"Azul - Corvo" de Adriana Lisboa

Resenha: “Azul – Corvo” – por Rocio Novaes

A alusão que o título azul – corvo, último romance de Adriana Lisboa, faz ao poema “O Peixe” de Marianne Moore (1887 -1972), no qual a poeta modernista atribui às conchas esta cor inusitada: azul – corvo, dialoga, por um lado, com as incursões da personagem Vanja ao estranho mundo da poesia que “fazia sentido, mesmo quando não fazia, mesmo quando era um torcicolo de palavras” (p.78) e, por outro, de forma sarcástica, com a história da guerrilha no Araguaia e as operações do Exército para combatê-la, denominadas de Peixe I, Peixe II...O contraste entre a beleza do poema e a crueldade das tais operações imprime ao romance uma ironia, que, não fosse isso, apenas se insinuaria.

Na maior parte do tempo, a sensação que me acompanhou durante a leitura de Azul – Corvo é muito próxima da descrição que a personagem Evangelina, ao observá-la pela primeira vez, faz da neve: “Objetos pálidos bem pequenos e meio felpudos caíam flutuando do céu, sem som e quase sem peso. Alguns chegavam mesmo a subir de novo no ar, no meio da descida, em petelecos invisíveis do vento quase nenhum”. (p.136)

Evangelina ou Vanja é uma adolescente que, após a morte precoce de sua mãe, parte para o estado do Colorado nos Estados Unidos para, com o apoio de Fernando, ex-marido de sua mãe, tentar encontrar seu pai biológico a quem nunca conhecera e que, por sua vez, não tinha conhecimento da existência desta filha. Fernando guarda de seu passado, em quase segredo, o fato de ter participado da guerrilha do Araguaia. Vanja guarda de seu passado o fato de ter uma árvore genealógica com galhos secos, cujos frutos faltantes talvez sejam recuperados ao encontrar seu pai. Guarda também, com aconchego, lembranças das férias de verão na Barra do Jucu no Espírito Santo, em companhia de amigos de sua mãe e dos filhos dos amigos, ocasião em que dá a impressão de ter preenchido, mesmo que provisoriamente, sua árvore genealógica imaginária.

Esses enredos, tal qual o cair da neve, vão se alternando e flutuam nas páginas descendo e subindo, quase sem peso. E sem que sintamos o soprar do vento que nos leva do árido Colorado à Amazônia. Mas, ao contrário da neve, os enredos não flutuam em silêncio.

Os sons nos chegam com as canções de Janis Joplin durante as viagens de verão de Vanja e Suzana, sua mãe. E, mais sutilmente, pelas falas de Carlos, o menino salvadorenho de quem Vanja fica amiga e que, com pouco mais de um ano como imigrante ilegal nos Estados Unidos, faz uma deliciosa mistura de inglês com espanhol e fica feliz a cada vez que aprende uma palavra em português que se assemelhe ao espanhol, como a palavra amigo, por exemplo. E, ainda, através das revelações que, aos poucos, Fernando vai se permitindo sobre seu passado como guerrilheiro: o som da mata, da morte, da traição e da culpa que, por vezes, parece assombrar o personagem.

No Colorado, alguns pequenos choques culturais não passam despercebidos para a recém-chegada Vanja e são relatados em tom levemente irônico, como o fato de não ter sido convidada para a festa de aniversário de sua colega de sala por não obedecer ao critério de terem frequentado uma a casa da outra por, pelo menos, cinco vezes!

Os três personagens têm em comum apenas, além do fato de serem imigrantes, aquilo que, no final das contas é o que deveria bastar para a convivência entre as pessoas, por mais díspar que elas possam ser: a solidariedade.

Como a neve que flutua quase sem peso, também pululam no texto algumas considerações sobre o abandono, tanto em sua forma ativa: abandonar, quanto em sua forma passiva: ser abandonado, o que afinal dá no mesmo já que a vida é essa correnteza que machuca e, segundo o “torcicolo de palavras” a que se refere Vanja ao se deparar com o poema de W. H. Auden, “milhares já viveram sem amor, ninguém sem água”. E se não queremos desafinar na vida, ainda assim podemos cantar, mesmo que apenas no silêncio da mente, até que chega um dia em que tanto faz, e podemos dar de ombros, (como a neve?), como Fernando...

Resenha do livro de Adriana Lisboa: Azul – Corvo.

Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2010.