Primeiras Estórias - 
 
 
Acabei de reler as Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa, que não são as primeiras escritas por ele. Antes já tinha publicado Sagarana e Grandes Sertões, Veredas.

Ler Guimarães Rosa nunca foi fácil e continua não sendo. Mas ler Guimarães Rosa é penetrar no mundo mágico da palavra e sair de lá, encantado. Guimarães, O mago.

Primeiras Estórias foi publicado em 1962 – portanto há 48 anos. E as estórias continuam atuais porque são universais. Estão além do tempo e dos sertões das gerais.

São estórias simplíssimas. O jeito de contar é que as enriquece. O floreamento. A gente vai lendo, pensa até que não está compreendendo, mas quando chega ao fim é que se percebe: o enredo está ali, redondinho. Mas se fosse contado sem os adereços perderia a maior parte da sustança. E Rosa sabe muito bem como enfeitar. E enfeitiçar.

Transcrevo  o início da primeira – As margens da Alegria:

Esta é a estória. Ia um menino, com os Tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho. Saiam ainda com o escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos. A Mãe e o Pai vinham trazê-lo ao aeroporto. A Tia e o Tio tomavam conta dele, justinhamente. Sorriam-se, saudava-se, todos se ouviam e falavam.

 Inveja é pecado? Em sendo, pecadora sou. Pois lendo, verdejei. E sabem sobre o que é essa estória? Sobre o encantamento de um menino com um peru. Simples, tão simples, mas ninguém inventou antes. Então, inventado está.

A estória seguinte é sobre o medo. Famigerado é o nome. Começa assim: Foi de incerta feita – o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me a porta o tropel. Cheguei à janela. É sobre o medo e o desfazimento do medo. Afinal, era só uma questão vocabular – famigerado. Quando se trocou o vocábulo em miúdos, não a moda do dicionário, mas das necessidades prementes, tornou-se estória para se contar.

A terceira estória deu origem a olhos úmidos de minha parte. Sorôco, sua mãe, sua filha, passada em uma estação ferroviária é de uma beleza comovente. Loucura e solidão. E o compartilhamento. Que não diminui a solidão, mas conforta. E comove. Eis um trecho: A gente se esfriou, se afundou – um instantâneo. A gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos de uma só vez, de dó de Sorôco, principiaram, também a acompanhar aquele canto sem razão.
 
E até eu cantei, o canto que eu nunca ouvi, mas que se gravou em mim.

E os contos vão atravessando os meus olhos com seus nomes ora estranhos, ora comoventes. Veio A Menina de Lá, a menina santinha, a menina Nhinhinha, vieram Os Irmãos Dagobé, onde se escreve sobre opressão e libertação, o transcendente A Terceira Margem do Rio, loucura e culpa, e também Pirlimpsiquice, Nenhum, Nenhuma, Fatalidade, onde há um personagem chamado José Centeralfe, que tem a mulher perseguida por um apaixonado sem temor e respeito  e que com ela vai fugindo até ser obrigado a tomar uma atitude drástica que nem sempre é ir às vias de fato, mas queixar-se ao bispo, e em Sequência veio a estória da vaca fujona e do moço perseguidor que acaba encontrando o amor. Em O Espelho, Rosa deixa essa pérola: Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.

E assim fui eu, lendo devagarinho porque de carreirinha perde-se o encantamento. E é sorvendo de gole em gole que mais vamos sentir o sabor das estórias encantadas dos sertões das gerais. E assim foi que encontrei o Nada e a nossa condição, onde se conta a vida  do fazendeiro Tio Man’Antônio, que bem poderia ter sido o velho rei ou o príncipe mais moço, nas futuras estórias de fadas. E o  surpreendente causo  dO Cavalo que bebia cerveja. Um moço muito branco, fantasia de ficção cientifica precede o fantástico Luas-de-mel em que um determinado fazendeiro turrão recebe um casal de futigivos, daqueles bem românticos em que o cara mete a cara e rouba a moça com quem quer se casar. Enquanto esperava a retaliação da família da moça roubada a estória vai sendo contada pelo fazendeiro e o que é fantástico é o modo como ele vai se referindo a própria mulher, começando assim, Sa- Maria Andreza, minha santa e meio passada mulher, evoluindo para um tratamento já desacostumado pelo tempo tal como a afirmativa feita, rifle na mão: Vamos dormir abraçados...

 A Partida do Audaz Navegante, que aconteceu Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa nenhuma. A Benfazeja, uma das mais tocantes estórias que já li, tal e qual a estória de Sorôco, onde a solidão dói tanto que dá vontade de sair porta afora abraçando todos os miseráveis solitários do mundo. E tem ainda Darandina, Substância, Tarantão meu Patrão , culminando com Os Cimos.

Penso que muitas páginas poderiam ser escritas sobre a escrita Roseana, mas esse não é meu propósito. Além de escrever para não esquecer, também escrevo para que aqueles que nunca tiveram o ensejo de ler Rosa, pela mitologia que o cerca como um autor difícil, se animem. Posso dizer que no princípio das primeiras vezes a gente até vai lendo como uma língua estrangeira que a gente conhece na superfície, mas com o tempo passante, essas palavras difíceis, algumas próprias do sertão, outras arduamente pesquisadas e ainda aquelas que são o que se chama de neologismos vão se entranhando de tal forma em nossa sensibilidade que até parece que nos jogaram o pó de pirlimpimpim.

Esclareço ainda que os nomes dos contos estão sublinhados e os textos copiados deles, em itálico e que usei aqui o termo estória porque é assim que o autor se refere a estória - ficção. Mas não é a minha escolha, acostumada que estou com história usada indistintamente.