A TRAVESSIA DO PÓS-MODERNO - Luciano Zajdsznajder

[ Devo dizer que é quase impossível resumir um livro como este, pela densidade do que é demonstrado e pelo desdobramento dos fragmentos pinçados pela mente excepcional de Luciano Zadsznajder].

[ Para você Luciano (in memorian)]

A partir de seu encontro com Ludwig Wittgenstein, Luciano Zajdsznajder elege 63 temas para discorrer sobre o pós-moderno, e inicia seu livro dizendo que o enigma do presente atrai mais que o mistério do futuro e os restos e fantasmas do passado. Assim, abre o convite para que percorramos com ele, uma galeria de esculturas colocadas no chão da realidade contemporânea, este deserto inexpugnável e imprevisível.

Tentando definir pós-modernidade, começa dizendo que é pós porque vem depois, mas não se sabe se inaugura um tempo novo ou é apenas uma passagem. Pode até ser uma passagem permanente, uma migração que não chega a lugar nenhum e, sobretudo pode ser a descoberta de que a terra prometida não existe.

Para Zajdsznajder, existem inúmeras maneiras de ingressar no pós-moderno, e a mais comum é fraturar a vida, interrompendo sem razão o que se estava fazendo. No entanto, isto não significa o gosto pelo descompromisso, mas o que ele denomina de fratura dos eixos. Entendendo-se como eixos, linhas de orientação da existência. A fratura neste caso, significaria o desaparecimento dos elementos de orientação - razão, história, saber pela ciência, entre outros.

Nasce uma nova realidade onde a visão de tempo se transfigura. Na Antiguidade e Idade Média esta visão se orientava para o passado. Na Idade Moderna, para o futuro onde se localizava sua plena realização. Agora resta ao homem apenas o presente, passageiro, temporário, escorregadio.

Além disso, há o desaparecimento das fronteiras de todos os tipos e os limites ficam mais tênues, quase inexistentes. Acompanhando o movimento, as sociedades e as idéias se interpenetram. Na área do saber as disciplinas se encontram e as identidades não mais se resguardam tanto. O teórico é redefinido. O teórico serviria para o quê neste novo momento? Parece ser a pergunta mais constante e então, o prático assume as mais variadas formas. Há uma liberdade para combinar e fazer acontecer sem muita preocupação com as conseqüências.

Além de todos estes sinais há um segredo no pós-moderno que o transforma num tempo metodológico, conceitual e psicológico e isto se evidencia no pensar e agir do homem contemporâneo. Há um afastamento da fundamentalidade, pois existe uma certeza crescente de que as garantias não são possíveis e assim as justificativas não precisam ser absolutas nem profundas. Desta forma, é facultada a escolha entre uma vida mais arrumada e uma vida mais solta. Consequentemente há também um afastamento da centralidade, pois, não existe mais um centro, mas vários centros. Nenhuma voz consegue representar este centro nem ter cunho universal. Mesmo assim, o pós-moderno não é o lugar do individualismo e paradoxalmente, é o lugar do particularismo que vai começar a existir das mais variadas formas. A ciência, a tecnologia, a religião, a arte e a filosofia que sempre representaram a voz da universalidade cedem lugar a expressões particulares – arranjos, grupamentos, reordenações.

Na verdade, na visão do autor, esta estranha metáfora, de fraturar a vida, é um corte interno que se apresenta da seguinte forma:

No amor, esta fratura pode ser reconhecida quando o outro com quem pudemos estabelecer um elo for percebido como alguém que antes olhávamos como um ser único e idêntico e agora, passa a não ter nome, como se não o conhecêssemos. Este ser passaria a ser reconhecido como um processo. Algo que vive ao longo de um tempo, num movimento. Apenas isto.

No trabalho, esta fratura faz com que nunca se torne claro o vínculo do ser humano com o trabalho. Antes, esta relação acontecia por obrigação ou devoção. Agora passaria a ter uma dose de ludicidade ou ainda, de não seriedade. O senso de auto-realização começaria a se dar na desvalorização do trabalho e o trabalho passaria a ser qualquer coisa. Algo sem significado maior.

Segundo o autor, é possível ligar esta transformação a momentos de mutação da espécie. Trata-se de uma mudança cultural tão intensa que a ela talvez, seja correto aplicar a idéia de mutação. Faltam-nos, porém, marcos para considerar este tipo de acontecimento.

O pós-moderno traz consigo um existencialismo que envolve a combinação do errático e do determinado, assim os meios de comunicação e o consumo recortam e redefinem arranjos para a afirmação e abrigo. O que se observa é que há um alvoroço interior e neste alvoroço se estabelece o psiquismo contemporâneo. As escolhas tornam-se mais fáceis inclusive àquelas que conduzem à destruição. Assim, todos, sem exceção, estão à beira da loucura e do crime sem que isto traga mais ou menos intranqüilidade. Passa-se a conviver com os extremos como se isto fosse natural. A inexistência de limites faz com que existam apenas passagens, numa trajetória que contém tudo ou quase tudo.

O descrédito da ciência e da revolução, como forças propulsoras da sociedade, aponta para a quebra de dois mitos importantes. Percebe-se que nem todos os problemas do mundo podem ser reduzidos a questões científicas. E a revolução fica aturdida como transformação radical da sociedade através da qual se alteravam os quadros de distribuição do poder e riqueza. Suas práticas mostram-se infundadas. Quase todas serviram para implantar o terror, a perseguição e o despojamento dos direitos humanos. Perderam completamente o valor. No entanto, o pós-moderno pode inventar mitos, sem neles realmente acreditar.

É uma época sem princípios e pertence aos seres humanos sofisticados, isto é, aqueles que perderam a simplicidade e atingiram a complexidade. E este ser humano passa a ser um ente diante de escolhas. Tais escolhas vão acabar servindo para defini-lo, mas sempre, provisoriamente.

A idéia de bom gosto ou mau gosto é afastada. A expressão passa a adquirir a amplitude que sempre ambicionou e por isso mesmo se torna muito variada.

Cruas ou cultivadas, as emoções começam a ocupar um lugar de destaque ao longo da história da espécie, um lugar que nunca lhes havia sido concedido. Há um chamamento para o sentir como se um grande buraco precisasse ser preenchido. E pela primeira vez, o ser humano defronta-se com um treino cotidiano para encontrar o inesperado e com ele lidar mesmo sem nenhum preparo para isto.

Pensando alto, Zajdsznajder conclui que se é uma época sem princípios, não é uma época. Neste espaço sem denominação, existem algumas regras, como se tivessem sido estabelecidas provisoriamente para a realização de um jogo. É, portanto, um mundo arbitrário e como num jogo pode ser sempre mudado das mais variadas formas, sendo criado e recriado.

Nesta torrente de fragmentação, a idéia do todo está perdida para os pensadores contemporâneos. Produzem-se pensamentos que não possuem elos. Resultado de explosões afetivas onde o mundo e o eu tornaram-se cacos e seus fragmentos são apenas balbucios.

Aprofundando, Zajdsznajder acrescenta que em algum sentido o mundo povoou-se de fragmentadores e esta especificidade intraduzível de cada um é o que pode tornar obsoleta a psicanálise.

Retrocedendo, o filósofo explica que no movimento conhecido como contracultura tudo era definido pelas questões de liberação frente à repressão interna ( individual) e externa (social, política e cultural). A contracultura propunha que as utopias fossem postas em prática imediatamente através das formas de vida alternativas e maneiras diferentes de se relacionar, vestir, etc. Também deu importância fundamental a busca do êxtase, através de drogas, da adoção de práticas meditativas. Apresentou-se como movimento undeground, que vive e se realiza no subsolo no sentido real e simbólico, exatamente naquilo que era negado pelo capitalismo na civilização ocidental.

Ainda retrocedendo, explica que no movimento conhecido como Nova Era são retirados os elementos não intelectuais da contracultura e são incluídos elementos de monetização, profissionalização e realização material. A Nova Era continua a valorizar os elementos místicos e alternativos – acupuntura, homeopatia, macrobiótica, tarô, astrologia, psicoterapias esotéricas, parapsicologia. Há uma forte religiosidade, porém, longe das instituições tradicionais.

Mas o pós-moderno não é uma continuação destas duas formas de ser e pensar é antes, um total distanciamento. Recolhe delas alguns elementos ( o aspecto anárquico da contracultura e o aspecto alternativo da Nova Era) e contrapõe aos dois a quebra das ilusões.

O livro, provocante do princípio ao fim, coloca claramente que o pós-moderno é, sobretudo, uma condição, não uma ideologia ou um modo de pensar – é uma condição a que se chegou quando o mundo moderno atinge seu limite e começa a desaparecer.

No pós-moderno, segundo o escritor, há uma relação dialética entre máscara e identidade. A quebra das ilusões é tão forte que o que há a esconder é que não há nada a esconder – nem nossos vícios, taras, nossos defeitos ou promessas não cumpridas, nossa falta de palavra e especialmente, que não somos confiáveis nem a nós mesmos.

E tudo isto é vivido de uma forma neutra.

O pós-moderno é um modo de vida inacabado e seu ponto central é ser sombra.

Então, Zadsznajder pergunta:

- O que resta em meio a esta multidão de disfarces quando muitas vezes não encontramos com quem dialogar diante do espelho?

E respondendo diz que a humanidade possui hoje uma população de sombras.

Não há seres inteiros.

Ser sombra significa que nosso desaparecimento não faz qualquer diferença.

A existência desse mundo de sombras significa mais ainda, significa que a mortalidade nos atingiu por inteiro Significa que a luz ausentou-se, esta luz da centelha divina, presente na alma ou ligada a algum centro ou à totalidade do universo.

A plena consciência de que o conjunto humano possa desaparecer a qualquer momento sem deixar sinais marcantes, começa a ser sentida. A mortalidade da espécie começa a ser vivida e aceita.

[ Ao final do livro, uma lágrima rola amargamente de nossos olhos].