RESENHA: "Os moedeiros falsos"

Pouco depois de encontrar "Franny and Zooey" de J. D. Salinger na livraria, avistei "Os moedeiros falsos" de André Gide. Dele, o que eu mais procurava mesmo, confesso, era O pombo-torcaz, cujo único exemplar disponível estava nas mãos de algum cliente. Instintivamente, e por um ciúme infantil, agarrei-me ao exemplar que agora apreciava. Enamorava-me por sua escrita desde a primeira página e tive ciúme dos avanços anteriores dos outros nela e nas seguintes.

"Os moedeiros falsos" foi escrito em 1925 – alguns dizem 1926 – por André Gide (1869-1951), ganhador do Prêmio Nobel em 1947. O título sugere algo que o conteúdo meramente pontua, como uma vírgula, sem a qual, entretanto, todo o resto não faria muito sentido ou pareceria precariamente fabricado e artificial. Este é também o nome do livro a ser escrito por um dos três personagens centrais: Édouard, tio de Olivier, o melhor amigo de Bernard. É interessante como a moeda falsa serve como objeto de metáfora, de metalinguagem e da intriga.

Até cerca da metade do livro, tem-se a impressão de que essas moedas falsas simbolizam cada personagem que se oferece e barganha uma estima alheia maior que a qual lhes cabe. Moedas manufaturadas, como aquela mostrada por Bernard durante uma conversa sobre o livro de Édouard (sem uma linha escrita sequer), quando ele diz achar melhor apresentá-la desde o início como um "fato bem exposto" ao invés de "partir de uma ideia". Esta mesma moeda revelada a seus ouvintes, momentos depois, acaba por denunciar seu forjador – o qual é mencionado no começo, aparece perto do final e some rápido de circulação, não sem deixar prejuízos.

Gide obedece muito bem a organização de um romance, não há personagens jogados à sorte, todos os mencionados aparecem outras vezes para fechar um ciclo ou ligá-lo a um segundo, não importa o quão sutil. Aqui ele mostra que sabe escrever tanto para críticos quanto para o próximo leitor. Há aqui um cuidado, uma finesse narrativa, um "Ne me quitte pas!" de um amante que com charme e lábia lhe convence a deitar-se um pouco mais, virar cada página e despi-lo, cada passada de folha uma nuance mais convidativa.

Édouard sugere que sua estória não seria limitada por um tema só e portanto emularia a própria vida com seus eventos ad continuum e suas conseqüências nem sempre auto-solucionáveis. Assim também é este livro, por isso me agradou tanto essa leitura, alegro-me por começar a penetrar o mundo literário deste escritor com ele.

Como disse antes, pretendia ler "O pombo-torcaz" primeiro. Li uma pequena matéria sobre ele na revista Bravo! de agosto de 2009, na qual o jornalista e escritor José Castello questionava se "Existe uma estética homossexual?". Nela, Castello mostrava certos autores homossexuais e o elo que mantinham entre a escrita e as relações homoeróticas. Enquanto uns exaltavam-nas ou depreciavam-nas, André Gide não as encarava com a afetação de Oscar Wilde (de quem era admirador, inclusive) ou o desdém de Marcel Proust. Ele era a favor do liberalismo sexual onde elas fossem vistas de modo natural, como o lazer e a interação dos sexos opostos.

"O pombo-torcaz" é também o apelido (carinhoso, arrisco dizer) que o autor deu a um rapaz com quem tinha relações no verão de 1907 em Toulouse. Ferdinand Pouzac fora assim chamado porque "arrulhava" feito um pombo quando eles faziam amor.

Há também a homoafetividade em "Os moedeiros falsos", mas mesmo ela sendo importante como um contexto, talvez, ela é só um detalhe, quase tão discreta quanto outras ali das quais só podemos suspeitar. Eis o encanto: o livro não é um pretexto para levantar bandeiras de militância ou para ejacular as fantasias sexuais do autor tal qual um conto erótico vulgar de internet. Muito menos chega a ser um cenário tipo Homoville, onde até as pedras são gays; os personagens heterossexuais são representados igualmente, sem distinção.

Esta edição que tenho é muito boa, publicada pela Estação Liberdade em 2009, com tradução de Mário Laranjeira, impressa em papel pólen soft. Este não é um livro transformador. "O pombo-torcaz" tampouco deve ser. Mas ele causa boas sensações, é agradável de diversas maneiras. Não é o marco das obras de André Gide, contudo eu o considero uma belíssima apresentação. A única parte que não gostei é que perto do fim ele lhe prende, ou seja, para aquele leitor que gosta de terminar cada capítulo e guardar o próximo para depois, chegar ao parágrafo final e ver que acabou é tão ruim quanto morrer de fome e perceber que aquela era a última colherada de uma sobremesa incrível.