"O Homem da Multidão", Conto de Edgar Alan Poe

O Homem da Multidão" foi escrito por Edgar Allan Poe e é considerado um marco da literatura flaneur.

O ato de flanar definido como o prazer em observar refletidamente os moradores da cidade em suas atividades diárias; história que se passa em 1840, quando Londres era a maior cidade do mundo, com uma população de 750.000 habitantes.

O narrador é um personagem anônimo que depois de uma doença, sem nome, esta sentado num café, fascinado pela multidão que vê na rua.

Ali ele categoriza os diferentes tipos de pessoas que observa, até que ao cair da noite concentra sua atenção em um velho decrépito, quando levanta e vai atrás dele, seguindo-o de longe, através de bazares e lojas, na pior parte da cidade.

Perseguição que atravessa a noite, e vai até a manhã do dia seguinte, até que finalmente, exausto, o narrador está na frente do homem, que ao longo de toda história não irá reparar nele.

Este velho é o único transeunte que o narrador não conseguiu categorizar, quando está implícito que eles dois são duas faces da mesma pessoa. Onde o velho homem representa um lado secreto do narrador, embora o narrador não seja capaz de ver isso.

Um detalhe importante deste conto é que este velho carrega um punhal escondido, debaixo do casaco, o que revela a natureza do mal que existe em qualquer homem.

Neste caso o velho pode estar vagando por entre a multidão, em busca de um amigo perdido, ou para escapar da memória de um crime. Nisto consiste a história: o perseguidor, a multidão, e um homem desconhecido, que consegue andar por Londres de tal forma que ele permanece sempre no meio da multidão.

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( Analise do conto segundo estudo de Sérgio Roberto Massagli (UNESP))

"Benjamim diz que “a cidade é o autêntico chão sagrado da flanêurie.

As ruas labirínticas da cidade constituem, para o “perfeito divagador”, “observador apaixonado”, o fascínio da multiplicidade e do efêmero, o gosto pelo movimento ondulante da multidão.

A cidade é o templo do flanêur, o espaço sagrado de suas perambulações. Nela ele se depara com sua contradição: unidade na multiplicidade, tensão na indiferença, sentir-se sozinho em meio a seus semelhantes.

Ao errar entre as galerias e bulevares, ao passear pelos mercados, o flanêur é o ser que vê o mundo de uma maneira particular, sem a pretensão de explicar, mas com a intenção de mostrar, levando a vida para cada lugar que vê. Sua paixão é a exterioridade. Na rua encontra o seu refúgio e desvincula-se da esfera privada, buscando sua identificação com a sociedade na qual convive.

Ocorre, porém, que essa identificação resulta em grande parte complicada pela natureza complexa da sociedade moderna. Pois nas ruas das metrópoles o flanêur constata que o homem moderno é vitimado pelas agressões das mercadorias, e anulado pela multidão, por isso estando condenado a vagar pela cidade como um embriagado em estado de abandono. É essa angústia que o flanêur representou no século XIX.

O flanêur tem o tempo a sua disposição e pode dar-se ao luxo de desperdiçá-lo, para horror da sociedade capitalista, de sua época, pois leva uma vida sem objetivos definidos ... a não ser buscar no complexo urbano, vãos, becos, por onde entra em busca de algum espetáculo para os seus olhos.

Olhos e pernas são a essência do flanêur: caminhante solitário, em busca de aprender toda a riqueza dos ricos detalhes que observa.

Outra característica do flanêur, que o distingue de um filósofo, ou de um sociólogo, é que ele procura por experiência e não por conhecimento. Para estes, grande parte da experiência acaba sendo interpretada como – e transformada em – conhecimento. Já para aquele, a experiência permanece em certa medida pura, inútil, em estado bruto, fruto do olhar ingênuo, como o de uma criança.

O flanêur passa a maior parte de seu dia a vagar pelas ruas, observando o espetáculo urbano – as modas, as lojas, as construções, as novidades e as atrações. Seus meios de vida são invisíveis, ficando a sugestão de uma riqueza particular, porém sem a presença da responsabilidade familiar ou gerencial dessa riqueza.

Seus interesses são primordialmente estéticos, razão de freqüentar cafés e restaurantes onde atores, escritores e artistas, se encontram.

Entretanto, parte do espetáculo urbano lhe é oferecido pelo comportamento das classes baixas (vendedores, soldados, gente da rua). O flaneur assim é uma figura marginal e tende a ser descrito como alguém isolado daqueles a quem observa.

O flanêur, portanto, é o leitor da cidade, bem como de seus habitantes, através dos quais, pela face que apresentam, tenta decifrar os sentidos da vida urbana.

De fato, através de suas andanças, ele transforma a cidade em um espaço para ser lido, um objeto de investigação, uma floresta de signos a serem decodificados – em suma, um texto.

Ao semiotizar a cidade o flanêur, esse “botânico do asfalto”, cria uma distinção entre o observador e o observado. Mas, ao contrário de criar, desse modo, uma posição privilegiada, estabelece com o seu objeto uma relação bastante problemática, uma vez que ele não apenas observa a multidão mas também se imiscui nela.

Assim, sua leitura da cidade ocorre através de olhares fragmentários e momentâneos, não lhe sendo permitido o olhar contemplativo e eqüidistante, capaz de lhe oferecer a totalidade de seu objeto. O olhar do flanêur por isso se caracteriza por uma peculiaridade: trata-se de um olhar distraído. Pois ao passar por um lugar o flanêur captura a paisagem em um estado de distração, caracterizado por sucessivos e cambiantes pontos de vista.

Nessa distração, ou melhor, nessa “embriaguez anamnéstica” em que vagueia, não importam apenas os fenômenos que, sensorialmente lhe atingem o olhar. Nesse estado, ele também se apossa do “simples saber”, cuja transmissão se dá, sobretudo, por noticias orais.

Em The Condition of the Working Class in England, Engels ressalta a indiferença entre todos. A única convenção entre as pessoas na cidade era o acordo tácito segundo o qual cada um mantinha a sua direita na calçada, a fim de que as duas correntes de multidão que se cruzavam não se empatassem mutuamente.

Em Londres, dizia ele, ninguém atentava para o outro. Transitando pelas ruas, os habitantes da capital mostravam uma “indiferença brutal” para com o que se passava ao seu arredor, cultivando apenas os interesses pessoais .

Ao contrário do homem da multidão, do conto de Poe, o flanêur é um “ocioso”, a caminhar como uma “personalidade” que rejeita a divisão de trabalho e a industriosidade da sociedade de então.

Benjamim diz que “era de bom-tom levar tartarugas para passear pelas galerias”, como uma forma de protestar contra o ritmo imposto pelo capital. Já Poe descreve Londres como possuindo algo de bárbaro: a industrialização e suas “benesses” isolam os seus beneficiários e os aproxima da mecanização.

Segundo Benjamin, “O texto de Poe torna inteligível a verdadeira relação entre selvageria e disciplina. Seus transeuntes se comportam como se, adaptados à automatização, só conseguissem se expressar de forma automática. Seu comportamento é uma reação a choques”.

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TÓPICOS PARA ENTENDER O HOMEM DA MULTIDÃO [Sérgio Mota]

Leitura da cidade como palimpsesto (composta de camadas sucessivas de construções e escritas – codificação – espera ser descoberto e lido);

A cidade como texto literário que tem muitas interpretações (uma pluralidade de interpretações e sentidos, que, por sua vez, escondem mistérios à espera de revelação ou são indecifráveis;

Tentativa frustrada de desvelar o enigma, fazer a cidade mais transparente e mais compreensível;

Ler a cidade, portanto, é tentar torna-la legível, significa tentar analisar os significados que as cidades sugerem (essa a grande dificuldade), decifrar o mistério;

Símbolo: o flâneur, que tinha a rua como morada, espaço de deambulação e com o olhar inteligente, mas desenraizado, contemplava, através da multidão, o espetáculo cambiante do efêmero e do contingente da cidade transformada pela Revolução Industrial; observação à-toa de sensações, a imagem urbana do ócio. É um ocioso paradoxal, que transforma a ociosidade em valor;

O flâneur desenvolve em torno de si um escudo que o situa na massa urbana sem permitir que nela se envolva, seu contacto urbano é aquele do olhar, é a imagem da cidade sob a égide do olhar – fisionomista da imagem urbana;

Ler/escrever a cidade é uma estratégia de legibilidade. “ Perder-se também é caminho”. (Clarice Lispector)

Estratégias para a legibilidade: captar o momento, o instantâneo da cidade (todas as coisas têm um aspecto de novidade) – a questão impressionista

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O homem na multidão ( o conto na íntegra)

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“Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul.”

La Bruyère

"De certo livro germânico, disse-se, com propriedade, que há certos segredos que não consentem ser ditos. Homens morrem à noite em seus leitos, agarrados às mãos de confessores fantasmais, olhando-os devotamente nos olhos. Assim morrem com o desespero no coração e um aperto na garganta, ante a horripilância de mistérios que não consentem ser revelados.

De quando em quando, ai a consciência do homem assume uma carga tão densa de horror que dela só se redime na sepultura. E, destarte, a essência de todo crime permanece não revelada.

Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande janela do Café D. . . em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito: no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa a sua condição diária.

O simples respirar era-me um prazer, e por isso sentia um calmo mas inquisitivo interesse por tudo.

Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo, diverti-me durante a maior parte da tarde, ora espiando os anúncios, ora observando a promíscua companhia reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas.

Essa que era uma das artérias principais da cidade, que regurgitava de gente durante o dia todo. Até que ao aproximar-se o anoitecer a multidão engrossou, e, quando as lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam pela porta.

Naquele momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em situação similar, e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior.

De início minha observação assumiu um aspecto abstrato e generalizante. Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figuras, traje, ar, porte, semblante e expressão fisionômica.

Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas, e seus olhos moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, mas sem mostrar sinais de impa¬ciência; pois recompunham-se e continuavam, apressados, o seu caminho.

Outros, formando numerosa classe, eram irrequietos nos movimentos; tinham o rosto enrubescido e resmungavam e gesticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários em razão da própria densidade da multidão que os rodeava. Quando obstados em seu avanço, interrompiam subitamente o resmungo, mas redobravam a gesticulação e esperavam, com um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas que os haviam detido passassem adiante.

Se alguém os acotovelava, curvavam-se cheios de desculpas, como que aflitos pela confusão.

Nada mais havia de distintivo sobre essas duas classes, além do que já observei. Seu trajes pertenciam aquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida, nobres, comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas — os eupátridas e os lugares-comuns da sociedade —, homens ociosos e homens atarefados com assuntos particulares, que dirigiam negócios de sua própria responsabilidade. Eles que não excitaram muito a minha atenção.

Ali a tribo dos funcionários era das mais ostensivas, e nela discerni duas notáveis subdivisões. Havia, em primeiro lugar, os pequenos funcionários de firmas transitórias, jovens cavalheiros de roupas justas, botas de cor clara, cabelo bem emplastado e lábios arrogantes. Posta de lado certa elegância de porte, a que, à falta de melhor termo, pode-se dar o nome de “escrivanismo”, a aparência deles parecia-me exato facsímile do que, há doze ou dezoito meses, fora considerada a perfeição do bon ton.

Usavam os atavios desprezados pelas classes altas — e isso, acredito, define-os perfeitamente.

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Já a subdivisão dos funcionários categorizados de firmas respeitáveis era inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou castanhas, confortáveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos sapatos sólidos, meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça ligeiramente calva e a orelha direita afastada devido ao hábito de ali prenderem a caneta.

Observei que usavam sempre ambas as mãos para pôr ou tirar o chapéu e que traziam relógios com curtas correntes de ouro maciço, de modelo antigo. A deles era a afetação da respeitabilidade, se é que existe, verdadeiramente, afetação tão respeitável.

Havia assim muitos indivíduos de aparência ousada, característica da raça dos batedores de carteiras, que infesta todas as grandes cidades. Eu os olhava com muita curiosidade e achava difícil imaginar que pudessem ser tomados por cavalheiros, pelos cavalheiros propriamente ditos. O comprimento do punho de suas camisas, assim como o ar de excessiva franqueza que exibiam, era quanto bastava para denunciá-los de imediato.

Os jogadores — e não foram poucos os que pude discernir — eram ainda mais facilmente identificáveis. Usavam trajes dos mais variados, desde o colete de veludo, o lenço fantasia ao pescoço, a corrente de ouro e os botões enfeitados do mais desatinado e trapaceiro dos rufiões às vestes escrupulosamente desadornada dos clérigos, incapazes de provocar a mais leve das suspeitas. Não obstante, denunciava-os certa tez escura e viscosa, a opacidade dos olhos, assim como o palor e a compressão dos lábios.

Havia, ademais, dois outros traços característicos que me possibilitavam identifica-¬los: a voz estudadamente humilde e a incomum extensão do polegar, que fazia ângulo reto com os demais dedos. Muitas vezes, em companhia desses velhacos, observei outra espécie de homens, algo diferentes nos hábitos mas, não obstante, pássaros de plumagem semelhante.

Podiam ser definidos como cavalheiros que viviam à custa da própria finura. Ao que parecia, dividiam-se em dois batalhões, no tocante a rapinar o público: de um lado, os almofadinhas; de outro, os militares. Os traços distintivos do primeiro grupo eram o cabelo anelado e o sorriso aliciante; o segundo grupo caracterizava-se pelo semblante carrancudo e pela casaca de alamares.

Descendo na escala do que se chama distinção, encontrei temas para especulações mais profundas e mais sombrias. Encontrei judeus mascates, com olhos de falcão cintilando num semblante onde tudo o mais era abjeta humildade; atrevidos mendigos profissionais hostilizando mendicantes de melhor aparência, a quem somente o desespero levara a recorrer à caridade noturna; débeis e cadavéricos inválidos, sobre os quais a morte já estendera sua garra, e que se esgueiravam pela multidão, olhando, implorantes, as faces dos que passavam, como se em busca de alguma consolação ocasional, de alguma esperança perdida; mocinhas modestas voltando para seus lares taciturnos após um longo e exaustivo dia de trabalho e furtando-se, mais chorosas que indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo contato direto, não obstante, não podiam evitar; mundanas de toda sorte e de toda idade: a inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de Luciano, feita de mármore de Paros, mas cheia de imundícies em seu interior; a repugnante e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de jóias, exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina de formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera adepta das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por igualar-se, no vício, às suas colegas mais idosas; bêbados inúmeros e indescritíveis; uns, esfarrapados, cambaleando inarticulados, de rosto contundido e olhos vidrados; outros, de trajes ensebados, algo fanfarrões, de lábios grossos e sensuais, e face apopleticamente rubicunda; outros, ainda, trajando roupas que, em tempos passados, haviam sido elegantes e que, mesmo agora, mantinham escrupulosamente escovadas; homens que caminhavam com passo firme, mas cujo semblante se mostrava medonhamente pálido, cujos olhos estavam congestionados e cujos dedos trêmulos se agarravam, enquanto abriam caminho por entre a multidão, a qualquer objeto que lhes estivesse ao alcance; além desses todos, carregadores de anúncios, moços de frete, varredores, tocadores de realejo, domadores de macacos ensinados, cantores de rua, ambulantes, artesãos esfarrapa¬dos e trabalhadores exaustos, das mais variadas espécies — tudo isso cheio de bulha e desordenada vivacidade, ferindo-nos discordantemente os ouvidos e provocando-nos uma sensação dolorida nos olhos.

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Conforme a noite avançava, progredia meu interesse pela cena. Não apenas o caráter geral da multidão se alterava materialmente (seus aspectos mais gentis desapareciam com a retirada da porção mais ordeira da turba, e seus aspectos mais grosseiros emergiam com maior relevo, porquanto a hora tardia arrancava de seus antros todas as espécies de infâmias), mas a luz dos lampiões a gás, débil de início, na sua luta contra o dia agonizante, tinha por fim conquistado ascendência, pondo nas coisas um brilho trêmulo e vistoso.

Tudo era negro mas esplêndido — como aquele ébano ao qual tem sido comparado o estilo de Tertuliano. Os fantásticos efeitos de luz levaram-me ao exame das faces individuais, e, embora a rapidez com que o mundo iluminado desfilava diante da janela me proibisse lançar mais que uma olhadela furtiva a cada rosto, parecia-me, não obstante, que, no meu peculiar estado de espírito, eu podia ler freqüentemente, mesmo no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos.

Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba quando, subitamente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco anos de idade), um semblante que de imediato se impôs fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão. Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de longe. Lembro-me bem de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzsch, e não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas do Demônio. Enquanto eu tentava, durante o breve minuto em que durou esse primeiro exame, analisar o significado que ele sugeria, nasceram, de modo confuso e paradoxal, no meu espírito, as idéias de vasto poder mental, de cautela, de indigência, de avareza, de frieza, de malícia, de ardor sanguinário, de triunfo, de jovialidade, de excessivo terror, de intenso e supremo deses¬pero.

Senti-me singularmente exaltado, surpreso, fascinado. “Que extraordinária história”, disse a mim mesmo, “não estará escrita naquele peito!” Veio-me então o imperioso desejo de manter o homem sob minhas vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o sobretudo e, agarrando o chapéu e a bengala, saí para a rua e abri caminho por entre a turba em direção ao local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de vista. Ao cabo de algumas pequenas dificuldades, consegui por fim divisá-lo, aproximar-me dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe atrair a atenção.

Tinha agora uma boa oportunidade para examinar-lhe a figura. Era de pequena estatura, muito esguio de corpo e, aparentemente, muito débil. Suas roupas eram, de modo geral, sujas e esfarrapadas, mas quando ele passava, ocasionalmente, sob algum foco de luz, eu podia perceber que o linho que trajava, malgrado a sujeira, era de fina textura, e, a menos que minha visão houvesse me enganado, tive um relance através de uma fresta da roquelaure, evidentemente de segunda mão, que ele trazia abotoada de cima a baixo, de um diamante e de uma adaga.

Essas observações aguçaram minha curiosidade, e decidi-me a acompanhar o estranho até onde quer que ele fosse.

Era já noite fechada, e uma neblina úmida e espessa, que logo se agravou em chuva pesada, amortalhava a cidade. Essa mudança de clima teve um estranho efeito sobre a multidão, que logo foi presa de nova agitação e se abrigou sob um mundo de guarda-chuvas. A agitação, os encontrões e o zunzum decuplicaram. De minha parte, não dei muita atenção à chuva; uma velha febre latente em meu organismo fazia com que eu a recebesse com um prazer algo temerário. Amarrando um lenço à boca, continuei a andar. Durante meia hora o velho prosseguiu seu caminho, com dificuldade, ao longo da grande avenida; eu caminhava grudado aos seus calcanhares, com medo de perdê-lo de vista. Como nunca voltou a cabeça para trás, não se deu conta de minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma travessa que, embora repleta de gente, não estava tão congestionada quanto a avenida que abandonara. Evidenciou-se, então, uma mudança no seu procedimento. Caminhava agora mais lentamente e menos intencionalmente do que antes; com maior hesitação, dir-se-ia. Atravessou e tornou a atravessar a rua repetidas vezes, sem propósito aparente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto. A rua era longa e apertada, e ele caminhou por ela cerca de uma hora; durante esse tempo, o número de transeuntes havia gradualmente decrescido, tornando-se o que é ordinariamente visto, à noite, na Broadway, nas proximidades do Park, tão grande é a diferença entre a população de Londres e a da mais populosa das cidades americanas. Um desvio de rota levou-nos a uma praça brilhantemente iluminada e transbordante de vida. As antigas maneiras do estranho voltaram a aparecer. O queixo caiu-lhe sobre o peito, enquanto seus olhos se moviam inquietos, sob o cenho franzido, em todas as direções, espreitando os que o acossavam. Abriu caminho por entre a multidão com firmeza e perseverança. Surpreendi-me ao ver que, tendo completado o circuito da praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar. Mais atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo circuito diversas vezes; quase que deu comigo, certa vez em que se voltou com um movimento brusco. Nesse exercício gastou mais uma hora, ao fim da qual encontramos menos interrupções, por parte dos transeuntes, que da primeira vez. A chuva continuava a cair, intensa o ar tornou-se frio; os passantes se retiravam para suas casas. Com um gesto de impaciência, o estranho ingressou num beco relativamente deserto. Caminhou apressadamente, durante cerca de um quarto de milha, com uma disposição que eu jamais sonhara ver em pessoa tão idosa; grande foi a minha dificuldade em acompanhá-lo. Alguns minutos de caminhada levaram-nos a uma grande e ruidosa feira, cujas localidades pareciam bastante familiares ao estranho, e ali ele retomou suas maneiras primitivas, enquanto abria caminho de cá para lá, sem propósito definido, por entre a horda de compradores e vendedores.

Durante a hora e meia, aproximadamente, que passamos nesse local, foi-me mister muita cautela para seguir-lhe a pista sem atrair sua atenção. Felizmente, eu calçava galochas e podia movimentar-me em absoluto silêncio. Em nenhum momento ele percebeu que eu o vigiava. Entrou em loja após loja; não perguntava o preço de artigo algum nem dizia qualquer palavra, mas limitava-se a olhar todos os objetos com um olhar desolado, despido de qualquer expressão.

Eu estava profundamente intrigado com o seu modo de agir e firmemente decidido a não me separar dele antes de estar satisfeita, até certo ponto, minha curiosidade a seu respeito. Quando um relógio bateu onze sonoras badaladas e a feira começou a despovoar-se rapidamente. Um lojista, ao fechar um postigo, deu um esbarrão no velho, e, no mesmo instante, vi um estremecimento percorrer-lhe o corpo.

Ele saiu apressadamente para a rua e olhou ansioso à sua volta, por um momento; encaminhou-se depois, com incrível rapidez, através de vielas, umas cheias de gente, outras despovoadas, para a grande avenida da qual partira, a avenida onde ficava situado o Hotel D... Esta, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto. Estava ainda brilhantemente iluminada, mas a chuva caia pesadamente e havia poucas pessoas a vista. O estranho empalideceu. Deu alguns passos caprichosos pela antes populosa avenida e depois, suspirando profundamente, tomou a direção do rio. Após ter atravessado uma grande variedade de ruas tortuosas, chegou por fim diante de um dos teatros principais da cidade.

Este estava prestes a fechar, e os espectadores saíam pelas portas escancaradas. Vi o velho arfar, como se por falta de ar, e mergulhar na multidão, mas julguei perceber que a intensa agonia do seu semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe sobre o peito novamente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei que seguia agora o caminho tomado pela maioria dos espectadores, mas, de modo geral, não conseguia compreender a inconstância de suas ações.

Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando, e sua antiga inquietude e vacilação voltaram a aparecer. Durante algum tempo, acompanhou de perto um grupo de dez ou doze valentões; mas o grupo foi diminuindo aos poucos, até que ficaram apenas três dos componentes, numa ruazinha estreita, melancólica, pouco freqüentada. O estranho ali se deteve e, por um momento, pareceu imerso em reflexões; depois, com evidentes sinais de agitação, seguiu em rápidas passadas um itinerário que nos levou aos limites da cidade, para regiões muito diversas daquelas que havíamos até então atravessado.

Era o mais esquálido bairro de Londres; nele tudo exibia a marca da mais deplorável das pobrezas e do mais desesperado dos crimes. A débil luz das lâmpadas ocasionais, altos e antigos prédios, construídos de madeiras já roídas de vermes, apareciam cambaleantes e arruinados, dispostos em tantas e tão caprichosas direções, que mal se percebia um arremedo de passagem por entre eles. As pedras do pavimento jaziam espalhadas, arrancadas de seu leito original, onde agora viçava a grama, exuberante.

Um odor horrível se desprendia dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera. No entanto, conforme avançávamos, ouvimos sons de vida humana e, por fim deparamos com grandes bandos de classes mais desprezadas da população londrina vadiando de cá para lá. O ânimo do velho se acendeu de novo, como uma lâmpada bruxuleante. Uma vez mais, caminhou com passo elástico. Subitamente ao dobrarmos uma esquina, um clarão de luz feriu-nos os olhos e detivemos-nos diante de um dos enormes templos urbanos de Intemperança: um dos palácios do demônio Álcool.

O amanhecer estava próximo, mas, não obstante, uma turba de bêbados desgraçados atravancava a porta de entrada da taverna. Com um pequeno grito de alegria, o velho forçou a passagem e, uma vez dentro do salão, retomou suas maneiras habituais, vagueando, sem objetivo aparente, por entre a turba. Não fazia, porém, muito tempo que se ocupava nesse exercício quando uma agitação dos presentes em direção à porta deu a entender que o proprietário da taverna resolvera fechá-la por aquela noite.

Era algo mais intenso que desespero o sentimento que pude ler no semblante daquela criatura singular a quem eu estivera a vigiar tão pertinazmente. Todavia, ele não hesitou por muito tempo; com doida energia, retomou o caminho de volta para o coração da metrópole. Caminhava com passadas longas e rápidas, enquanto eu o seguia, cheio de espanto, mas decidido a não abandonar um escrutínio pelo qual sentia, agora, o mais intenso dos interesses. Enquanto caminhávamos, o sol nasceu, e quando alcançamos novamente a mais populosa feira da cidade, a rua do Hotel D..., esta apresentava uma aparência de alvoroço e atividade muito pouco inferior àqueles que eu presenciara na véspera. E ali, entre a confusão que crescia a cada momento, persisti na perseguição ao estranho. Mas este, como de costume, limitava-se a caminhar de cá para lá; durante o dia todo, não abandonou o turbilhão da avenida. Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se.

“Este velho”, disse comigo, por fim, “é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mercês de Deus que ‘es lässt sich nich." lesn’ ”.

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