Resenha: A Paixão Segundo G.H.

A obra literária “A Paixão Segundo G.H.” da escritora Clarice Lispector, escrita em 1963 e publicada em 1964, no Rio de Janeiro, pela Editora do Autor, essa obra teve cinco edições em vida da autora: a segunda e a terceira pela Editora Sabiá nos anos de 1968 e 1972 (respectivamente); a quarta e quinta pela Editora José Olympio nos anos de 1974 e 1976 respectivamente. Em vinte de outubro de 1976, em uma entrevista cedida para o Museu da Imagem e do som no Rio de Janeiro, Lispector afirma que estava na pior das situações: “tanto sentimental, quanto familiar” quando escreveu o livro. Contudo, ela afirma que a obra não reproduz esse momento complicado da sua vida, porque ela não escreve como purificação, segundo a autora, ela: “nunca desabafa num livro”.

Clarice Lispector inicia e finaliza o livro – “A Paixão Segundo G.H. com seis travessões, indicando o divórcio de G.H. com o seu mundo. E o mundo dela é o ápice que a maioria das pessoas da contemporaneidade almejam. G.H. não tinha filhos e não era casada, por opção; morava em uma cobertura no Rio de Janeiro, isto é, era burguesa; tinha como profissão a escultura, poderia ser definida como uma pessoa realizada, bem sucedida; ou seja, estava inclusa no sistema. O começo da obra é o relato da personagem-narradora descrevendo o que ela viu. E o que ela viu foi a sua própria vida. Entretanto, pelo fato de ter visto a sua vida, ela fez um exame subjetivo da sua existência e, por isso, perde a sua “terceira perna” . Esse termo é entendida na obra como a pessoa que se realizou no mundo. Ou seja, é a mulher que se casou, teve filhos; a pessoa que é realizada no trabalho. Clarice usa esse termo para explicar a ligação do homem com o mundo, ou seja, é o que mantém a pessoa firme ao mundo e com isso dá uma familiaridade do homem com o espaço que ele está inserido. E G.H. tinha a sua “terceira perna” , ela era escultora, morava em uma cobertura no Rio de Janeiro. Portanto, ela estava situada no sistema, isto é: “Algo como o que se chama de pessoa realizada. Ter feito escultura durante muito tempo indeterminado e intermitente também me dava um passado e um presente que faziam com que os outros me situassem.” (LISPECTOR, 1998, 26p.).

G.H. se sente fora do sistema que sempre lhe foi familiar, todavia, isso foi dado dentro da sua própria casa. Numa manhã ela sai da mesa depois de tomar seu café, lê o jornal e fuma seu cigarro, e levanta-se decidida a arrumar a casa, porque estava sem empregada. Ela decide começar a organização pelo quarto da empregada, que na sua concepção deveria estar imundo. Mas, para surpresa dela o quarto estava inteiramente limpo: “O quarto parecia estar em nível incomparavelmente acima do próprio apartamento”. (LISPECTOR, 1998, 38p.). Essa fora a primeira decepção que G.H. tivera ao entrar no quarto da empregada, mas o que deixou ela divorciada do seu mundo foi um desenho feito à carvão pela empregada Janair que trabalhou com ela durante seis meses. O desenho que ela fez tinha uma mulher nua, um homem nu e um cão. O que chamou a atenção da escultora foi a falta de ligação do desenho feito por Janair, pois as figuras (o homem, a mulher e o cão) não se olhavam. Um existia sem preocupar se o outro existia ou não. G.H. depara-se com o grande mau da sociedade contemporânea, a niilização do outro. Ela negou a sua empregada que conviveu junto a ela durante seis meses, e ter visto no desenho que Janair lhe julgou te fez entrar em angústia existencial. Com isso, Lispector descreve o absurdo da existência da personagem-narradora, mostrando que ela sempre usou as aspas para existir. Ou seja, ela não procurou o seu modo de ser mais próprio. Ela sempre existiu na familiaridade do seu mundo e a presença da barata no guarda-roupa é o que leva a personagem fazer uma introspecção da sua vida. No inferno da matéria viva, G.H. entra pela porta estreita: a barata. E chega ao irredutível, ao inexpressivo, ao não-ser, ao nada. Portanto, ela encontra a sua identidade, o seu princípio e isso a angustia em descobrir a identidade da sua humanidade. A escultora conhecera as raízes da sua identidade e com isso, viu o quanto é contraditória a sua civilização, o quanto é desumano a sua humanidade. O divórcio com o mundo, o sentimento do absurdo leva ela a extrema falta de sentido em continuar existindo como sempre foi. Albert Camus, no livro- “ O Mito de Sísifo”, trata dessa problemática do divorcio do homem com o mundo, a perda da totalidade e com essa perda a instalação da melancolia no seu estado de espírito. “Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo”. (CAMUS, 2006, 20p.). O sentimento do absurdo camusiano é o “non sens”, ou seja, é o sem sentido, é o incompreendido. E o absurdo clariciano é a pessoa amar mais o ritual da vida do que a si próprio; isto é, ser de acordo com o sistema, fazer e obedecer às regras impostas sem contestar. Por não saber a sua identidade, a sua própria vida é mais usada pelo mundo do que por si próprio. Entretanto, G.H. não desistiu e caiu na tentação de ver, saber e sentir a vida. E o sentido da vida tinha gosto de coisa alguma. Pois, ela degustou a vida, ou seja, comeu a barata. A barata é a metáfora da vida. E a vida tinha gosto de nada. Depois de provar a si mesma, ela vomita. Esse “engolir” é uma metáfora de um exame subjetivo da existência e depois dessa introspecção ela conclui que a “condição humana é a Paixão de Cristo”. O Título da obra é nitidamente configurado sobre a conhecida expressão: “Paixão de Jesus Cristo segundo Mateus” ou “A paixão de Cristo segundo João”. Isto é, o sofrimento de Cristo narrado por seus discípulos. No caso de G.H., a paixão é da protagonista, narrada por ela mesma. E para enfatizar a analogia da obra, além do título, com a metáfora bíblica, o texto é dividido em trinta e três partes, que, segundo afirmam, foi a idade com a qual Jesus Cristo morreu.

Esse percurso doloroso, essa consciência da existência absurda, leva G.H. a entrar em estado de melancolia, por compreender que a construção da sua existência fora erguida sobre as aspas. Com isso, a personagem é tomada pela bile negra, por ter visto por meio das patas; dos cílios e da pasta branca da barata a sua essência, a sua identidade aquilo que te faz ser. Todavia, a sua essência te angustia, ela sente nojo de si mesma. Assim, como sentimos nojo de um leproso; de uma pessoa que tem uma doença terminal; da guerra; da miséria, disso sentimos repulsão. Isto é, sentimos náusea de nós mesmos, entretanto, ter nojo da sua raiz contradizia a si mesma. Com essa constatação, G.H. - a mulher anônima - perde as esperanças e não concebe mais nada além da sua existência, para ela Deus já é. A miséria humana, a ignobilidade da existência é o reino dos céus, portanto o reino dos céus, o que tanto a pessoa humana deseja alcançar já é. A sua vida, sua condição humana, ou seja, a aprovação insensível do sofrimento físico ou moral, por amarmos mais ao sistema da vida do que a si próprio levamos a uma existência “feliz”, porém, quanto mais G.H. fazia uma introspecção da condição humana, mais ela se divorciava do mundo e enveredava-se nos contraditórios da existência.

A escultora por não desistir de querer saber e sentir a sua raiz não recebe o prêmio de estar inclusa no sistema, ou seja, de ser bem sucedida na vida; contudo, recebe a recompensa de não ser mais humana. Essa mulher absurda a partir do momento que formou perfeita idéia da condição existencial começa a preferir o inumano, o inexpressivo. Portanto, quando ela estiver no leito de morte não perguntará se viver é só isto, ou seja, trabalhar para sobreviver; não ter o domínio da sua vida, porque a sua vida é mais usada pela terra do que por você mesma, e por ter “comungado” e vomitado a sua vida ela por não perguntar, não ouvirá essa resposta: “Não é só isto, é exatamente isto”. (LISPECTOR, 1998, 173p.). A vida.

Portanto, a obra, “ A Paixão Segundo G.H.”, nos proporciona uma reflexão da nossa condição humana. Indaga a respeito do sistema de vida contemporânea que só incuti nos valores das pessoas que elas devem sempre estar inclusa no sistema. Entretanto, conhecer si próprio e com isso ter conhecimento das suas potencialidades não é motivado pela constituição política social a qual o individuo está inserido. Dessa maneira a pessoa vive cega diante de si própria e conseqüentemente dos absurdos os quais está imersa. A personagem G.H, só percebeu que se negou quando percebe que negou a empregada janair. E o resto do mundo quando perceberá que perdeu a sua totalidade, será que em algum momento da vida as pessoas no século vinte um não se deparou com algum fato absurdo? Como por exemplo, os conflitos entre nações por causa das altas produções econômicas e por conta disso falecendo vidas; as várias formas de manifestações de preconceitos que brutalmente destrói existências humanas. Diante desses fatos é difícil de conceber que a existência humana é o paraíso do reino dos céus.

Referências bibliográficas:

Lispector, Clarice. A paixão Segundo G.H. Editora. Rocco. Rio de Janeiro, 1998.

Camus, Albert. O Mito de Sísifo. Editora Record. Rio de Janeiro/ São Paulo, 2006.

LuisSantos
Enviado por LuisSantos em 27/09/2010
Reeditado em 03/05/2012
Código do texto: T2523823
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