IMPRESSÕES DE LEITURA SOBRE PROUST

A linha que separa a realidade da ficção é tênue, já dizem muitos escritores, entre eles, Lygia Fagundes Telles. Se um romance já pode ter muito da vida do autor, quem dirá um livro de memórias.

Talvez em um conto se possa relatar uma passagem cotidiana que embora tenha sido banal, o colorido da ficção deu um tom fantástico, quase supra-real.

Se entre o escritor e a escrita ocorre o que se pode chamar de hibridismo factual, entre leitor e a trama, quando essa contada pelo narrador que é personagem, que narra a sua própria historia através de sua consciência, pode ocorrer um efeito de vivencia dentro da paisagem da consciência da personagem que narra a sua trajetória e até desencadear num afeto anacrônico.

A obra cíclica de Marcel Proust Em busca do tempo perdido dividida em sete volumes é um exemplo de que ocorreu em mim este afeto anacrônico pela personagem narrador.

Sua infância, adolescência, juventude, amores, angustias, aspirações, fracassos foram despejados para mim, pela forma da leitura da sua consciência, passando-me a impressão de uma figura idealizada, romanceada, embora com todos os tributos de uma pessoa real. Sabendo-se que quem conta, omite muito dos seus piores defeitos.

No volume dois da obra cíclica, A sombra das raparigas em flor, foi onde este contato tornou-se mais intimo em que a personagem, o jovem Marcel, escondido num pronome, mostra-se um jovem ingênuo, humilde, frágil. Ele não fala de sua pusilanimidade, mas mostra isto pelas preocupações dos pais, da avó, e mesmo da empregada Françoise, que é personagem fundamental de toda obra cíclica.

Impossível não se apaixonar por aquele rapazote tímido freqüentando o salão da aristocracia, em meio às senhoras, ouvindo-as conversar, enamorado dos seus perfumes, dos gestos que elas demonstram delicadeza. Mesmo seu amor platônico por Gilberte, filha de Swann, seus encontros nos Campos Elíseos. Como ele se apaixonava por tudo que estivesse ligado a Gilberte, como acabou se apaixonando pela mãe desta, Odete e sua admiração por Swann.

É ver-se, lendo No caminho de Swann, o que ele faz a pobre Françoise, forçando-a a andar além dos Campos Elíseos, para passar até o lugar onde, em meio a transeuntes, ele possa ver passar a Sra. Swann. Como ele a admira, quase como Gilberte.

A suplica de amor esta impregnada no primeiro volume. Ele suplica uma boa noite” da mãe, quando menino, mesmo que ela não possa atende-lo por causa das visitas. Ele não dorme sem aquele beijo de boa-noite de sua mãe, arrisca-se ao ralho paterno, ficando ao corredor para espera-la. Esta suplica de amor está também nos pilriteiros de Combray, em que ele não deseja se separar quando tem que voltar a Paris, deixando a casa da avó. O desencadear mais perverso deste amor tão humílimo do jovem Marcel dar-se quando ele conhece as raparigas em flor, na sua estada na baía fictícia de Balbec, no mar Mediterrâneo.

A moça cujo rosto ele não consegue fixar na memória assim quando a ver passear no dique, ele reconhece quando então tem o seu primeiro contato com ela, um contato frio, inibido, em que ele se ver assustado, por que em Balbec, em pleno verão tudo cheira a uma sensualidade maritma.

Os sete volumes da serie Em busca do tempo perdido, cada um aborda a memória da personagem sobre o prisma artístico. O primeiro volume No caminho de Swann trata de arquitetura e paisagismo; toda natureza comunga com a consciência (alma) do jovem Marcel, são os pilriteiros tão amados de Combray, são os morros azulados, o crepúsculo deslumbrante, os caminhos tão verdes, ou um lago congelado num inverno rigoroso. O segundo volume A sombra das raparigas em flor trata de pictorismo, pintura, sendo a memória passada, desenhada com um museu andante, seja na mansão dos Swann, seja no dique da baia imaginaria de Balbec, vendo as raparigas em flor com os cabelos lambidos pelos raios dourados do por do sol. O Terceiro volume No caminho de Guermantes a memória vem representada mais como jornalismo, teatro e revista, é o tomo da obra que trata da parte mais verossímil, em que o episodio do soldado judeu Dreyfus, que é injustamente condenado por vender informações de guerra para inimiga Alemanha, é colocado em discussão pelas reuniões e saraus da sociedade que já freqüenta o herói proustiano. É quando a França se divide entre dreyfusistas e anti dreyfusistas. O herói proustiano parece um tanto neutro como Aquiles nos primeiros cantos da Ilíada, indeciso entre gregos e troianos. No quarto volume Sodoma e Gomorra a sexualidade da alta sociedade francesa é colocada em cheque através da revelação da consciência do jovem Marcel, e da sua vivencia e experiência com figurões que compõem um quadro de homossexualismo (diga-se hoje homossexualidade), entre eles a figura arrogante do barão de Charlus, que trava relações sexuais secretas com rapazes da classe baixa, e é mesmo nesse volume que o herói descobre que sua amada Albertine, a bela rapariga em flor que o impressionou no dique de Balbec, também é chegada à nova perversão, e como em tom bíblico ele divide a sociedade de Paris em Sodoma e Gomorra. Sodoma para os homens que amam homens, e Gomorra pára as mulheres que amam outras mulheres. Albertine está inserida na Gomorra, e ele precisa salva-la, é o que diz. No tocante a arte, este volume nos deixa a impressão de paisagismo e pictorismo nas rotineiras viagens de trem do herói proustiano de um porto a outro da Normandia. O quinto Volume A prisioneira é a musica e a literatura que adorna a consciência e a memória do herói, que julga salvar Albertine de Gomorra mantendo-a prisioneira em seu apartamento em Paris, onde ele se retira para o seu trabalho literário também. Mesmo com Albertine, ele é um homem solitário, um homem que perdeu o amor pelos pilriteiros, que agora é prisioneiro de uma obsessão, temendo um mundo novo que lhe desfralda e atormenta a consciência. Existe toda uma sinfonia circulando a sua solidão, sua e de Albertine, mas ainda sua que procura ignorar os segredos desta mulher. A musica, neste volume, está não apenas nas obras sinfônicas, nas sonatas, mas no canto dos pássaros, no grito dos pregoeiros nas calçadas, no som do silencio gemebundo. Tudo colabora para sua sofrida estadia sentimental.

Que toque sensual existe neste quinto volume quando o herói se julga incapaz de dar a Albertine o prazer que podia ela sentir com mulheres. Como ele se derrama todo, confessa-se, desnuda-se, isto eclode no sexto volume A fugitiva, em que Albertine o abandona, e ele desespera-se não tanto pelo ciúme, mas pela solidão. Diz, confessa ele que é o habito que o faz sentir falta de Albertine, mas sabe-se, descobre-se que ele sente-se impotente por não ter dado o prazer – embora nunca pudesse dá-la – que outra mulher a dava.

Se o escritor pode se desnudar em sua obra, como disse Virginia Woolf, o leitor corre o risco de uma paixão anacrônica, não platônica, mas inverossímil, em que o onírico permanecerá por mais tempo indeterminado ainda.

Rodney Aragão