O amor e seu inferno

O conto Amor, de Clarice Lispector, é uma narrativa característica da autora, que prende o leitor na viagem interior que a protagonista tem. Esse traço de Clarice está presente em muitos de seus contos: os personagens entram constantemente em um conflito realidade versus imaginação, no qual questionam o verdadeiro sentido da existência humana. Quem está à procura de histórias doces e confortantes não vai ficar muito satisfeito com o desenrolar e o desfecho da trama, pois a sensação após a leitura desta pode chegar a ser angustiante e dolorosa, tamanha sua profundidade e peso filosófico.

O conto em questão narra a história de Ana, uma pessoa que, na juventude, sentia-se totalmente perdida com tamanha liberdade, como se não soubesse o que fazer consigo mesma. Parecia apenas não saber como utilizar seu grande tempo ocioso. Com essa situação, o sentimento de deslocamento era inevitável, não conseguindo se ajustar muito bem no mundo. Isso mudaria anos depois, quando Ana conseguiu o equilíbrio do qual precisava: o casamento. Ela sempre teve a necessidade de sentir estabilidade em sua vida, o que um lar supria plenamente. Com as obrigações cotidianas da vida de casada, sentiu-se, afinal, uma mulher. Passava o dia todo ocupada com a casa, filhos e marido. Assim, sentia-se feliz. Seu único medo era o final da tarde, quando não havia nada para fazer e ficava sozinha com seus pensamentos. Nesse horário, sentia receio de seus próprios atos.

Certo dia, quando estava voltando das compras, Ana deparou-se com uma cena que lhe pareceu estranha: um cego parado no ponto de ônibus mascando chiclete. Observando-o de dentro do bonde, quando este estava parado, sentiu-se insultada com movimento de mastigação do homem – ora sorria, ora deixava de sorrir. Com a figura do cego, a protagonista entra em um tipo de transe, no qual questiona e analisa sua vida e o mundo a sua volta. Uma cena tão banal mudara sua vida. Agora começa a sentir de novo os mesmo sentimentos de sua juventude: o de estar perdida, demasiadamente livre e julga ser capaz de sentir piedade novamente, uma coisa há muito esquecida. Seu mundo simples tornarasse complexo e toda sua rotina, cada ato planejado, caíram por terra. O homem cego, neste contexto, pode ser interpretado como uma metáfora: ele é incapaz de enxergar e mantêm-se por um mínimo equilíbrio na total escuridão. Assim são todas as pessoas, seguindo o raciocínio de Ana. São cegas, ignorando o poder da visão e não compreendendo o verdadeiro sentido da vida. Conseqüentemente, a qualquer momento podem enfrentar uma pane, como a própria protagonista.

A partir daí, o leitor acompanha Ana em seu novo mundo, no qual reinam a bondade e a piedade por tudo o que é vivo. Conceitos antigos são substituídos por novos, noção do real e do imaginário se misturam, o entendimento se mostra algo confuso. A vontade de descobrir se Ana vai sair dessa crise, voltar para seu antigo dia-a-dia prende a leitura e deixa-nos ansioso para saber se o que o cego desencadeara caberia em sua vida.

O texto de Clarice Lispector, com sua estética pessoal, é belíssimo. Ela mostra de forma mágica o belo e o feio da vida, do ser humano. Sua escrita, cheia de metáfora e simbologias, exige a atenção de quem o lê e dá a chance do conhecimento de uma literatura inusitada e com uma construção fascinante. É para ler e realmente “atravessar o amor e seu inferno”.

Gabriela Gusman
Enviado por Gabriela Gusman em 30/08/2007
Reeditado em 03/09/2007
Código do texto: T631407