TEU É O REINO
Autor: Abílio Estévez
Editora Globo, ano 1997
402 páginas
Romance cubano


Em algum lugar em Cuba, existe uma ilha. E nesta ilha, existem pessoas que parecem levar uma existência paralela a do mundo real. Há fantasmas e estátuas espalhadas entre ruínas de casas de pessoas que há muito se foram - algumas perderam-se na ilha e nunca mais encontraram o caminho de volta. Há o Aquém e o Além, separados por uma pequena porteira. Quem a cruzar corre o risco de ir parar em algum mundo onde o tempo e o espaço escrevem uma história totalmente diferente.

Os habitantes desta ilha podem ter premonições e fazer coisas que as pessoas do mundo do lado de cá consideram absurdas ou repugnates - mas lá, naquele universo esquecido pelo resto do mundo, tudo é permitido. Se alguém fecha os olhos por um momento, pode ser que se transforme em outra pessoa, ou que vá parar em um mundo surreal de onde poderá não mais voltar. E quem desaparece pela porteira do Aquém em direção ao Além, vira lenda imortal. 

Nesta incrível história de vida e de morte, o escritor cubano nacionalizado espanhol Abilio Estévez, tece uma trama fascinante entre personagens que são tudo, menos comuns. O livro é salpicado de momentos de pura beleza, capazes de fazer chorar os mais sensíveis, como neste trecho que selecionei, no qual Consuelo fala sobre o que significa para ela ter perdido sua casa:
"...foi nessa hora funesta que Consuelo teve consciência de que ficara sem casa. Não existe perplexidade que se possa comparar. Acontece que quando uma casa é levada pelo mar, você não perde apenas um teto onde se proteger da intempérie, da chuva, do frio, do luar, não perde apenas o lugar onde sonhos, grandezas e mesquinharias estão a salvo do olhar (severo) do outro, de quem escruta e examina para descobrir em que parte do corpo se esconde sua fraqueza, onde você guarda o que não deve ser visível, acontece que você não perde só aquilo que protege e dá calor, o lugar que permite que você seja o mais você de todos os vocês que mostra, acontece que uma casa não é só o Lugar, aquele do refúgio e do pudor, uma casa é também o armazém das suas lembranças, onde você guardou as caixas de bombons, já sem bombons, cheias de cartas e fotografias, aquela imagem da modelo de revista a quem você quis se igualar, o lugar onde compartilhou quimeras e terrores, o lugar onde lavava a roupa (que é uma forma de purificação), e onde tomava banho (que é uma forma de se igualar ao Senhor), e onde dormia (que é uma forma de se aproximar do mistério), uma casa é também o lugar de defecação (que é a forma de ir se acostumando a devolver à terra o que é da terra), e o lugar do amor (que é uma forma de cada qual experimentar o gozo da expulsão do Éden), e o lugar onde você tem a ilusão de que uma porção do Universo lhe pertence, o único em que pascal deixava de sentir terror diante dos espaços infinitos, já que é também o lugar construído à sua escala, onde você não se sente uma mísera partícula num plano infinito no tempo e no espaço, é por limites ao Universo e dizer de modo categórico Este é meu lugar, e é bom porque é meu lugar. Assim explicou Consuelo aos seus parentes a sensação de ter perdido a casa."
 
Um livro para ser lido devagar, saboreando cada trecho. Abilio Estévez escreveu-o com a alma. Cada um de seus personagens parecem representar alguma faceta dele mesmo.

Deixo um outro trecho onde ele fala sobre a morte:

 
"O que é a morte?
 
A Ilha.
 
Vocês já repararam na Ilha? Imenso cemitério sem túmulos, cemitério gigante, a Ilha.
Almas errantes vagam pela Ilha,
e quando morreram esses pobres ilhéus?
Entre os Balonda, dizem, o homem abandona a choça e a terra onde morreu sua mulher favorita, e quando volta ao lugar, é só para rezar por ela.
Morrer é entrar na segunda vida, a melhor.
Eu não quero outra vida, que me deixem nesta para sempre, aguardente, majarete e, se for possível, um disco de Nico Membiela ou Blanca Rosa Gil, outro de Esther Borja cantando Damisela Encantadora, damisela por ti yo moero. 
Não se preocupe, nesta você continuará para sempre, pois os mortos não percebem que estão mortos, daí o drama, o terrível drama dos mortos.
Isso mesmo, que me deixem tomando cerveja Hatuey, comendo linguiças El Minõ, leitão assado, abóbora e mangarito cozidos com mojo, entendam, tem coisas que não são para esta noite.
O homem é uma roupa, um trapo velho que alguém esquece pendurado num prego, e o tempo passa, e quando você vai ver, nada, poeirinha no chão que se deve varrer.
Você já se perdeu na Ilha?
Ah, perder-se na Ilha, justo nessa hora da Ilha em que ninguém sabe exatamente que horas são.
Acordar sem saber quem você é, nem onde está, nem o que vai fazer,
tirar as camadas de terra que jogaram em cima de você, levantar para nada, olhar ao seu redor sem nada ter para olhar,
não, morrer é uma festa, um baile com Maravilhas da Flórida, 
com a orquestra de Belisario López, un son, um mambo, um cha-cha-chá, um bolerinho..."


 
 
Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 26/05/2015
Reeditado em 16/06/2017
Código do texto: T5255841
Classificação de conteúdo: seguro