AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA (Cap. II), de HANNAH ARENDT in "A CONDIÇÃO HUMANA"

RESENHA

Capítulo II : AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA in ARENDT, Hannah. “A Condição Humana”. Tradução Roberto Raposo, Introdução Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987, pp. 31-89.

OBS: As passagens abaixo registradas foram extraídas do referido capítulo:

“O ser político, o viver numa ‘polis’, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência.”

“A ‘polis’ diferenciava-se da família pelo fato de somente conhecer ‘iguais’, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro ‘e’ também não comandar. Não significava domínio, como também não significava comandar.”

“A transferência de todas as atividades humanas para a esfera privada e o ajustamento de todas as relações segundo o molde familiar teve profundas repercussões nas organizações profissionais especificamente medievais nas próprias cidades – nos ‘guilds’, ‘confrèries’ e ‘compagnons’ (...) O conceito medieval de ‘bem comum’, longe de indicar a existência de uma esfera política, reconhecia apenas que os indivíduos privados têm interesses materiais e espirituais em comum...”

“... a política, porém, jamais visa a manutenção da vida. No que tange aos membros da ‘polis’, a vida no lar existe em função da ‘boa’ vida na ‘polis’.”

“Esta igualdade moderna, baseada no conformismo inerente à sociedade e que só é possível porque o comportamento substituiu a ação como principal forma de relação humana...”

“A diferença entre Marx e seus precursores foi apenas que ele encarou a realidade do conflito, tal como esse se apresentava na sociedade de seu tempo, com a mesma seriedade com que viu a hipotética ficção de harmonia (...) Qualquer vitória completa da sociedade reproduzirá sempre algum tipo de ‘ficção comunística’, cuja principal característica política é que será, de fato, governada por uma ‘mão invisível’, isto é, por ninguém.”

“Embora a extrema necessidade tornasse o labor indispensável à manutenção da vida, a última coisa a esperar dele seria a excelência. A excelência em si, ‘arete’ como a teriam chamado os gregos, ‘virtus’ como teriam chamado os romanos, sempre foi reservada à esfera pública, onde uma pessoa podia sobressair-se e distinguir-se das demais.”

“Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos vêem e ouvem de ângulos diferentes. É este o significado da vida pública...”

“[A esfera privada é impenetrável ao conhecimento humano, ela]... É oculta porque o homem na sabe de onde vem quando nasce, nem tem conhecimento do lugar para onde vai quando morre.”

“Estar em solidão significa estar consigo mesmo; e, portanto, o ato de pensar, embora possa ser a mas solitária das atividades, nunca é realizado inteiramente sem um parceiro e sem companhia.”

“... a bondade não é apenas impossível nos confins da esfera pública: pode até mesmo destruí-la. Talvez ninguém tenha percebido tão claramente essa qualidade destrutiva da bondade quanto Maquiavel que, em famosa passagem, tem a ousadia de ensinar os homens ‘a não serem bons’.”

No presente capítulo, a filósofa Hannah Arendt propõe-se a refletir sobre as distinções existentes entre as esferas pública e privada, além de contra-argumentar sobre o advento da automação na vida moderna. Consoante Arendt, o último fato tornou bastante difusas ambas esferas, contribuindo, decisivamente, para a destruição e a deformação das diversas capacidades humanas, em especial, a capacidade de exercer a atividade política enquanto atividade humana por excelência; capacidade exclusivamente humana, a qual somente pode ser exercida no “palco” da esfera pública, espaço no qual irrompe o autêntico confronto da pluralidade de diálogos entre iguais. Posto isto, e amparado numa assertiva do professor Celso Lafer (ex-aluno de Hannah Arendt), caso um filósofo nos afirmasse que a política é a nossa única garantia de sanidade, que só a atividade política dá sentido à vida, e que a política representa a mais alta fonte de felicidade, nossa curiosidade ficaria imediatamente despertada. E se o filósofo, concomitante a tais afirmações, nos apresentasse um conjunto de argumentos tão extenso quanto o apresentado por Hannah Arendt, pensamos que estes temas inspirariam respeito e mereceriam, certamente, um exame cuidadoso. Nesse sentido, partamos do pressuposto de que nos aproximaremos de uma filósofa possuidora de grande admiração pela Antigüidade greco-romana, tendo a vida da “polis” grega como ponto privilegiado em seu pensamento.

Uma vez configurado nosso tema nesses termos, num primeiro momento, Arendt analisa as relações entre as manifestações daquilo que considera como as três atividades humanas fundamentais da “vida activa” (na Antigüidade, a prioridade recai no intelecto, isto é, na vida contemplativa):

. O labor: que assegura a sobrevivência do indivíduo e a vida da espécie...;

. o trabalho: que garante a durabilidade do caráter efêmero do tempo humano...;

. a ação: condição humana da pluralidade, que se afirma por meio da relação dialógica e na qual o indivíduo pode revelar sua verdadeira identidade... ,

equacionadas às esferas pública e privada. Tendo a politéia grega como paradigma, na confecção do capítulo ora em estudo, um sistema é representado mediante dois conjuntos relacionados de conceitos. De um lado, Labor, Trabalho e Ação. D’outro lado: a Esfera Pública e a Esfera Privada. Tal aparato conceitual evidencia – repetimos – a influência da “polis” grega no espólio arendtiano. Com efeito, a partir daí, Arendt nos aponta para a razão de como se deu, afinal, a transposição da tradição grega quanto aos conceitos há pouco mencionados, bem como para as modificações e adaptações sofridas no cenário mais amplo da história posterior, na qual ainda prevalece o quadro de valores gregos, porém já mesclados com as mais diversas tradições culturais construídas através do desenvolvimento da história, como por exemplo, o surgimento da moralidade cristã, das teorias políticas: do Renascimento ao Iluminismo (Hobbes, Locke etc.); mas que ainda gravitam ou estão à volta do pensamento grego. Na verdade, Arendt procura percorrer o longo trajeto estabelecido entre o surgimento da cultura da “polis” grega e o surgimento da cultura cosmopolita, de massa, que impregna o mundo contemporâneo. Desse modo, a preocupação teórica mais acentuada de Arendt, durante a apresentação do presente capítulo, concentra-se, sobretudo, na busca do significado do que representava ser homem na “polis” grega; isto indicava tanto uma situação quanto uma condição bem precisas, isto é, participar da vida pública e decidir os destinos da comunidade, fora da qual o homem nada significaria. Sob este pano de fundo, Arendt procura apontar para a drástica guinada sofrida pela filosofia clássica grega (na qual a ação era prerrogativa exclusiva dos homens), ou seja, o momento em que a Filosofia praticamente abandona a Política como tema de reflexão. Uma vez esquecida a definição do homem como animal político, que fazia da política a realização máxima da moral e da conduta ética (o homem não é mais essencialmente um animal político), e uma vez esvaziados a “polis” e o homem de seu significado político, Arendt procura refletir sobre a razão da interdição da realização do homem na vida exterior na qualidade de animal político. Nesse caso, e consoante a concepção de arendtiana, como se deu, afinal, a referida interdição?

Deu-se mediante o esfacelamento da correlação das atividades humanas (Labor, Trabalho, Ação) e pela pretensão de uma delas, nesse caso a atividade ligada ao labor, vir a se tornar hegemônica e passar a reger as demais atividades, determinando, dessa forma, a existência humana em sua totalidade. Devemos entender que, ao adotar tal escala de atividades, Arendt rejeita, deliberadamente, a hierarquia social moderna, retornando e retomando, desse modo, o paradigma aristotélico, para quem nem o labor e nem o trabalho possuíam dignidade suficiente para que ambos fossem chamados de modo de vida (“bios”), pois não eram atividades autônomas e autenticamente humanas. Em contrapartida, o trabalho adquiriu no mundo moderno uma relevância que o colocou acima das demais atividades, libertando-o do exílio a que fôra condenado na esfera privada pela antiga mentalidade grega.

Procurando estabelecer a relação entre a ação e a vida comum, Arendt distingue a concepção original da política grega contrariada pelos romanos e, por extensão, até a nossa atualidade. Se por um lado os gregos consideravam a vida em comum (“vita social”) enquanto dotada de elementos que possuíam algo em comum com a vida animal, visto que regida por associação natural (a família estava inserida na esfera da vida privada), somente na esfera da vida pública da Cidade-Estado grega, na qual o cidadão adquiria a segunda vida política, poderia o homem grego tornar-se livre cidadão da “polis”; por outro lado, na medida em que a “polis” sucumbi ao poder da Civilização Romana, o orgulho do homem grego perde o próprio fundamento. Junto aos romanos todos os cidadãos igualam-se na condição de súditos, de homens politicamente reunidos mediante uma aliança, objetivando uma única finalidade. A condição especial do cidadão, enquanto envolvido com as atividades da ação, por conseguinte, somente com o discurso político, nas quais a preocupação central residia em tudo se decidir mediante palavras e persuasão – jamais fazendo uso de qualquer tipo de violência! –; deixa de ser privilégio dos gregos, e é lançada à deriva. Com o advento do Império Romano, os indivíduos passam a ser considerados homens biologicamente definidos, membros de uma única humanidade, participantes não mais de uma “polis”, mas de uma cosmópolis (Roma). Isto dá origem ao nascimento do conceito de vida em comum: “O homem é por natureza político, isto é, social – Tomás de Aquino”; definição cuja sociabilidade é algo adquirido por meio da “companhia natural” (tal fato, na antiga Grécia, era entendido como um fenômeno pré-político), destituída, portanto, do “nous” aristotélico (capacidade de contemplação), do discurso (“lexis”) e da ação (“práxis). Posto isto, verifica-se a inclusão da esfera social na esfera pública, isto é, na esfera política) concomitante ao uso da força e da violência. Em contrapartida, repetimos, na antiga Grécia a violência era um fenômeno pré-político, restrito à esfera privada do lar.

Uma vez considerada definitiva a ascensão do social na esfera política como um fenômeno historicamente recente, Arendt recorre, novamente, aos critérios políticos dos antigos gregos, por ocasião em que os últimos apresentavam bem definidas as esferas pública e privada, durante a Antigüidade; nos tempos atuais já não se apresenta a mesma linha divisória que separava uma da outra, porque se encontram bastante difusas ou ambas submersas na esfera social. Nesse sentido, as preocupações que outrora estavam limitadas exclusivamente à esfera privada (lar e atividades domésticas) tornam-se, sobretudo na nossa modernidade tardia, interesses coletivos elevados à esfera pública. Nesse caso, a economia política, que na Antigüidade pertencia à esfera privada ou doméstica e que, por definição, estava voltada a garantir o sustento da vida, do núcleo familiar (labor), adquire força necessária para se elevar e se tornar, por definição, economia nacional regida por uma administração doméstica nacional – gigantesca e coletiva! Por conseguinte, com a ascensão do social à esfera pública, verifica-se o enriquecimento da esfera privada. Irrompe, então, o moderno individualismo, o qual já não possui um lugar objetivo, isto é, nem ao menos um espaço apropriado para se manifestar; individualismo tão-somente ancorado nas emoções humanas, donde deriva o surgimento do subjetivismo no que se refere à orientação das questões políticas. Isto se dá porque, uma vez interditada a realização do homem na esfera pública, em se tratando da autêntica política, agora o que importa é a intimidade de homem, isto é, a vida privada. Com a ascensão e a consolidação da sociedade moderna (esta não mais entendida como comunidade no sentido grego), do interesse comum e da opinião comum elevados à esfera pública, que se torna uma esfera híbrida, porque povoada de interesses privados que assumem importância pública, surge, então, o fenômeno que Arendt denomina de “o governo de um só homem”, isto é, o governo totalitário, que procura agregar os indivíduos pertencentes a uma mesma sociedade numa única família, constituída de uma só opinião e de um único interesse. O “governo de ninguém” é a última forma de governo do Estado Nacional Moderno, que resulta na burocracia. De caráter essencialmente totalitário, o “governo de ninguém”, instituído pela ascensão do social à esfera pública, transfere-se para a relação que se estabelece entre o social e o íntimo, mais precisamente para os conceitos de paixão e de compaixão; desse modo, ambos conceitos passam a reger o contrato estabelecido entre as duas categorias. Nesse caso, se a paixão é a capacidade humana de sofrer, o “governo de ninguém” é movido pela compaixão, cuja capacidade é sofrer pelos outros. Movido pela compaixão, o “governo de um só” é o causador da exclusão de qualquer possibilidade da ação político-espontânea vir a se manifestar. Nesse caso, ao invés da ação, quando a sociedade de massas surge no horizonte da história da humanidade, ela traz consigo os elementos de luta para a conquista definitiva da esfera pública. Deste fenômeno originam-se as regras de comportamento, as quais impõem uma conduta uniforme às massas ou à sociedade como um todo.

Objetivando avaliar a extensão da vitória da sociedade moderna no interior da esfera pública, Arendt argumenta que, seguido da inicial substituição da ação pelo comportamento concomitante à posterior substituição do governo pessoal pelo aparato burocrático do Estado Moderno, irrompe, então, o surgimento das Ciências Sociais que, na qualidade de “ciências do comportamento”, delas se origina o modelo de conduta social mediante o qual a sociedade de massas apresentará o homem como o animal supremo, porque inserido numa sociedade na qual o próprio processo da vida foi inteiramente canalizado para a esfera pública. Tal sociedade adquire um corpo sobrenatural, movida por uma irresistível e sobre-humana “vontade geral”. Ocorre, então, a transformação da questão social em força política.

Assim, constituída a sociedade como organização pública do processo vital, com o advento da questão social à esfera pública, Arendt tece uma rigorosa crítica ao pensamento marxiano, definindo-o como uma teoria cuja força ideológica promove o labor à estatura de coisa (“rex”) pública, visto que transforma todas as comunidades modernas em sociedades de operários e assalariados; tese arendtiana que parte do pressuposto de que o marxismo, como engendrador de proposta de luta para libertar os homens da opressão de seus semelhantes, ao considerar o labor como atividade hegemônica e exclusiva para a realização da referida tarefa, se por um lado, o marxismo procura libertar o processo vital da sociedade dos grilhões da escassez, buscando fazê-lo avolumar-se numa torrente de abundância, por outro lado, politicamente, essa “nova leitura” da realidade provoca uma real capitulação da liberdade frente ao reino da necessidade. Desse modo, o que antes, na esfera pública da “polis”, era o lugar em que os homens podiam mostrar o que de real e inconfundivelmente eram (espaço reservado à individualidade, enfim, à liberdade humana), o referido lugar desaparece no mundo moderno: este local exclusivo à excelência humana cede terreno a discursos voltados à exaltação e à glorificação tão-somente do labor. Noutras palavras, o mundo moderno encerra os homens na esfera privada, com todas as futilidades que esta comporta.

Uma passagem importante do capítulo ora em estudo refere-se à questão ligada ao interesse comum. Arendt apresenta tal fenômeno de maneira bastante singular, enquadrando-o, resumidamente, como fenômeno sócio-político cuja ênfase recai “no coração”, tornado fonte de virtude política; contudo, ele não oferece condições suficientes para que a opinião genuína venha a se formar por intermédio de um debate aberto, o qual requer uma comunidade de homens agindo na esfera pública na qual prevaleça, sempre, a verdadeira igualdade, ou melhor, o diálogo entre iguais. Ao contrário, a ênfase, que recai “no coração”, é, na verdade, uma falsa forma de igualdade, visto que possui bases fincadas no conformismo, tipo de comportamento que substitui a ação como modo essencial de relação humana, impedindo, dessa maneira, que cada um venha a se distinguir dos demais, e incentivando, com isso, toda a sociedade a se conformar com os demais.

Quanto ao princípio político cristão, Arendt argumenta tratar-se de uma forma de virtude política que procura edificar o mundo sobre a caridade, transformando-o em algo apolítico, não público. Dele se origina um “corpus”, no qual as relações existentes comparam-se às relações vigentes entre os membros de uma mesma ou única família. Negando o mundo como esfera política, no caso específico da doutrina cristã, a esfera política é banida, porque a compaixão, oriunda da moralidade cristã, elimina a distância, o espaço material entre os homens, no qual irrompem os eventos políticos e toda a teia do universo das relações humanas mais significativas. O próprio “silêncio” dos cristãos e a aversão a qualquer fala conciliatória ou argumentativa, na qual alguém possa falar com outro alguém sobre algo que é do interesse de ambos; este mundo, loquaz e argumentativo, é inteiramente estranho à compaixão, cuja origem encontra-se nos princípios cristãos dirigidos unicamente para o homem que sofre. Pensamos, que a referida tese arendtiana, nesse caso, procura demonstrar que a compaixão como regra máxima na política não possui o poder de iniciar a modificação das condições materiais, a fim de eliminar o sofrimento humano; e se o faz é por meio da eliminação, isto é, dos demorados processos de persuasão, negociação e de acordo que são os princípios máximos da lei e da política. Em seguida, Arendt aponta para outro agravante, isto é, ainda quando empresta sua voz ao próprio sofrimento, o cristianismo clama por ação direta e rápida, ou seja, fazendo uso da ação mediante meios de violência. Em suma, dirigido pelo princípio político cristão, o interesse comum da sociedade seria, então, tornar-se, exclusivamente, a grandeza do homem: ele não mais estaria restrito a sua própria dignidade.

Finalmente, é interessante ressaltarmos as reflexões de Arendt quanto às questões atinentes ao social e ao privado. Nestas, Arendt afirma que, na determinação cada vez mais intensa de se derrotar a miséria perpétua da humanidade, a luta daí oriunda sofreu influência dos próprios pobres, que passaram a subordinar os ideais nascidos da pobreza à preocupação pública - algo distinto dos ideais que haviam inspirado a fundação da liberdade na antiga Grécia. Por outro lado, uma vez atraídos pela paixão fatal, pela possibilidade de ascensão social creditada pelo enriquecimento rápido, a sociedade de massas passa a solicitar auxílio e proteção do Estado, propiciando, com isso, o acúmulo de mais riqueza, e não mais o direito de participação na esfera pública, consoante o valor da própria riqueza acumulada como se constatava na Antigüidade grega. Com efeito, nesse caso, Arendt procura demonstrar que o desaparecimento do gosto pela liberdade política concomitante ao recuo dos indivíduos rumo a uma esfera inferior de consciência ( consciência solipsística: colada ao real, incapaz de transcender), na medida em que os indivíduos renunciam à participação na esfera pública, é chegado então o tempo no qual o indivíduo, tendo vencido o cidadão, se defenderá contra a diferença entre a esfera pública e a esfera privada, e tudo fará para que ambas venham a se constituir numa única esfera, isto é, a esfera social regida por apenas um único interesse controlado pelo Estado totalitário, acarretando, com isso, a total apatia e alienação dos indivíduos em relação ao mundo.

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

Campinas, é quase-verão de 2006.

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NOTA CRÍTICA/ TRANSCRIÇÃO:

“Gênio feminino

Tenho dois livros de cartas de Hannah Arendt, uma troca de correspondência com o filósofo existencialista alemão Karl Jaspers, e outro com a escritora americana Mary McCarthy. Arendt é a mulher mais inteligente que conheço. De Heidegger a Kafka, a posição sui generis do judeu moderno, no livro ‘O Judeu Como um Pária’, em inúmeros ensaios políticos e filosóficos, ela nos surpreende com sua profundidade e o alcance de sua visão. Cria controvérsia. Seu livro ‘Eichmann em Jerusalém’, em que acusa os Conselhos Judeus de cumplicidade indireta com Hitler, facilitando o trabalho nazista de arrebanhar os judeus e leva-los a campos de extermínio, criou uma das mais virulentas polêmicas dos anos 60. Mas seu conceito de que o mal é banal e só o bem é radical, hoje lido ou ouvido tão rotineiramente como frase de Max Weber, estilo de vida, de que pouca gente sabe a origem, ficou na língua. Na verdade, a idéia é de Jaspers, na correspondência, 820 págs., Harcourt BraceJovanovich, Nova York, US$ 49,95. Agora leio sua troca de cartas com Mary McCarthy.

Perguntada por McCarthy quando começou esse em cima-do-muro que terminou no politicamente correto, Arendt respondeu que surgiu com a idéia de igualdade. Idéia que tornou a vida intolerável, porque não há igualdade. Mas a idéia uma vez posta, não pode mais ser disposta. É isso aí.”

FRANCIS, Paulo. “Gênio feminino”. O Estado de São Paulo, 5.2.1995 [p. (?)].