Guerra contra a mediocridade

Não, "O Deserto dos Tártaros" é bem mais do que uma crítica a "inutilidade do poder", como sugere a sua orelha. Trata-se, essencialmente, da terrível batalha que o ser humano trava consigo mesmo para vencer a mediocridade e assim transcender. Parece inaceitável que o tempo passe e a vida se gaste sem que nada de realmente importamente ou mesmo heróico aconteça ao homem. Nessa esperança ele se fia, mas de forma passiva: espera que esse "algo", que ele não sabe precisar, aconteça naturalmente, sem a sua ação.

Mas os anos passam, a inércia permanece e, por isso, cada vez mais a esperança se esvai. Giovanni Drogo é tenente de um forte, um inútil forte, em que todos esperam ansiosamente pelo dia em que virá a guerra, porque aí sim os anos que desperdiçaram lá, e as suas próprias vidas, poderão ser recompensados. O desejo é tamanho que os militares se acostumam a viver no forte, e temem sair de lá e perder o grande momento. E, além do mais, vão ter muitos anos ainda para passar no meio da cidade, como pessoas normais.

A cidade, aliás, nem é tão atrativa assim. Os capítulos em que Giovanni deixa o forte e volta para a cidade são pungentes, lindos, dilacerantes. Nela, ele se dá conta que o tempo passou, levando consigo todos os desejos, todas as afeições de outrora, o mundo todo passou a ser uma outra coisa, não restando nada senão estranhamento, e o desejo de voltar: voltar para a nossa boa esperança, e certos de que a cidade sempre poderá esperar. Somos tão jovens, afinal!

Mas há um momento em que as coisas envelhecem, e até mesmo os sonhos. Giovanni tem o seu, mas ele parece absurdo, e por isso sofre. Ele percebe, como um verdadeiro Ivan Ilitch, que o seu sofrimento não diz respeito às outras pessoas. Em Giovanni, há ainda uma reflexão ausente no personagem de Tolstói: não é sequer o amor que irá garantir que o seu sofrimento seja compartilhado pelos outros. Ainda que lhe devotem grande afeição e estima, Giovanni se desconsola ao perceber que a dor continuará sendo sentida e sofrida apenas dentro dele.

E no meio disso tudo, o absurdo kafkaniano, as situações ocorrendo de forma improvável, mas sempre tendo como resultado a opressão de Giovanni, preso em circustâncias das quais não tem controle, e contra as quais não parece haver nada a ser feito. Resta então se conformar com as injustiças, e tentar travar uma luta ainda mais difícil e de resultado definido, contra o tempo e contra a própria morte.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 15/01/2013
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