Nem tudo Freud explica

Meu interesse pela Psicologia veio depois que, ainda adolescente, fiz minhas primeiras leituras filosóficas, sendo o exercício filosófico fundamento primeiro de todas as ciências desenvolvidas.

Além de minha curiosidade natural pelas ciências ditas “exatas”, que nos dizem como funcionam a mecânica do Universo – devendo ser apreendidos no Ensino Fundamental e Médio conhecimentos básicos sobre as descobertas de suas investigações – fiquei fascinado com aquelas outras que, sem que, todavia, advogassem tamanha exatidão em suas descobertas, investigaram e investigam os mecanismos da “alma” humana, também chamada de “Psique”.

Entre filósofos psicólogos, psicoterapeutas, psicanalistas e psiquiatras, li obras de Erich Fromm, R. D. Laing, Carl Rogers, Karl Jaspers, C. G. Jung e Sigmund Freud, tendo me dedicado mais a leituras do psiquiatra suíço C. G. Jung, discípulo de Freud (como todos os outros) e fundador da Psicologia Analítica.

Entre seus muitos livros me chamaram atenção “Fundamentos de Psicologia Analítica – As Conferências de Tavistock”, “O Espírito na Arte e na Ciência”, “Resposta a Jó”, “Os arquétipos e o inconsciente coletivo”, “Estudos alquímicos”, “Psicologia da religião oriental e ocidental”, “O eu e o incosnciente”, “O desenvolvimento da personalidade”, “O homem e seus símbolos”, “O segredo da flor de ouro” e sua autobiografia.

Cito os livros de Jung porque, entre os que se dedicaram ao estudo das ações e reações da mente, como potencial psicólogo foi com suas idéias e conclusões que mais me identifiquei, uma vez que, ao contrário de Freud – que, todavia, foi absolutamente genial em sua determinação à descoberta da estrutura da mente e das características individuais da personalidade que gera (embora, num filme, certo protagonista tenha me revelado ter sido Freud “o inventor de nossos problemas”) – Jung foi ousado e corajoso ao contestar as críticas do mestre sobre “as impossibilidades de avanço” das investigações acerca dos limites daquilo que, por influências de pulsões inconscientes puramente individuais, para Freud constitui nossas personas.

Gosto de pessoas ousadas e corajosas, principalmente quando enfrentam os impedimentos a avanços impostos por uma burocracia politiqueira, tendenciosamente perversa – mesmo que talvez pouco dela tenha influenciado Freud a não dar devida atenção às conclusões de Jung, tendo-lhe provavelmente impedido a tanto certa generosa dose de vaidade.

Para Freud, portanto, as intuições de Jung sobre a existência de um inconsciente coletivo – que, todavia, influencia os fundamentos do inconsciente individual – não lhe pareceram nada além de suposições. E mesmo que as manifestações dessa dimensão atávica do inconsciente, que ele chamou de “arquetípicas”, tenham sido catalogadas por Jung ao longo de décadas de investigações, tendo ele conquistado o respeito e a confiança de outros tantos seus colegas de profissão.

Numa apresentação coletiva ao livro de Jung, “Fundamentos da Psicologia Analítica – As Conferências de Tavistock”, na edição que possuo de 1972 o casal Leon e Jette Bonaventure escreveram: “Minha própria experiência analítica, assim como meu trabalho cotidiano de psicoterapeuta, permitiram-me observar quanto a perspectiva jungeana responde às necessidades da alma contemporânea. Ela nos tira do isolamento do eu e de uma problemática excessivamente pessoal, abrindo-nos as portas para as riquezas do mundo interior e ajudando-nos desse modo a realizar nossa vocação para o mundo”.

Mesmo que não esconda para a maioria freudiana de profissionais da Psicologia minha preferência pelas pesquisas e conclusões de Jung – porque, de fato, nem tudo Freud explica – e mesmo que, depois das leituras de seus livros, pouco tenha me interessado pelos livros de Freud – apesar de ter lido o seu livro mais famoso, “A interpretação dos sonhos”, e um trabalho da professora Maria Cristina Kupfer sobre “Freud e a Educação: o mestre do impossível” – adquiri recentemente seu livro “O mal-estar na cultura”.

Entre as muitas verdades fundamentais que nos revela sobre nossas dificuldades em conciliar os impulsos de nossa animalidade às exigências dos processos de desenvolvimento da cultura (ou de nossa civilidade), transcrevo abaixo as páginas finais de seu livro, que recomendo a todos aqueles que, artistas ou não, preocupam-se em contribuir para o desenvolvimento de nossa humanidade e de tudo o que poderá ela nos permitir ser daqui para frente, uma vez que, como observou Jung um dia, “sabemos o que fomos, mas ignoramos o que seremos”.

Assim, escreveu Freud:

“Pelos mais variados motivos, não tenho nenhum interesse em apresentar uma valoração da cultura humana. Esforcei-me por manter longe de mim o preconceito entusiasta de que nossa cultura é a coisa mais preciosa que possuímos ou poderíamos adquirir e que o seu caminho terá de nos conduzir necessariamente a alturas de perfeição nunca imaginadas. Pelo menos posso ouvir sem me indignar o crítico que opina que, se considerarmos as metas da aspiração cultural e os meios de que se serve, teríamos de chegar à conclusão de que todo esforço não vale a pena, e que o resultado apenas pode ser um estado que o indivíduo precisa achar insuportável. Minha imparcialidade é facilitada pelo fato de que sei muito pouco acerca de todas as coisas; apenas sei com certeza que os juízos de valor dos homens se derivam sem exceção de seus desejos de felicidade, e que são, assim, uma tentativa de apoiar suas ilusões com argumentos. Eu compreenderia muito bem se alguém acentuasse o caráter forçoso da cultura humana e dissesse, por exemplo, que a tendência à limitação da vida sexual ou a tendência à imposição do ideal de humanidade à custa da seleção natural são orientações de desenvolvimento inevitáveis e que não admitem desvios, diante das quais é melhor se curvar como se fossem necessidades da natureza. Também conheço a objeção a isso, e de que tais aspirações, que são consideradas inexpugnáveis, frequentemente são descartadas no decorrer da história da humanidade substituídas por outras. Assim, perco o ânimo de me fazer de profeta entre os meus semelhantes, e me curvo à censura que me fazem de que não sei lhes trazer nenhum consolo – pois é isso que todos pedem no fundo, os mais selvagens revolucionários não menos apaixonadamente do que os mais bem-comportados beatos.

“Parece-me que a questão decisiva da espécie humana é a de saber se, e em que medida, o seu desenvolvimento cultural será bem-sucedido em dominar o obstáculo à convivência representado pelos impulsos humanos de agressão e de autoaniquilação. Quanto a isso, talvez precisamente a época atual mereça um interesse especial. Os seres humanos conseguiram levar tão longe a dominação das forças da natureza que seria fácil, com o auxílio delas, exterminarem-se mutuamente até o último homem. Eles sabem disso; daí uma boa parte de sua inquietação atual, de sua infelicidade, de sua disposição angustiada. E agora cabe esperar que o outro dos dois ‘poderes celestiais’, o eterno Eros, faça um esforço para se impor na luta contra o seu adversário igualmente mortal. Mas quem pode prever o desfecho”?

(Sigmund Freud em “O mal-estar na cultura” – L&PM Pocket, 2010 – Porto Alegre, RS. Tradução de Renato Zwick).