Resenha

QUANDO O AMOR FAZ AURORA EM PLENO OCASO

                                                    
Imagina um libertino inveterado que passou a vida inteira na concupiscência dos bordéis, ser tocado, no ocaso da vida, pela ternura de um amor platônico? Isso acontece com o protagonista dessa história fantástica ambientada na cidade de Barranquilla, Colômbia, palco de mais uma mostra do realismo mágico de Gabriel Garcia Marques.

Memória de minhas putas tristes, traduzido por Eric Nepomuceno, editado pela Record, em 2005, é uma comovente história desse personagem, um ancião celibatário que aos 90 anos escreve suas memórias, sem declinar o seu próprio nome, nem o da outra importante personagem que mudaria a sua vida. Cronista, professor de gramática castelhana, de bom gosto musical, literário e artístico, ele vivia solitário numa casa colonial onde viveram e morreram seus pais, e onde também esperava morrer.  Nunca saíra de sua pequena cidade, a não ser para Cartagena das Índias, onde fora finalista por quatro vezes nos  Jogos Florais. Assumia a sua feiura exemplar e caricatural. Esse homem que se acostumou aos prazeres lupanares nunca se deitou com mulher alguma sem lhe ter pagado, o que se tornou um costume  desde os 12 anos. Sua rotina diária era marcada por atividades docentes em colégio publico e redação do jornal local. À noite, após o fechamento da edição, saia direto para o Bairro Chinês, onde costumava dormir três vezes por semana com diferentes mulheres. Desde os vinte anos habituara-se a anotar o nome, a idade e o numero de vezes que se deitara com cada uma dessas mulheres. Aos cinquenta anos, já contabilizava 514, quando então parou de fazê-lo. Sentiu que a fragilidade do corpo “já não dava mais para tantas, e podia continuar as contas sem precisar de papel” (p.16). 

A partir daí começa a sentir o peso da idade, passando a medir o tempo de vida não por ano, mas por década. “A dos cinquenta havia sido decisiva porque tomei consciência de que quase todo mundo era mais moço do que eu. A dos sessenta foi  a mais intensa pela suspeita  de que já não me sobrava  tempo para me enganar. A dos setenta foi temível por uma certa possibilidade   de que fosse a última” (p.120).

Abro aqui um parêntese para confidenciar que ao ler Memória de minhas putas tristes pela primeira vez, já estava na faixa etária dos 60, sentindo os primeiros sintomas da velhice. À imagem do nosso cronista, fiquei confortado com a perspectiva de uma vida produtiva por muito mais tempo. Certamente olvidando a sua rotina libidinosa. Pensava mesmo no seu ativismo intelectual, escrevendo crônicas, ouvindo Bach, Chopin, Schulman, Wagner e Debussy, e relendo os preciosos clássicos da juventude. Quem sabe me conciliaria com Joyce, concluindo a leitura de Ulisses após tentativas frustradas.

Voltando ao homem solitário,  a  rotina das lascívias lupanares que lhe davam a ilusão de viver, implicava também riscos  e perigos. Não raro ocorriam cenas de violência e morte nesses ambientes, como aconteceu a um famoso banqueiro  que entrara pela porta dos fundos reservada a gente importante, longe dos olhos curiosos. Um parceiro  misterioso o matou a golpes de navalha, deixando-o despido e encharcado de sangue na cama onde foi encontrado. Na Colômbia mítica de Gabo, dominada por uma sucessão de generais, esse caso homoafetivo fora transformado em crime político perpetrado por “bandoleiros ligados ao Partido Liberal”. O corpo fora retirado do bordel e “encontrado” à margem de uma estrada. A maquiagem da versão policial foi prontamente corroborada pela imprensa alinhada com o poder. Ironizando a situação, o memorialista que foi a única testemunha da cena, juntamente com a dona do bordel, registra: “Eu salvei a minha consciência com um semblante contrito no enterro mais cínico e concorrido do século” (p.91).

O herói sem nome, aposentado de suas aventuras libidinosas há duas décadas, acorda  com uma ideia fixa no dia que completava 90 anos. Para comemorar a data, faria uma crônica  dominical que ao invés de remoer lamúrias da existência senil seria uma glorificação da velhice. Em meio a lucubrações  teve o insight de doar a si mesmo um presente que marcaria “o início de uma nova vida, e numa idade em que a maioria dos mortais já está morta” (p.9). Pega o telefone e liga para  Rosa Cabarças, dona do prostíbulo que sempre frequentou, pedindo que lhe reservasse uma adolescente virgem para passar aquela noite  com ele, como de fato aconteceu.

A pobre menina, operária de 14 anos, iria mudar completamente a vida desse ancião que, finalmente, descobre o significado do amor. Não adianto mais nada. Deixo ao leitor curioso o prazer da descoberta. Apesar de ter suscitado controvérsias, essa bela história é isenta de erotismo vulgar e, ao contrário do que possa parecer, não apologiza a pedofilia. Quem leu Morte em Veneza, de Thomas Mann, ou comoveu-se com as imagens de Luchino Visconti que transportou a narrativa para as telas de cinema, vai entender melhor o que estou dizendo.

Por último, não resisto ao lugar comum de recomendar essa obra instigante como leitura obrigatória. Principalmente aos que ainda não tiveram a ventura de descobrir que a aurora do amor pode acontecer, também, em pleno ocaso. 

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Texto publicado originalmente na Revista Reflexos de Universos, nº 88, ano 40, maio de 2016
https://agbook.com.br/book/208804--Reflexos_de_Universos