"Flor de Sangue" de Valentim Magalhães

Antônio Valentim da Costa Magalhães (Rio de Janeiro, 1859-idem, 1903), foi uma figura central na produção literária no período da virada do século 19 para o século 20. Sua produção literária foi menor que sua atividade jornalística, mas foi importante na divulgação de novos autores e na discussão de temas importantes para a formação cultural brasileira do século 20.

Seu pequeno romance intitulado “Flor de Sangue” (www.nead.unama.br, acesso em jan/2009), foi recebido de forma muito fria pela crítica da época. Dizem que José Veríssimo qualificou o livro de Valentim como “literatura apressada”, mas precipitou-se o grande estudioso, pois o romance de Valentim Magalhães apresenta qualidades estéticas e conceituais, além de ser um belo retrato da sociedade carioca da virada do século.

O Romance trata das aventuras amorosas de Corina, dona Sinhá, esposa de um financista e empresário chamado Fernando Gomes. Frívola e mimada, dona Sinhá não hesita e armar arapucas sentimentais para o melhor amigo e hóspede de Fernando, Paulino. Este, ingênuo, cai na armadilha e é usado como objeto sexual da esposa de seu amigo e patrocinador. Diante da decepção dupla com Corina, pois ela não o ama e ele acabou por trair a confiança do seu melhor amigo, Paulino não vê outra solução para seu dilema moral senão o suicídio.

Contudo o rapaz planeja milimetricamente seu suicídio e na certeza que Corina continuaria a trair o amigo, deixa-lhe uma carta, confiada a um terceiro, onde denuncia a mulher e confessa seu crime. Mas a carta só poderia ser entregue ao Fernando se a vida amorosa de Corina fosse desmascarada. Tal aconteceu, quando Corina tinha outro amante, um tipo mau-caráter que só queria extorquir-lhe dinheiro. Uma denúncia anônima levou a traição da esposa ao conhecimento de Fernando que reagiu violentamente assassinando o rival.

O romance é dividido em duas partes. A primeira parte que vai desde achegada de Paulino até o seu suicídio é a melhor trabalhada. O ambiente é descrito com precisão e a trama toda é bem urdida. A Segunda parte, que conta a história posterior ao suicídio de Paulino é mais superficial, tendo como objetivo chegar ao destino de prostituta de Corina, passando pelos seus amantes, pela descoberta de sua vida dissoluta por parte de seu marido, pelo crime este comete e finalmente identificando-a como a “flor de sangue”.

Na prisão, Fernando recebe a carta de Paulino, carta que o leva a um profundo dissabor, o que acaba por matá-lo.

Dona Sinhá, então, entrega-se à prostituição e tem como nome de guerra “Flor de Sangue”, pois foi uma flor cuja antese se deu sobre o cadáver ensangüentado de dois homens.

Na segunda parte tem o relacionamento de Corina com o Barão de Santa Lúcia, que depois de desfrutar-lhe o corpo acaba a abandonando, não sem antes ser traído pela amante que já se relacionava com Hugo da Rosa, seu último amante e vítima da fúria de Fernando.

As personagens do romance são estabelecidas de forma bastante precisa, são personalidades distintas e com história. A vida dissoluta de Corina é uma conseqüência natural da sua criação com a frívola Chiquita Prestes, que, junto do o marido, o Conselheiro Prestes, tomou a sobrinha para criar, pois o casal não tinha filhos. A menina, linda, esmerou-se na arte de “coquete”, do Flerte e da sedução. Corina, sem dúvida é a personagem melhor trabalhada no romance.

Paulino tem sua história e psicologia bem refletidas no romance, filho de um magistrado pobre do Rio Grande do Sul (Magistrado Pobre? Sim! Magistrado pobre, coisa muito comum naquela época, veja a vida de Alphonsus de Guimaraens...), foi adotado por Fernando quando fazia o curso de medicina, que mesmo jovem já era abastado. Através de Fernando, Paulino conseguiu não só terminar o curso, mas também publicar um livro e ser financiado pelo governo para estudar em Paris. O retorno de Paulino destes estudos dispara as ações do romance.

Fernando Gomes tinha sua fortuna proveniente da especulação no mercado de ações. Trata-se de um dos favorecidos e também um dos prejudicados pelo encilhamento, nome de um processo de especulação que o incipiente mercado de ações brasileiro foi vítima, devido às políticas econômicas na época capitaneadas pelo ilustre Rui Barbosa.

De acordo com Eduardo Bueno (Brasil: uma história. 2ª. Ed. São Paulo: Ática, 2003) , o encilhamento começou com um decreto governamental que permitiu aos bancos emitir dinheiro, lastreado apenas por bônus governamentais e não por fundos de reserva. Foram lançados no mercado c. 450 mil contos, que era o dobro da liquidez presente no mercado na época. A necessidade de liquidez agravou-se com a abolição da escravatura, sendo necessário para pagamento do trabalho assalariado, representado por ex-escravos e imigrantes. Como o decreto também incentivava a criação de sociedades anônimas e liberava o crédito, esta medida desencadeou uma corrida desenfreada às bolsas de valores. Neste clima, milhares de empresas, algumas fictícias, foram criadas e a especulação atingiu níveis insustentáveis. O termo “encilhamento”, citado por Magalhães no seu romance, refere-se ao encilhamento dos cavalos antes da largada no hipódromo, momento em que os apostadores entram em atividade frenética. A bolha gerada pelo encilhamento durou apenas um ano, ao fim deste período o preço das ações despencaram, a inflação e o custo de vida dispararam, empresas e bancos faliram, houve grande onda de desemprego e a moeda brasileira se desvalorizou em relação à libra, levando o projeto industrialista de Rui Barbosa ao malogro e à sua demissão.

O romance de Valentim Magalhães é desenvolvido bem neste período, apesar do autor manter o período incógnito, ele se refere diretamente ao “encilhamento”. Fernando estava envolvido diretamente na bolha especulativa e chegou mesmo a criar uma empresa denominada “Melhoramentos da Tijuca”, onde Paulino seria o presidente.

O Suicídio do amigo veio acompanhado da falência de Fernando, que acabou mantendo-se à custa do Jogo. Logo, o autor coloca Fernando como um dos favorecidos e também como uma das vítimas do “encilhamento”, pano de fundo histórico que dá grande verossimilhança ao romance.

O apelo de Fernando ao Jogo como meio de subsistência parece um tanto fantasioso para o brasileiro do século XXI, mas parece ter sido uma real fonte de rendimento para o brasileiro da virada do século XIX para o XX. Este mesmo recurso foi usado pelo personagem Paulo criado pelo escritor Coelho Neto no romance “O Turbilhão” (Domínio Público.www.uead.unama.br, acesso em ago/2008.) e existem citações de personagens que viviam do jogo nos romances de Gonzaga Duque e Miguel Melo.

O romance de Valentim Magalhães parece também ser contemporâneo à ação do romance de Machado de Assis “Memorial de Aires”. Chama a atenção para isso a cerimônia de recepção de Paulino proveniente de Paris. Os amigos e parentes seguem para o navio em que o recém-chegado está através de uma lancha, uma travessia longa que chega até a enjoar os visitadores. A mesma cena é descrita por Machado de Assis, quando o casal de afilhados embarca para a Europa. Este costume demorou a se perder, com a remodelação do porto do Rio de Janeiro, como observaram Bilac & Bonfim, quando seus dois aventureiros chegaram ao Rio de Janeiro no livro paradidático “Através do Brasil”.

O melhor do romance de Valentim Magalhães é a descrição das personagens femininas, onde é ferino e cruel com as socialites da época. Donha Sinhá (Corina), D. Santinha e mesmo D. Chiquita, que não era “nenhum peixe estragado”, são retratadas como ninfomaníacas, muito diferente das recatadas senhoras presentes em outros romances. São mulheres, onde a beleza, o requinte das roupas, a fina educação servem apenas para satisfazer seus apetites sensuais. Elas disputam homens numa competição onde o número de amantes é a medida de valor.

A prostituição de Corina lembra também a solução encontrada pela irmã de Paulo no romance de Coelho Neto (O turbilhão), que também procurou a velha profissão para sair da vida miserável que ela partilhava com o irmão e mãe, não interessando os sentimentos religiosos da mãe, nem o tanto que esta atitude atingiria seu irmão. Violante (de Coelho Neto) e Corina (de Magalhães) são fenômenos antigos na sociedade humana, aparecem sempre quando o dinheiro é a principal medida de valor, observamos isso hoje em dia, quando a prostituição nas suas mais diversas formas, não só a prostituição típica ( a mulher ganhando dinheiro em troca de sexo), mas também o aluguel de barriga para gerar filhos para um casal que não pode gerá-los ou mesmo a mulher que se casa visando apenas a sua estabilidade financeira. Quantas Corinas e Violantes podemos encontrar atualmente na sociedade?

Ao mesmo tempo, a degradação moral e social de Corina até o duvidoso título de “Flor de Sangue”, descreve a inexorável decadência de uma sociedade baseada no lucro fácil, onde a honra e a decência familiar não existem.

Paulino é um representante da sociedade digna, regida por rígidos princípios éticos, mas que se deixa seduzir por Corina que representa a sociedade torpe, sem história, sem honra. O livro de Paulino mostra esse lado dele, o que realça sua hipocrisia. Paulino precisa morrer, pois se ele não pode permanecer na parte digna da sociedade, sua formação moral não permite que ele viva na parte podre. Paulino precisa morrer, porque ele descobriu que seu caráter está longe do que ele mesmo preconiza em seus escritos intelectuais.

Fernando é da mesma estirpe de Corina. Ele chafurda na lama com todo o seu dinheiro. Entrega-se ao prazer das amantes, da comida e da bebida, serve-se do encilhamento da forma mais selvagem possível, envolve o amigo em negociatas e não se faz de rogado ao ver no Jogo sua única opção de sobrevivência, ou seja, trabalhar jamais, isso não é digno dele. Ao lavar sua honra com o sangue de Hugo da Rosa, o amante escroque da esposa, ele o faz não por amor, e sim por imposição da sociedade frívola em que vive. O que mata Fernando, ao receber a carta do amigo, não é o fato em si, da traição de Paulino, mas o fato de que o amigo conseguiu uma solução melhor do que a dele, Paulino teve a coragem de se matar diante da sua degradação, enquanto que ele, Fernando, esperava inclusive ser inocentado pelo princípio da legítima defesa da honra, coisa que só cairia na legislação brasileira mais de meio século depois. Fernando morreu de inveja.

O romance tem dois ápices dramáticos. Primeiro o suicídio de Paulino, que foi planejado aos mínimos detalhes, para enfim, numa verdadeira apoteose de sangue, o infeliz cortar a própria jugular. O segundo ápice também é sanguinolento, com a fúria assassina de Fernando matando seu rival a tiros e a punhaladas.

No segundo clímax, existe o detalhe desnecessário do assassinato de Maurícia, a mucama de Corina, esta estava protegendo a patroa, pronta para avisá-la se Fernando chegasse, para não surpreendê-la em flagrante adultério. Fernando quebra-lhe o pescoço ao tentar calar-lhe a boca. Esta morte parece não qualquer importância para o romancista, pois na prisão Fernando acredita na absolvição por se tratar de um crime em legítima defesa da honra, mas esquece que também assassinou Maurícia, sendo este último crime hediondo para os padrões atuais. Mas para os padrões da época, que reflete talvez a opinião do escritor, este crime é de menor importância: o assassinato de uma ex-escrava, de uma pessoa de classe social muito inferior à sua, não se distingue do costume dos ladrões matarem os cães para poder roubar a casa tranquilamente. Este sentimento, condenável hoje em dia, certamente era mais corriqueiro na última década do século XIX, onde a abolição da escravatura não tinha ainda cinco anos e sabemos que naquele regime o escravo era disposto como qualquer posse do seu patrão. Acredito que este seja o pensamento de Valentim Magalhães, pois no início do Romance, ao referir-se a Maurícia, ele diz que a criada veio junto com os pertences da mulher: uma coisa.

Lido em Junho/2009