele dia, vistoriava os bens que a Cooperativa dos Recicladores de Papéis Usados – COREPU dera em garantia de empréstimo para compra de uma prensa hidráulica, de uma empilhadeira e de um caminhão destinado ao transporte da matéria prima recolhida nas ruas da cidade.

Eduardo, o fiscal da instituição financeira, deu-se por satisfeito. A garantia estava preservada e a entidade funcionava a contento.

Os papéis enfardados seriam negociados com um jornal da vizinha cidade de Esperança, mas a quantidade de matéria prima (papéis usados), quando processada, seria suficiente para recompor o penhor mercantil.

O gerente comunicaria a venda ao banco e solicitaria a substituição da garantia. Era um ato perfeitamente normal. Regular, também, pareceu ao inspetor o comportamento da gestão administrativa da entidade.

A outra instituição vistoriada na oportunidade foi a Cooperativa dos Catadores de Latinhas de Alumínio Vazias – COCALAV. A sede distava cerca de oitocentos metros da primeira. Uma pequena distância que Eduardo percorreria a pé.

“Estou bastante gordo e preciso perder a barriga”, disse, olhando de cima para baixo, assustado por não ver os sapatos novos, adquiridos recentemente em uma liquidação de ponta de estoque.

Para certificar-se de que ainda estava na posse e no uso dos calçados, ergueu a perna esquerda e riu satisfeito da compra que fizera.

Imediatamente, contrariou-se ao ver o sapato riscado, resultado da topada em uma pedra do caminho.

Isso já lhe acontecera quando criança. Em determinado domingo, também com uma topada, arrancara a unha do dedão do pé direito.

Até parecia não olhar por onde pisava.

Pois bem, naquele dia, caminhara de casa à igreja, uma distância superior a dois quilômetros. E o fizera descalço para economizar o solado dos sapatos.

A mãe exigente e severa obrigou-o ao sacrifício.

Quando chegou ao templo, recusou-se a entrar descalço. Além das bolhas provocadas pelas pedras miúdas e a areia quente, o dedo sangrava.

Sangrava e doía.

O inspetor do Banco Oficial S/A não encontrara nenhuma

irregularidade na COCALAV. A exemplo da COREPU, fiscalizada quanto à aplicação dos recursos tomados por empréstimo, e às garantias de penhor mercantil dadas ao banco.

Tudo estava em ordem.

Eduardo, sempre que oportuno, dizia aos interlocutores e convivas: “pobre é honesto. Um ou outro se deixa contaminar pela má convivência. Vejam o exemplo de pequenas cooperativas, íntegras sociedades como a COREPU e a COCALAV”. E contava-lhes como as entidades se comportavam num ambiente desigual e corrupto.

A terceira e última visita do dia foi à Cooperativa de Consumo dos Metalúrgicos, a grande e poderosa COME, que contava com quase duzentos mil associados.

A COME parecia um grande supermercado ou uma mega loja de departamentos. Ali se vendia uma infinidade de bens de consumo.

Bastaria ser associado para comprá-los a vista ou a prazo; no segundo caso, sem exigência de avalista. Afinal, o comprador era sócio da entidade. Um pequeno cotista é verdade, mas dono, embora de pouca expressão.

O estatuto da entidade era bem claro quanto ao limite de compra de cada cooperado, mas, a rigor, não se observavam as normas e também não se impunham exigências.

Casa de muitos donos, sabe como é!

Eduardo consultou o relógio e verificou o adiantado da hora. Depois de examinar uma cópia do contrato de financiamento que trazia consigo, fez algumas anotações que serviriam para elaboração dos Papéis de Trabalho e do Questionário de Avaliação que norteariam sua conduta fiscalizatória. Despediu-se do gerente, prometendo voltar no dia seguinte.

Na terça-feira, Eduardo retornou ao trabalho interrompido no dia anterior. A missão era específica: vistoriar o penhor mercantil e certificar-se da integridade dos imóveis hipotecados ao Banco Oficial S/A, em garantia do empréstimo de dois milhões de genuínos.

A dívida havia sido contraída há três meses.

O penhor consistia de cinco veículos, dois de carga e três de passeio. Estavam avaliados em trezentos e cinqüenta mil genuínos. A hipoteca era integrada por dois galpões de alvenaria, com cobertura metálica.

Totalizavam três milhões e quinhentos mil genuínos.

Eduardo foi ao pátio de estacionamento examinar os veículos. Viu apenas dois caminhões pequenos, ambos precisando de reparos mecânicos.

Os pneus haviam sumido. Os três carros faltantes, dissera o gerente, estavam em oficinas para conserto. O fiscal pediu nome e endereço das empresas encarregadas dos serviços, pois pretendia vistoriá-los ali.

Teve dificuldade em obter as informações.

Nenhuma das pessoas solicitadas a responder às perguntas sabia o que dizer. Inclusive o gerente. Por último, forneceram o endereço e para lá seguiu Eduardo. Na oficina, inteirou-se da verdade.

Os veículos eram meras carcaças, carcomidas pela ferrugem. Nada neles funcionava. Quando inteiros, haviam sido cedidos a prepostos de deputados filiados à CUTAM, que os utilizaram para fins eleitorais. As estradas ruins do interior, a falta de cuidados preventivos e a irresponsabilidade aliaram-se à desonestidade dos políticos e causaram irreparáveis prejuízos aos contribuintes de Bostanópolis.

Como garantia, nada valiam.

Quanto aos imóveis, foi outra surpresa. Os galpões eram, na verdade, pequenos armazéns, bastante deteriorados. O relatório de Eduardo foi redigido nos seguintes termos:

"As garantias do financiamento foram supervalorizadas. Dos veículos vinculados ao empréstimo, dois estavam no pátio da entidade, quebrados e sem pneus.

Os três automóveis foram localizados em oficina mecânica da periferia; enquanto rodaram, serviram às campanhas eleitorais de dois deputados apoiados pela CUTAM.

Nada valem como garantia.

Restam-lhes, apenas, as carcaças enferrujadas por terem sido depenados.

Os imóveis oferecidos em hipoteca não passam de pequenos armazéns, deteriorados e de valor insignificante. Foram excessivamente avaliados.

Opino pelo imediato reforço das garantias, sem o que o empréstimo não será quitado".

Foi o seu relatório.

Capítulo13

O SITREM – Sindicato dos Trabalhadores em Indústrias Metalúrgicas estava em campanha salarial. A categoria negociava vinte e oito por cento de reposição, porém os patrões não estavam dispostos a concederem o aumento. Insistiam em cinco por cento, percentual necessário à reposição das perdas do último ano.

– A inflação do período foi de 4,8%, inferior, portanto, ao oferecido pelo patronato – dissera um dos diretores da entidade empregadora.

Os sindicalistas insistiam.

– Ou vinte e oito por cento ou a greve. Partiremos para a paralisação total da categoria se não formos atendidos.

Ambas as partes sabiam que um impasse não resolveria a questão. A intransigência levaria a decisão à justiça, que na opinião dos patrões tendia a favor do operariado.

O SITREM convocou mais uma assembléia. Os metalúrgicos lotaram as vias públicas ao som de estridentes alto-falantes, dispostos em grandes caminhões. Os líderes sentiam-se satisfeitos com a presença da massa.

Disse um deles:

– Companheiras e companheiros! – o orador citava a categoria feminina para não ser mal interpretado; a companheirada do belo sexo poderia julgar-se discriminada se não fosse citada explicitamente; ele lembrava-se de certo presidente da república que introduziu o tratamento feminino em suas saudações, quando se dirigia à Nação: “bostanopolitanas e bostanopolitanos”, dizia o presidente, esquecido de que a expressão “bostanopolitanos” engloba os dois gêneros.

Qualquer acadêmico sabe dessa regra gramatical. Menos o político, mesmo que faça parte da Academia Bostaniana de Letras.

A mulherada, acredita-se, gosta de ser saudada individualmente.

– Durante o governo anterior, a reposição salarial da categoria limitou-se aos índices inflacionários, bem menores do que a realidade dos números constatada nos supermercados… Hoje, não aceitamos esta situação – continuava o tribuno, empolgado.

– …

A decisão de aderir à greve seria tomada em outra ocasião. O diretor do Departamento de Greves e Paralisações Relâmpagos, a temida DEGREPAR, um sujeito barbudo e magro, de voz aguda e pronúncia rápida, de nome Ernani, falava aos seus milhares de ouvintes.

– Companheiras e companheiros! Não abriremos mão de nossos direitos. As indústrias metalúrgicas de Bostanópolis estão cada dia mais obesas economicamente. Seus lucros são exorbitantes. As montadoras de automóveis, as mais beneficiadas com o produto de nosso trabalho mal remunerado, vendem como nunca. As exportações alcançam cifras astronômicas…

– …

Os gritos da assistência fizeram calar o exaltado orador. Após curta algazarra, o silêncio retornou ao ambiente.

– As multinacionais remetem significativos dividendos para suas matrizes. Com isso, enriquecem os gringos com o nosso suor. Essa situação não pode continuar. O dinheiro deve ficar em Bostanópolis e não ser remetido ao exterior – concluiu Ernani, bastante aplaudido.

– …

– Bem, companheiras e companheiros; teremos uma reunião amanhã com o patronato. A assembléia ficará suspensa até trazermos o resultado das novas negociações. Aguardem vigilantemente. Da força da nossa resistência virá a vitória!

– Um, dois, três, Ernani outra vez! – gritavam os assembleianos, nitidamente desejosos de reelegerem o líder para mais uma gestão sindical.

Os gritos continuavam, o rufar dos tambores fazia-se ouvir barulhentamente, as bandeiras tremulavam. Tudo dava a impressão de que os sindicalistas estavam dispostos à greve.

Com a suspensão da assembléia até o resultado das negociações, a grande concentração pública tomou outro rumo. Transformou-se em monumental forró. Uma sanfona de oito baixos, zabumba, triângulo e pandeiro acompanhavam a cantora que se exibia e cantava com estardalhaço. As pernas grossas e as coxas musculosas agüentavam, sem reclamar, o balançar voluptuoso dos quadris. A saia curta, feita de um tecido colorido, dava à intérprete a aparência de boneca.

Uma boneca bem feita.

Sensual.

Gostosa de contemplar.

***

Os metalúrgicos estavam novamente dispostos a ouvir os seus líderes. A assembléia fora reiniciada para novas discussões. Ao diretor Ernani coube as seguintes explicações:

– Companheiras e companheiros! O patronato é duro na queda. Alegam dificuldades financeiras para um aumento maior. Insisti demasiadamente. Ameacei-os com prolongadas paralisações…

Essas e outras explicações foram dadas aos sindicalistas na oportunidade. Todos ouviram o diretor Ernani, homem radical em seus conceitos e atitudes, exímio negociador e de plena confiança da companheirada.

Ernani concluiu:

– Fechei o acordo: sete por cento de aumento. Acho que devemos aceitar a proposta. Afinal, sete por cento supera o índice da inflação anual. Portanto, ganhamos. Voltemos ao trabalho!

Não houve nenhum questionamento. Os sindicalistas criam, com todas as veras de suas almas, em qualquer de seus líderes.

A verdade estava com eles.

Sempre.

– Quem estiver a favor levante as mãos! – pediu Ernani, em atitude concordatária.

Quase cinqüenta mil operários levantaram as mãos em sinal de aprovação. Erguiam os braços e gritavam:

– Um, dois, três, Ernani outra vez! – aplaudiam em coro.

– Viva Ernani, nosso líder e negociador implacável! – gritou ao microfone um companheiro próximo.

– Viva! – aprovavam todos, envolvidos pela emoção.

Desejavam ter o hábil negociador como líder por mais um mandato.

Ernani era excelente negociador. Acertara com os patrões um aumento de nove por cento: sete, aplicados aos salários dos companheiros, e dois por cento depositados em sua conta bancária.

Dois por cento sobre a folha de salários mensal de milhares de operários. Algo em torno de trezentos mil genuínos seria depositado, por mês, na conta de Ernani, pelo patronato.

***

A diretoria da Confederação das Indústrias Metalúrgicas estava reunida em seu confortável auditório. O acentuado calor daquele dia não os incomodava, apesar de todos trajarem ternos escuros e gravatas que comprimiam o pescoço.

Não temiam nem mesmo a elevada temperatura externa, pois seus automóveis de luxo, todos importados, os aguardavam na garagem do prédio, com o ar condicionado ligado.

Os empresários do setor comemoravam o desfecho das negociações com o líder sindical.

– O resultado foi ótimo – Comentava um.

– Sim, foi excelente – dizia outro.

– E nós estávamos dispostos a conceder aumento de dezoito por cento. Economizamos a metade – finalizou o senhor Morais, presidente da entidade.

***

Nas fábricas, os metalúrgicos trabalhavam satisfeitos com a reposição salarial obtida.

Consideraram o aumento um gesto de boa vontade dos patrões, graças, diga-se, a incrível habilidade do companheiro Ernani.

– Um, dois, três, Ernani outra vez!

Esse grito de guerra ainda seria ouvido em outras ocasiões.

***

Amanhã, mais um capítulo. Leia!

E seus comentários? Ainda não recebi nenhuma impressão sua sobre os capítulos já publicados e lidos por você. Estou aguardando! Lamércio.