A METAMORFOSE

Você já se imaginou um dia acordar, se olhar no espelho e se ver transformado numa barata? Pois foi isso que Franz Kafka, um dos maiores escritores de todos os tempos imaginou um dia que aconteceria com ele e com todas as pessoas que viviam rotinas semelhantes, embrutecedoras, vazias de sentido mas plenas de cobranças. O personagem de Kafka, nesse conto fantástico, seguramente um dos melhores produtos da literatura mundial, é um caixeiro viajante que se torna arrimo de família e gasta a sua vida trabalhando unicamente para prover as necessidades dos seus pais e sua irmã. 
A estória é ambientada no início do século quando a Europa caminhava rapidamente para o colapso moral e filosófico que a levou ás duas guerras mundiais. É uma estória inspirada no nihilismo que Nietszche e Sartre souberam interpretar tão bem no terreno da filosofia e que levaram uma geração inteira a se perguntar e a se preocupar com o verdadeiro sentido da existência humana, que ao ver daqueles filósofos, e os adeptos dessa escola, era nada mais que uma tentativa, as vezes cruel, de preencher um vazio que se apresentava a nossa frente.

Franz Kafka era filho de pais judeus que haviam conseguido prosperar economicamente em Praga, cidade que na época fazia parte do império austríaco. Nessa época começava já  o desenvolvimento de uma feroz campanha anti-sionista, que procurava atingir os judeus de todos os lados: econômica, social, política e religiosa. Esse foi o caldo de cultura que, duas décadas mais tarde, daria nascimento ao nazismo.
Kafka vivia em Praga nessa época, sofrendo, de um lado a arrogância do patriarcado exercido pelo pai, judeu tradicionalista, e de outro o crescente sentimento de alienação e desconforto que a mídia anti-judaica lhe inspirava. Dizem seus biógrafos que quando ele chegava em casa, após a jornada enfadonha de trabalho que cumpria na empresa familiar, ou depois, quando trabalhou como funcionário público, ele se estirava no sofá e se sentia um inseto, com suas patas para cima e sem nenhum compromisso para cumprir além daquele de provocar asco e horror nas pessoas que olhavam para ele.

O inseto em que Kafka transformou seu personagem é uma espécie de barata, asquerosa e nojenta, porém, ainda assim, suportável pelas pessoas de sua família, que com ele convivem até sua morte, que acontece naturalmente e sem quaisquer considerações metafísicas. Tudo volta ao normal depois disso. Aliás, tudo transcorre normalmente depois que Kafka – ele é o próprio personagem - se transforma num inseto. O pai volta a trabalhar, a irmã volta a tocar seu violino, a mãe retoma sua vida normal e até os inquilinos que alugam quartos na casa em que eles moram vêem tudo isso como normal. Não estranha a ninguém ter uma barata como ele em casa. Acostumam-se com isso, apenas sentem nojo como normalmente se sente nojo de baratas, mas sabe-se que elas existem e não se pode fazer nada a respeito, a não ser matá-las ou deixar que morram naturalmente. Assim Kafka vive a sua vida de inseto, num mundo onde nada tem importância e tudo termina do jeito que começou. Sem a menor importância.
Kafka escreveu pouco e sua literatura não é fácil de entender. Ele é pessimista, realista e circunstancial. Retrata um momento sombrio da vida da civilização ocidental, em que ela caminhava rapidamente para o caos que resultou nas duas grandes guerras mundiais. Além de A Metamorfose, sua outra grande obra é o Processo, romance também nihilista que conta a história de um sujeito que foi processado por um crime que nem ele nem seus denunciantes, promotores e juízes jamais souberam explicar do que se tratava. Era a comédia do vazio da vida de que falava Sartre: o crime de ter nascido, de viver sem saber por que, a não ser a inglória tarefa de preencher um espaço entre o ser e o nada.
Apesar dos quase cem anos já passados desde a primeira edição de A Metamorfose, o genial conto de Kafka ainda é muito atual. Nietszche, que também era um nihilista, intuiu o mito do eterno retorno, no qual o universo se repete eternamente na infinitude do tempo, porque ele é feito de duas forças que se alternam e se completam, e uma não pode existir sem a outra. Por isso não há paz sem guerra, amor sem ódio, dia sem noite, prazer sem dor. Assim, tudo que fazemos só tem um objetivo: sentir a si mesmo como algo que existe. Penso, sinto, logo existo, ou como dizia Shakespeare, por um dos seus personagens, o príncipe Hamlet: "ser ou não ser eis a questão"..
A Metamorfose não é um conto de horror nem é uma estória surrealista. É uma metáfora. E como tal ela só tem sentido quando a processamos no nosso inconsciente. Vale a pena relê-la nos dias de hoje.         
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 28/10/2011
Reeditado em 28/10/2011
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