Professora sim, tia não - cartas a quem ousa ensinar - Paulo Freire

FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Editora Olho d’água, 1997, 84 p.

As ideias do Professor Paulo Freire (1921-1977) já são conhecidas da maioria dos educadores brasileiros há muito tempo, o que não significa que as concepções dele a respeito da educação, da escola, do ensinar-aprender, do professor e do aluno tenham sido assimiladas com a clareza e a profundidade necessárias por todos os envolvidos no processo. A distância entre suas ideias e a prática cotidiana de uma parcela considerável dos professores brasileiros é, ainda e infelizmente, enorme. Portanto, a obra Professora sim, tia não (vinda a público há mais de duas décadas) se apresenta ainda como uma espécie de conjunto importante do ideário deste pernambucano que talvez seja o que mais contribuição trouxe para a Educação brasileira.

Excetuando-se as palavras iniciais e as finais, o livro é composto basicamente por dez capítulos, chamados pelo autor de “cartas”, que podem ser compreendidas como mais um exemplo da (atu)ação deste pensador que procurou aliar a teoria acadêmica à prática docente em seu discurso e em seu cotidiano. Ao compartilhar suas ideias, experiências, angústias e esperanças, Paulo Freire, uma vez mais, o faz de tal forma que propicia ao leitor (na verdade, professor, a quem se dirige no decorrer das reflexões) a oportunidade de apreender o mundo e, na sequência, aprender sobre ele. Talvez por isso ele queira que os capítulos sejam como cartas – não as acadêmicas, oficiais, comerciais –, mas as cartas pessoais, endereçadas àqueles com quem mantemos relações estreitas de amizade, cumplicidade, afetividade.

Assim, antes mesmo da primeira carta, Paulo Freire explica o contexto em que o livro se insere, a partir do título que tem. Na visão do autor, ao permitir ser chamada de “tia”, a professora não se apresenta delicadamente como mais um membro da família do aluno, mas aceita, sim, a docilidade perversa de um discurso adrede preparado para desestimulá-la de uma luta bem ampla, para a qual está convocada, quando de sua opção pela atividade docente. O engajamento do professor numa luta pela liberdade deve ser o ponto de partida para as demais ações que pretende desenvolver em seu cotidiano. É estribado nessa premissa maior que todo o livro deve ser lido. Ao propor o afastamento do atributo de “parente” do aluno, Freire chama o professor para o campo profissional, que precisa ser exercido com competência, responsabilidade, amorosidade, mas também com um sentimento de luta em favor de transformações sociais importantes que, muitas vezes, precisarão do empenho do professor. Para tanto, às vezes, será necessária a reunião, a passeata, a paralisação. Se se mantiver no âmbito familiar, em nome do amor à família, o professor poderá julgar mais adequado submeter-se às condições desfavoráveis de trabalho e não lutar. Ao não lutar, o professor poderá estar colocando a Educação num segundo plano em sua vida, o que não condiz com o perfil do professor que se deseja profissional, consciente e cidadão.

Feitas, então, essas considerações, o autor inicia a Primeira Carta, cujo subtítulo é “Ensinar-aprender Leitura do mundo-leitura da palavra”, a partir do qual já se percebe a sua concepção de que não se pode ensinar sem haver aprendizado. Com isso, Freire não está sugerindo que, antes, se precise aprender (embora haja conhecimento a ser adquirido em cursos de formação), mas está afirmando que, no próprio ato de ensinar, também se está aprendendo. Evidentemente, essa primeira carta diz claramente ao professor que ele necessita, sim, ter capacitação para entrar em uma sala de aula, mas ele precisa, antes de tudo, ser crítico diante do conhecimento e ter a humildade necessária para rever os conceitos aprendidos, num processo permanente de reflexão sobre o que e como se ensina-aprende. O professor não pode, portanto, parar de ler e compreender o mundo em que está inserido. Vale dizer, então, que a leitura da palavra é precedida pela leitura do mundo. No movimento dialético entre o escrito e o vivido, entre o mundo referido e o mundo vivido, estaria a significativa aprendizagem, a compreensão crítica necessária à transformação da sociedade. Portanto, para que o professor possa sensibilizar o aluno para o mundo letrado (para a cultura em que a leitura e a escrita são importantes mecanismos de engajamento social), ele, professor, precisa ser um modelo de leitor crítico. Constantemente. Para sê-lo, precisa vencer obstáculos que muitas vezes estão entre ele e o texto. Diante das dificuldades previstas, deverá se armar para a leitura e para a escrita, o que fará dele também um pesquisador. Se os alunos virem no professor o gosto pela leitura e pela escrita e, a partir disso, também tomarem gosto por elas, terá a escola cumprido o seu mais importante papel.

Da mesma forma que o professor precisa vencer os percalços que os textos podem oferecer ao seu avanço, ele também precisa ter consciência do medo e saber lidar com ele. É sobre isso que o autor fala na Segunda Carta: “Não deixe que o medo do difícil paralise você”. Embora o título sugira subliteratura de autoajuda, a reflexão do autor é bastante consistente e iluminadora.

Nesta Carta, Paulo Freire faz algumas sugestões de como se pode evitar a paralisia diante do medo. Partindo do pressuposto de que, diante de um texto, o leitor sempre tem uma capacidade de resposta (e esta pode estar aquém ou além do exigido), sugere ser fundamental verificar quais são as ações que devem ser tomadas a partir dessa constatação. Assim, autodisciplinar-se, consultar dicionários, colocar em xeque determinados conceitos, não se dispersar, verificar o entendimento, ter um posicionamento crítico, científico diante do texto são as condições necessárias para que o medo possa ser dominado pelo leitor. Fazendo isso e tornando-se ator no processo de leitura, o leitor sai da condição de recebedor passivo para a de produtor de sentido. Com isso, o texto deixa de ter a supremacia que a escola tem lhe dado.

Isso é muito importante. A sociedade em que vivemos, grafocêntrica por excelência, tem considerado o texto escrito, muitas vezes, como uma “verdade inquestionável” e o seu autor o senhor absoluto das ideias veiculadas. Caberia, então, ao leitor, a condição de um recebedor passivo da realidade lida. O educador deve reverter essas condições, pondo o leitor em condições de igualdade nessa tríade.

A Terceira Carta de Paulo Freire serve para dizer ao professor que a profissão docente não pode ser exercida como se fosse a última opção na vida de uma pessoa. A Carta também objetiva chamar o professor para uma empreitada política fulcral: engajar-se na luta por trazer dignidade ao magistério brasileiro e não se pode discordar do autor quanto a este chamado. O Brasil tem padecido enormemente em razão de ter aceitado passivamente o fato de que qualquer pessoa, pelos mais diversos motivos, tem podido entrar nas salas de aula do país com a intenção de “ensinar”. Ser professor, como diz o grande pedagogo, exige responsabilidade. Por exemplo: é preciso ser responsável ao fazer uso deste texto, que está disponível na rede de computadores, dando o crédito devido ao seu autor. E, ao lado da responsabilidade, a coragem de tornar cada vez mais dignas as ações ligadas ao ensino-aprendizagem de nossas crianças. É em nome dessa dignidade do ato de ensinar-aprender que o autor convoca o professor a lutar por melhores condições de trabalho e salários menos aviltantes. O professor, portanto, precisa ser corajoso. Mas esta não é a única qualidade que ele precisa ter. São muitas. Sobre elas, Paulo Freire fala em sua Quarta Carta, da qual se trata a seguir.

São várias as qualidades de um educador progressista, segundo a ótica de Freire: a humildade (necessária para ouvir todos e aceitar sugestões), o bom senso (com o qual se refreia os ímpetos), a amorosidade (que pontua a relação com os alunos e com o ato de ensinar), a coragem (para amar e para lutar pela liberdade e pela democracia), a tolerância (que nos leva a conviver com o diferente), capacidade de decisão (que movimenta as ações e impede a inércia e a letargia), segurança (que, cientificamente, dá ao profissional uma posição específica dentro do processo) e a parcimônia verbal (que recomenda falar o necessário). Todas essas virtudes devem ser argamassadas pela ética, pela alegria de viver, pela paciência e ainda por tantas outras posturas do educador. Somente de posse dessas qualidades, segundo o autor, é possível estar em constante peleja por justiça.

Ainda que se possa objetar quanto à possibilidade de se atingir esse nível de abnegação, consciência e comprometimento, não se pode contraditar a posição de Freire. O ato de ensinar exige de fato responsabilidade e o profissional nele envolvido deve ter em mira esses atributos, se quiser cumprir com a missão que lhe cabe no horizonte das sociedades livres, democráticas e sérias.

Com o delineamento do perfil do profissional educador, chega-se à Quinta Carta, cujo subtítulo – singelo, se comparado aos outros – aponta para um dilema: primeiro dia de aula. Freire parte da ideia de que é esperado que o profissional esteja inseguro nesse contato inicial com os alunos, no entanto, é preciso ter a coragem de tomar as decisões corretas para não deixar as crianças mais perdidas do que naturalmente estarão. Talvez por isso é que o autor aconselhe o professor a ser sincero, pois a partir da sinceridade, é provável que o professor vá se sentido cada vez mais confiante.

Uma sugestão dada por Freire é muito importante: os alunos são um texto. E, portanto, precisam ser lidos. Não podemos nos esquecer de que, como um texto, são uma totalidade e estão inseridos num contexto cultural e social que é importante conhecer, sob pena de não se poder fazer a leitura que ele exige.

Da mesma forma que o autor nos falou sobre o repertório do leitor em outra Carta – como o ponto de partida para a leitura do mundo/texto –, o professor carece repertoriar-se para o processo adequado de leitura de sua turma. Ler os alunos, seus desejos, anseios, carências etc. possibilita conhecer o terreno onde o profissional pretende edificar seu trabalho. É preciso, certamente, sensibilidade para levar a termo essa leitura. Essa “pesquisa de campo”, feita pelo professor, torna-se uma ferramenta das mais importantes para o direcionamento de suas ações. Por isso, o profissional poderá se valer de registros das aulas e das situações, a partir das quais, posteriormente, ele poderá fazer uma reflexão a respeito da prática. Ao se aproximar do registro, o professor terá um distanciamento emocional e temporal importantes para refletir sobre o processo pedagógico. Nesse movimento, sem dúvida, instala-se a aprendizagem do professor a partir de sua própria ação.

Nesse contexto de “pesquisa”, os alunos são o “material” que está à disposição do professor para a sua reflexão e o seu crescimento profissional. Sobre as relações entre este e aqueles, Freire trata na Sexta Carta contida no livro. Das discussões empreendidas, gostaria de pôr duas em relevo: a relação discurso-ação e o problema da falta de autoridade do professor.

Para Paulo Freire, nada pode ser pior para a formação do educando do que este perceber distância entre o que o professor fala e o como ele age. A busca da coerência entre o que prega e o que faz deve ser uma constante na rotina do educador. Sem essa coerência, o discurso cai no vazio e as relações se deterioram. De fato, se o professor fala em ética, precisa agir eticamente; se fala em justiça, não poderá cometê-la na sua prática cotidiana com os alunos; se fala em democracia, não poderá agir despoticamente com aqueles com quem convive todos os dias e assim por diante.

Ao viver segundo o que prega, o professor precisa demonstrar que, democraticamente, as regras sociais devem ser estabelecidas por seus membros e todos precisam respeitá-las. Assim, as regras para a convivência harmoniosa e produtiva das pessoas são o norte que dará ao professor a autoridade dentro da sala de aula.

Novamente, não se pode discordar do autor. O profissional será o porta-voz de uma maioria que deseja respeito mútuo para que se possa viver democraticamente. O professor, portanto, não pode ser fraco, inseguro. Ele precisa ter a autoridade de quem sabe estar se pautando pela liberdade, pela justiça, pela ética, pela democracia. Valores que devem ser perseguidos pelo profissional consciente. Sua autoridade reside no fato de ter de manter esses valores como princípios em sua vida pessoal e cotidiana, dentro do ambiente de trabalho e, óbvia e necessariamente, nas relações dentro da sala de aula.

Chegamos, assim, à Sétima Carta. Ao se iniciar a sua leitura, fica-se com a impressão de que o autor fará um jogo de palavras a partir das preposições “a” e “com” quando aparecem após o verbo “falar”. Um pouco é isso mesmo, mas o sentido do verbo, aqui, está além do ato de apenas emitir som. Ele tem a ver com o ato político de ter voz e dar voz dentro de sala de aula. Depois de ter dissertado a respeito da relação falar-agir, o autor, agora, explana sobre o professor que, algumas vezes, precisa – em razão da autoridade que deve manter em sala de aula – falar “aos” educandos e, noutras vezes, falar “com” eles para que, juntos, possam conduzir o processo de ensino-aprendizagem. Esse posicionamento do professor é bastante acertado; não resta dúvida. O educador que aprender a ouvir o aluno terá muito mais chance de ser ouvido por ele. Erra o educador que entende ser sempre ele a dar a palavra final sobre tudo, por ser ele a voz da autoridade. A discussão conjunta é o exercício da cidadania. E a prática significa muito mais para todos do que apenas discutir abstratamente o conceito e o seu significado em sociedade.

E por falar em vida em sociedade, a Oitava Carta estabelece uma relação entre identidade cultural e educação. Ainda que o autor repise algumas ideias já anteriormente discutidas, neste momento ele procura frisar a necessidade de o educador conhecer a realidade social de seus alunos porque, conhecendo-os, terá uma concepção mais clara para a sua própria identidade. Lembra o autor que deve fazer parte da identidade deste profissional a opção política de luta por liberdade, justiça, ética, cidadania. Sem ter isso no horizonte da vida pessoal, fica difícil ser professor libertador, democrático, progressista.

O autor começa seu raciocínio a partir da concepção de que somos constituídos por uma carga genética, mas também por tudo o que apre(e)ndemos socialmente. Daí que a identidade de uma pessoa está atrelada à classe social a que pertence. Além de dizer que o educador precisa respeitar os seus alunos em sua condição social, o autor enfatiza que o professor não deve colocar-se numa posição superior às dos alunos favelados, mas também não deve sentir-se inferior aos alunos que pertencem à classe mais alta. Respeitar o aluno no seu contexto social implica, dentre outras atitudes, respeitar a sua linguagem e o seu saber. Na verdade, ter sempre em mira a validade (e a importância) do repertório cultural dos educandos. A Nona Carta trata dessa questão.

Partindo da ideia de que o professor não deve desconsiderar as condições materiais em que estão inseridos os alunos das periferias – e o saber que delas advém –, o autor chama a atenção para o processo da aquisição da leitura e da escrita. É preciso estimular os educandos quanto a essas práticas. É preciso, muitas vezes, cumprir o papel que, em tese, estaria sob incumbência das famílias. É inútil ficar repetindo o chavão de que as crianças não se interessam por ler e por escrever. E é necessário entender que os contextos de origem da maioria de nossas crianças são carentes de situações de letramento.

Concordo com a tese de que, estimulando os alunos à leitura e à prática da escrita, o educador estará elevando o seu nível de exigência em relação aos bens materiais que estão na sociedade, além de despertar nos educandos uma disposição espiritual propícia à pesquisa, à obtenção do conhecimento, à inquietude humana que possibilita o movimento de desejo e busca. É muito difícil viver a cidadania plena sem as habilidades de ler e de escrever. Para tanto, o professor precisa ensinar por meio de textos (não por meio de letras, sílabas, palavras). Se as pessoas dizem frases, essas são textos nos contextos em que se inserem. Quando estão na escola, não podem regredir ao nível de trabalhar com letras ou sílabas. Nesse contexto de leitura e escrita, é preciso trabalhar com notícias, reportagens, editoriais, canções, crônicas etc., textos em sua inteireza, para que possam dialogar com o repertório dos educandos .

Depois dessa firme mensagem, Paulo Freire arremata a série de “cartas”, falando da (in)disciplina, agora de maneira mais detida: é a Décima Carta. Mas não se trata de (in)disciplina no sentido rasteiro de “bagunçar”. A tese do autor é de que “ensinar não é transmitir conhecimento”. Por meio da leitura crítica – e disciplinada – de textos, é possível caminhar junto com os alunos na construção de um saber comum. A disciplina também está ligada ao ato de pesquisa. É o professor um pesquisador constante. Os educandos também. Se todos caminham com liberdade, refletindo sobre os textos e seus contextos de produção, estarão construindo o conhecimento, mais do que o recebendo. Trata-se do exercício pleno da cidadania.

Não há que se falar também em disciplina na falta de autoridade. O educador deve manter a disciplina para que todos tenham o direito de acesso ao conhecimento.

Todas essas ideias são retomadas pelo autor no fechamento da obra. As palavras finais condensam seu desejo de se fazer ouvir: ele quer encontrar cúmplices, companheiros, profissionais que saibam que ensinar, além de ser complexo, faz crescer e liberta o indivíduo.

Diante do mundo contemporâneo, míope e endurecido pelo capitalismo, as palavras de Freire ainda reverberam fortemente. Cabe ao educador um dos papéis mais importantes da civilização: participar, juntamente com seus alunos (sobretudo aqueles que compõem a maioria excluída) da construção de uma sociedade de seres capazes, livres, conscientes, atores, o que lhes possibilita viver como cidadãos plenos.

José Marinho do Nascimento
Enviado por José Marinho do Nascimento em 15/12/2012
Reeditado em 17/05/2019
Código do texto: T4037379
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