"Pequenas portas do Eu" de Roberto Schima

PEQUENAS PORTAS DO EU, de Roberto Schima (resenha)

(imagem do google)

Miguel Carqueija


João Scortecci Editor, São Paulo, 1987 (impressão e acabamento: Gráfica Scortecci) – primeira edição, novembro de 1987. Capa, ilustrações e revisão final: Roberto Schima.




Num simpático livrinho de capa amarela, onde mal se destaca o seu desenho de estilo tão característico (perdido em meio ao amarelo), o então muito jovem autor Roberto Schima (nascido em São Paulo em 1o de fevereiro de 1961), que logo iria obter grande prestígio na ficção científica nacional, reuniu diversos contos reveladores de um real e precoce talento, ainda que necessitando um aperfeiçoamento no português. O próprio título é um cacófato, que não deve ter passado desapercebido ao escritor, que certamente optou por mantê-lo assim mesmo; ao longo do texto, porém, encontramos falhas de redação, como no uso da crase e dos verbos. Mesmo assim o português do Schima é relativamente bom e seu texto é fluente, profundo, merecedor de atenção. Note-se que o livro foi revisado pelo próprio autor, e a permanência de vários erros revela a necessidade de um maior aprimoramento gramatical.
Curiosidade: é o único texto que eu conheço com o texto integral em itálico.



JOÃO FEIJÃO


A primeira narrativa do livro é singela e intimista, focalizando toda a vida de uma alma simples e pura, que até parece – salvo o final triste – saída de um filme de Walt Disney. É uma história do quotidiano, sem elementos de ficção científica ou fantasia. Um filho de imigrantes italianos vive em São Paulo da primeira metade do século XX, primeiro no campo, na plantação de café, mais tarde numa pequena cidade, finalmente na capital, num emprego de arquivista, depois escriturário, numa vida solitária e casta, simples e sem horizontes. Os pais morrem, os irmãos se dispersam, e o último interesse na vida do maduro João é cultivar os feijões, cujo pé inicial lhe fôra dado por uma menina de três anos...
Essa a ingenuidade da história, que termina patética, tragicômica, a mostrar como as coisas mais belas podem ser maculadas pela intolerância e pela arrogância.
A lamentar alguns erros de revisão como na página 23, onde falta a crase (“retornou à cidadezinha”) ou na página 30, onde foi posta uma crase inexistente (“aquele que não ia a festas”).



CANÇÃO NOTURNA



Este é um conto curto, ou talvez nem propriamente um conto, mas uma vinheta focalizando o emblemático desastre do Titanic. Schima tem uma veia muito poética e aborda a tragédia pelo ângulo da alienação dos mais ricos, como a “lady” que, segura num escaler e ouvindo a sua caixinha de música, pouco se importa com a multidão que se afoga ou morre de frio nas águas geladas do Atlântico Norte, Isso, embora só houvessem doze pessoas no escaler que a recolhera, existindo lugar para quarenta. E sabe-se que coisas assim aconteceram naquele naufrágio.
Ficou bem melhor que a baboseira piegas e milionária de James Cameron no cinema.



O MENINO E O COMETA


Num conto longo (26 páginas) perpassado de lirismo, Schima atinge elevações sublimes revelando surpreendente sensibilidade, fazendo lembrar a veia poética de um Ray Bradbury.
Numa linguagem quase de ficção científica, e de fugaz fantasia, um homem idoso conta a sua extraordinária experiência da infância, numa pequena cidade, o que aconteceu quando o cometa de Halley passou, em 1910. E estende a história até 1986, quando, já no fim da vida, torna a ver o visitante do espaço cósmico, e constata as diferenças entre um evento e outro.
O conto tem um lirismo que, de forma não-explícita, chega a ser cristão. É o menino solitário que, no silêncio da noite, no alto da rua e sob o céu recheado de estrelas, conversa com os astros, que lhe falam – ao ouvido da alma – das maravilhas do céu. E o menino conta como isso tudo começou:
“Desde cedo não tive um pai com quem conversar e minha mãe, apesar do carinho que me dava, passava a maior parte do tempo perdida em seus próprios pensamentos, recordando momentos que jamais voltariam ou sonhos que nunca se realizaram.
Assim criei meu próprio mundo, um mundo imaterial feito de sonhos e fantasias, feito de livros de histórias, feito do Sol, feito da Lua, feito das estrelas... “
A poesia da história se acentua com a expectativa do menino ante a iminente chegada do Carrossel de Fogo que virá buscá-lo para visitar os céus, pois “existem lugares onde as montanhas andam e cidades que, como bolhas de sabão, flutuam ao vento”. E se acentua mais com a inesperada comunhão da mãe com a fantasia do filho. E depois quando já velho, e decepcionado com a poluição que acabou com a visibilidade da maior parte das estrelas, o protagonista descobre que ainda é capaz de falar com elas.
Francamente, diante de um conto tão belo e tão cheio de boas intenções, fico até inibido de expor restrições; infelizmente devo apontar, também aqui, as falhas de revisão. Como na linha 11 da página 53, onde se lê “dirigindo-me a porta”, assim sem crase. O mesmo se pode dizer de “cantavam a distância” e “passando em frente a casa” (linhas 7 a 9 da pg. 55). Na pg. 60 um erro pior: “os contornos da colina era o mesmo” (sic).

UM PLANETA HOSTIL


Trabalho de verdadeira ficção científica, escrito com aguçada ironia que só se revela no final. É uma fábula sobre a incompatibilidade semântica entre raças por demais diferentes, onde o avanço tecnológico se revela inútil para promover o entendimento.
Ainda aqui há muitas falhas de revisão, e concentradas na página 77. O autor poderia também ter dado nomes a todos os membros da exploração, mas prefere apenas nomear as profissões da maioria deles: o antropólogo, o psicólogo, o médico e o oficial de comunicações.
Aqui existe uma falha conceitual que só se justifica pela adaptação do texto à mentalidade humana, pois não poderia haver um “antropólogo” na missão, e os nomes próprios também são adaptações.
Apesar de tudo a história funciona bem, prende atenção, e inclui o curioso jogo com a inteligência do leitor: será que ele reconhecerá as descrições, feitas sob o ponto de vista de Pigafetta?



QUANDO PAPAI NOEL MORREU


Narrativa místico-lírica, que trata dos sentimentos do filho e da esposa, diante da morte do pai e marido, ocorrida pouco antes do Natal. A presença misteriosa do pai e sua relação com a figura de Papai Noel constituem o cerne da história. O autor lida delicadamente com os sentimentos humanos, ainda que talvez não tenha muita imaginação com os nomes. Este conto é simples e despretensioso, mas bonito e escrito com muita nobreza.
É um belo conto de Natal, onde o extraordinário é mais sugerido que explicitado.



A ÁRVORE QUE QUERIA VOAR



Conto bem longo (37 páginas) que, se não fosse um certo formalismo nos diálogos, poderia ser considerado uma obra-prima. Os personagens são todos animais falantes, além de Nuvem Branca, a árvore falante. Portanto, uma fábula com elementos de ficção científica, que surge na lenda explanada pelo Tirugo, o jabuti-filósofo.
Com a delicadeza de uma sinfonia, Schima vai desenvolvendo o drama da árvore que um belo dia desperta de sua inconsciência vegetal para perceber o mundo ao seu redor e sofrer com a própria imobilidade. O casal de pardais, Gruc e Cristal, e o jabuti, são os que mais se importam com a sorte da árvore que um dia havia sido um pássaro. Uma mitologia e até uma teologia de animais e vegetais é aqui esboçada, requintando a fábula: Deus é a Grande Luz, “um ser extraordinário, sem forma, mais brilhante que o Sol, sem contudo ofuscar quem o vê (...) o criador de tudo (...) apesar de seu imenso poder, era todo bondade e pureza. (...) O mito diz que a Grande Luz está em toda parte, seja de dia ou de noite...”
É muito difícil encontrar histórias desse tipo, como “Fernão Capelo Gaivota”, de Richard Bach, e Schima se esforçou para produzir um conto de fadas moderno, cujo final é esteticamente perfeito. Ao longo da trama perpassam valores como a sabedoria (representada por Tirugo), a solidariedade, o amor, a redenção superando o sentimento de culpa e o desespero; em suma um conto repleto de mensagens morais, e que merece até ser adaptado para o desenho animado.



PERPETUADOR DE IDÉIAS, CRIADOR DE MUNDOS


Schima tentou ser autobiográfico através de uma ficção. O Alberto desse conto é um personagem inconvincente, sem profundidade, porque não é senão uma mera referência ao próprio autor, aos seus sonhos e ideais de escritor. Até o título deste livro se traveste em “As portinholas de mim”, que vem a dar no mesmo. E ali estão vários dos confessados gostos literários de Schima, como Ray Bradbury. Agora, o que não convence é que o protagonista tenha resolvido se demitir do emprego, sem nada concreto para substitui-lo, só porque pretendia se dedicar à literatura. Qualquer leitor pode considerar isso pura insensatez, e não é para menos. E o final, a esperança nascida de uma simples conversa com um cliente de idade, que ia publicar o seu segundo livro... como se essa descoberta pudesse, por si só, mostrar a Alberto a porta do sucesso... é excesso de ingenuidade.



O ETERNO SORRISO


Nesta vinheta, temos um narrador (Schima gosta de explorar a narrativa na primeira pessoa) que fala de seu choque e comiseração ao deparar casualmente, num botequim, com uma moça defeituosa, cuja visão causava repugnância. Esse conto é o que se convencionou chamar “mainstream”, ou seja, não tem nada a ver com ficção científica, fantasia, fábula ou terror. Não chega a dizer grande coisa, pois o personagem fica na dele, apenas registrando o flagrante; a narrativa, em seu conteúdo, limita-se ao choque do narrador e suas reflexões sobre a triste sina da moça. O autor poderia ter desenvolvido mais a idéia.



O MENINO E A ARRAIA


Vinheta exageradamente metafórica, onde uma arraia – no caso, uma pipa, pandorga ou papagaio - assume uma personalidade, com o seu pensamento exposto no texto. Um texto que fala também na relação do menino com a pipa, numa linguagem poética e metafórica. Este conto talvez seja excessivamente ingênuo.


O PEQUENO SER PRATEADO



Outra narrativa patética, esta também na primeira pessoa, e claramente de ficção científica. Aborda um clichê do gênero: a provável selvageria dos terrestres diante de um pouso alienígena, mesmo pacífico.
O que aí acontece é verossímil, e em poucas palavras Schima consegue sintetizar problemas que são aludidos na vida real: “Os cientistas informaram tratar-se da queda de um meteoro – disse o repórter. – Indagados sobre os boatos a respeito de uma nave prateada e um homenzinho brilhante, responderam não saber de nada e que, provavelmente, tudo não passava de ilusão de ótica ou alucinação em massa.” E depois, quando o narrador tenta falar com algumas pessoas que haviam presenciado o fenômeno, constata que ninguém queria tocar no assunto: “Havia um ar de constrangimento, de medo, como se o assunto fosse tabu.”
Isso tudo faz lembrar muita coisa que a gente leu e ouviu ao longo da vida, todo o mecanismo de descrédito que se arma contra o assunto dos OVNI’s. A violência xenófoba do ser humano também está bem exposta.


O ESTIGMA DO FEITICEIRO NEGRO, de Miguel Carqueija e Melanie Evarino, é um romance de alta fantasia sobre as aventuras de uma elfa, publicado pela Editora Ornitorrinco e agraciado com diversas resenhas favoráveis na internet.