O Caminho de Avalon - Os mistérios femininos e a busca do Santo Graal

O livro da psicanalista Jean Shinoda Bolen é um depoimento narrativo sobre sua jornada em busca da compreensão e compartilhamento com o leitor da sua história, vivenciando o Graal através dos mistérios femininos.

A autora recebe um convite inesperado de uma de suas leitoras para fazer uma peregrinação em alguns dos lugares sagrados da Europa, dentre eles Glastonbury, local onde foi construída a primeira igreja em honra a Virgem Maria e onde presume-se existir pela existência de um campo mórfico de energia, o antigo portal de Avalon, local onde acredita-se que existiu uma cidade onde o lado feminino de Deus era cultuado.

A peregrinação foi uma viagem em busca do simbólico Graal, o cálice sagrado que recebeu o sangue do Cristo mas que a autora entende ser também o símbolo do corpo feminino; o cálice simbolizando o útero e o vinho o sangue menstrual. Portanto, beber do cálice seria beber do renascimento, fazer uma passagem, morrer simbolicamente para uma nova fase da existência.

As perguntas do Graal: “O que vos aflige?” e “Para quem serve o Graal?” são as chaves para todo o entendimento da essência do objeto. Em determinados momentos da vida estaríamos como que mortos na entrada de uma nova fase onde precisamos nos fazer as perguntas certas para nos libertarmos das falsas percepções sobre nós mesmos. Ao fazermos as perguntas certas entramos em contato com a criança sagrada interior que provida de espontaneidade nos faz entrar em encontro com a verdadeira harmonia.

“O Graal é um objeto misterioso e insondável – pode ser um vaso, um prato raso, uma pedra ou uma joia – digno de que alguém renuncie a toda uma vida para encontrá-lo. Ele está escondido em um castelo oculto onde mora o Rei Pescador. O rei tem um ferimento incurável, e seu reino é um deserto. Ele será curado e seu reino recuperado somente se um cavaleiro conseguir encontrar o castelo e, ao ver o Graal e o rei ferido, formular uma pergunta, que é em geral “Para Quem serve o Graal?” ou “ O que vos aflige?” Se não conseguir formular a pergunta, o castelo desaparecerá e o cavaleiro terá de partir mais uma vez nessa aventura. Se ele encontrar novamente o castelo do Graal e fizer a pergunta correta, o rei recuperará sua saúde e o deserto se transformará em um campo fértil.”

Ela se fundamenta na teoria jungiana dos arquétipos, forma de vivenciar um mito coletivo na corporeidade. Está pautada também no universo dos mitos, da transmissão oral do conhecimento, prática que remonta às origens da humanidade. A narrativa descrita no livro é por si uma espécie de contação de histórias que remonta à memórias antigas e à explicações de lendas e mitos, analisando alguns conceitos de temática religiosa como o de mistério, verdade religiosa que se tem conhecimento através da revelação.

Relembra a perseguição religiosa na idade média pelos tribunais da inquisição, onde milhares de mulheres foram mortas. Estima-se que um número maior de mulheres foi morta nessa época do que na segunda guerra mundial nos campos de concentração. Pela perspectiva junguiana o que acontece é que a memória coletiva feminina, gravou neste período o horror da perseguição, do medo e do assassinato, todos fatos castradores da naturalidade, da espontaneidade, da liberdade, da força natural feminina que de maneira alguma é libertina.

Apoiada na força da palavra, e acreditando que através das palavras se criam realidades, a autora relata sua chegada em Glastonbury, situada no oeste da Inglaterra. Acredita-se que vários fatos de natureza mística aconteceram neste local, influenciando a história da humanidade. Supõe-se que o primeiro deles foi a chegada de José de Arimateia com o cálice sagrado, o Graal, após uma longa viagem após a morte de Jesus. O cálice teria sido perdido, sendo incorporado às lendas sobre o Rei Artur. Diz-se que José fincou o seu cajado ao chegar em Glastobury e o cajado era de uma árvore chamada Espinheira Santa, que faz brotar flores na época do Natal, considerada hoje como uma planta de alto poder curativo.

Sabe-se também que Glastonbury está dentro de uma região protegida por símbolos que representariam os doze signos do zodíaco o que comprovaria sua sacralidade. É também o local onde foi erigida e onde durante muito tempo existiu a maior igreja da Inglaterra.

Outra lenda é a de que nesta cidade encontram-se os portais de Avalon, local para onde o Rei Artur foi levado por Morgana, sacerdotisa de Avalon e sua irmã. Segundo a lenda, ela atravessou os portais da cidade numa balsa, tendo Artur morto. Ao chegarem em Avalon ela deu-lhe poções mágicas que o ressuscitaram e o mantiveram vivo, porém em estado de sono até que o seu reino pudesse ser novamente governado.

“Quando uma história tem um significado para uma pessoa e uma época, como é o caso da lenda do Graal, ela se torna um mito para aquela era. E, a menos ou até que haja uma versão oficial, haverá embelezamentos, exclusões e acréscimos, pois a história é um veículo vivo da psique de quem conta e de quem ouve”

Até aqui a veracidade dos fatos ficam por conta da beleza das narrativas transmitidas pelos contadores de histórias, pela escritora Marion Zimmer Bradley e pela tradição oral da cultura, mas a especulação encontra fundamento nas teorias espíritas onde a autora menciona um recurso mediúnico denominado psicometria, utilizado pelo médium como caminho para identificar a história de pessoas e lugares através do contato com seus objetos e locais onde viveram. Estes locais e objetos são permeados por um campo mórfico de energia e concentram memórias de pessoas que passaram por ele.

A autora afirma que Glastonbury pode conter esse campo mórfico, onde a memória daquelas pessoas estando instalada na região provoca o inconsciente dos que entram em contato com o local, influenciando seus pensamentos e comportamentos com energias que pertencem a um tempo distante. O conceito de campo mórfico é também associado às teorias do inconsciente coletivo do psicanalista Carl Jung.

“Avalon é, em termos psicológicos, um mundo-mãe. Está à sombra da consciência patriarcal, reprimido e, portanto, temido e distorcido, como também o estão os elementos do inconsciente pessoal ou coletivo que são negados.”

A autora compara constantemente, a medida que relata sua jornada, as origens e repercussões das religiões de cunho patriarcal no mundo ocidental com as antigas práticas religiosas e místicas de cunho matriarcal dos povos da antiguidade, tentando legitimar estas últimas como mais próximas da natureza, mais ricas, espontâneas, melhor fundamentadas e respeitosas com as mulheres que durante milênios foram desprivilegiadas socialmente.

Afirma que é necessário fazer jornadas como a sua em algum momento na vida, não necessariamente uma peregrinação pela Europa, mas uma peregrinação que pode ser interna, a partir de fatos vividos em nossas vidas, para se ter uma existência mais ampla e rica onde a criatividade e a beleza se unem ao sagrado resgatando memórias perdidas entre o mundo feminino e sua relação com os homens, com os filhos, com Deus, com a natureza e com as demais mulheres, apropriando-se da consciência destas relações a partir de uma reconstrução do imaginário pessoal em contato com a experiência do Graal.

Suas conclusões são várias e retiradas de cada experiência vivida. Mas no geral pode-se dizer que após o relato de sua história, Jean Shinoda Bolen afirma ser necessária uma constante troca de histórias pessoais no mundo, promovendo mudanças de atitudes e de pensamentos, objetivando uma consciência maior nele das forças da natureza e de uma espiritualidade baseada num entendimento do sagrado a partir da relação intrínseca do corpo humano, mente e espírito com um deus que abarca aspectos femininos que foram deixados de lado pelas religiões patriarcais que colonizaram o ocidente.

Entendo que sua tese é de extrema riqueza e sua narrativa é comovente. Embora pouco fundamentada em aspectos palpáveis aos olhos da ciência tradicional, é formada pelo que há de mais rico na história da humanidade: o entendimento do mundo a partir dos mitos e seu fundamento psicanalítico que reverencia o universo dos símbolos, do imaginário e da linguística. Foi através dos mitos que os gregos formaram, fundamentaram e vivenciaram a sociedade que erigiram. Por este mérito, são considerados até hoje como uma civilização que embora escravizasse pessoas e promovesse guerras tinha um entendimento de mundo bastante avançado e refinado que deixa para trás muitos governos atuais como modelos de civilização.

Diante da narrativa, que é mais voltada para as mulheres, gostaria de frisar que considerando o corpo masculino como vindo do mesmo corpo sagrado que o feminino, não se pode esquecer que os homens guardam consigo o princípio da vida, as sementes, nós mulheres temos a terra, o local onde elas vão se imiscuir, nutrir-se e crescer para dar continuidade de vida a um novo ser. Para a natureza não existe questão de superioridade ou de inferioridade, simplesmente há existência, há manifestação. O universo, está permeado por energias mais brandas consideradas pelos orientais como energias yin, e por energias mais assertivas conhecidas como yang, ambas interagem para integrarem-se.

Ambos os gêneros precisam lutar juntos para preservar a continuidade da vida no planeta e melhorá-la. Entendo que é preciso tomar cuidado com os discursos de superioridade feminina que costumam ser concluídos a partir de leituras com esta temática. Entendo que as forças precisam ser integradas e os papeis compreendidos por ambos os gêneros, a atitude precisa ser crítica, o olhar aguçado. Do contrário cairemos num discurso exclusivista como o que a maioria dos homens fizeram durante milênios. Não é necessário responder na mesma moeda.

A narrativa traz sobretudo luz para as evidências que se perderam na abordagem do cristianismo por exemplo. Se houve um ser humano que lutou e defendeu as mulheres e sua condição, respeitando-as e promovendo a inserção delas no mundo político, este alguém foi o Cristo, homem histórico e revolucionário, atuante socialmente e que promoveu radicais mudanças de pensamento que favoreceram sem dúvida alguma o papel feminino na história do mundo. O sangue do Graal é um sangue crístico, pode ser associado ao sangue menstrual mas é preciso lembrar que nele foi colhido o sangue do Cristo.

As histórias da mitologia judaico cristãs, incluindo as presentes na bíblia, tem a mesma natureza e importância de outras histórias que a sucederam, antecederam e coexistiram em culturas distintas. É preciso pensar que o elemento econômico, o elemento de influência política e religiosa que circula nas esferas do poder social, legitima e dá forças às histórias que fortalecerão sua hegemonia.

A história de Avalon põe em questão a narração milenar da cultura judaico cristã de Adão e Eva, e provoca esclarecimentos sobre a mensagem crística diante do papel feminino no mundo, é aí que reside o seu poder. As histórias que esclarecem e libertam o mundo feminino da culpa, não apenas as de Avalon, de fato precisam ser mais difundidas, para um entendimento maior da memória feminina.

Para uma mulher ocidental, é ainda difícil ser natural. O feminino traz embutido na memória coletiva um significado que é sujo, que é animalesco e que é suspeito. Ele ainda anda nas margens sociais em pleno século XXI, ainda guarda a memória da maldição de Eva, que inicia a humanidade no pecado e conduz o ser humano para o mundo, mas concentra em si a culpa do erro perante o que é divino e puro. Esta é uma condição fragmentada. É preciso unir o discurso do corpo ao do espírito, pois eles nunca estiveram separados a não ser por um falso entendimento de alguns componentes da igreja cristã. A luz lançada sobre o Graal e Avalon nos libera desta culpa e nos encaminha para a transcendência e para a integração, onde é possível exercer naturalmente e legitimamente a liberdade e beleza do feminino.

Milena Ferreira Mariz Beltrão

Especialista em Arte, Corpo e Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Mila Mariz
Enviado por Mila Mariz em 30/08/2011
Código do texto: T3191128
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