Diário das minhas leituras/1

Explicações sobre o diário - Maravilhas do Conto - Conto Hispano Americano - Manuel Ugarte - Hernandéz Catá - Miguel Ángel Asútrias - Marcos Carías Reyes - Contos violentos - Amado Nervo - Emilio Serta, o Kafka do Panamá - Merimée - Coleção Mar de histórias - Turgueniev - Dostoievski - Matteo Bandello

09/08/2018

Como eu já tenho um diário para falar sobre o que me passa na cabeça em relação às grandes questões universais, resolvi fazer também um sobre as minhas leituras. De fato, eu leio bastante e muitas coisas se passam pela minha cabeça enquanto eu as leio. Depois que largo o livro, ao fim da leitura, eu esqueço muitas dessas coisas, então seria interessante que eu tivesse um lugar para registrá-las e consultá-las sempre que se fizer necessário. Atualmente, estou no meio de um ano de leituras de contos. É que eu, o sistemático por excelência, tenho feito desde 2015 “anos temáticos” em que privilegio algum gênero ou uma característica especial de livros. Comecei lendo clássicos internacionais, no ano seguinte passei aos clássicos escritos por mulheres, e no ano passado eu li clássicos nacionais. Em 2018 são contos, gênero de que tenho gostado tanto que, muito provavelmente, dedicarei também o de 2019 para ele. Contribuiu muito para isso a coleção “Maravilhas do Conto”, editada nos anos 50 e 60 e que apresenta uma incrível mostra do que se melhor produziu nesse gênero em diversos países. Leio agora o “Hispano Americano”.

09/08/2018

O livro “Maravilhas do Conto Hispano Americano” tem me saído um dos mais difíceis dessa coleção. Há um grande número de contos de que eu pouco consigo entender. O destaque, até agora, é o conto de um argentino, Manuel Ugarte, chamado “Os cavalos selvagens”. Foi logo o primeiro conto do livro e eu achei que seguiria bem, mas então vieram contos muitos difíceis. Achei interessante também “O confessor de monstros”, do Hernández Catá, um cubano de que nunca havia ouvido falar. Agora há pouco eu li o do Miguel Ángel Astúrias, “Torotumbo”. O conto é muito marcante por relatar um estupro de criança que foi seguido de morte, bem como pelo estratagema do estuprador para que não fosse descoberto (ele tinha uma loja de disfarces e colocou um “diabo” sobre a menina para simular ter sido ele o autor do crime, o que, em uma sociedade supersticiosa, acabou aceito). Bem, bem, isso é realmente chocante, mas eu não apreciei o estilo de escrita do Astúrias, de quem, aliás, eu já havia lido “O senhor presidente”, sem que tivesse melhor juízo sobre ele. Há períodos incrivelmente longos, no meio dos quais eu certamente iria morrer sufocado se fosse lê-los em voz alta, além de muitas descrições e, no geral, bem pouca clareza. Eu ainda sou do tipo que gosta de textos claros e com mais ações do que descrições. Isso foi um dos motivos que me fizeram, há poucos dias, gostar tanto do Mérimée. Mas isso merece outra anotação.

10/08/2018

Pois foi depois de fazer a nota anterior que eu descobri, no mesmo livro, um conto muito bonito chamado “Vidas quebradas”, escrito por um hondurenho de nome Marcos Carías Reyes. O conto é muito do meu agrado não apenas pelo estilo simples com que foi escrito, mas também pelo drama que encerra. Trata-se de um sujeito jovem que um dia, vendo outro homem se “engraçando” com sua mulher, mata-o, em um ato súbito e impensado, pelo que acaba preso e sem contato com a também jovem viúva. A viúva busca fazer com que soltem o seu marido, mas acaba é explorada por um advogado sem escrúpulos, perdendo todos os bens e animais de criação da sua casa para atender os seus anseios de dinheiro. O marido acaba condenado à morte, sem que a esposa saiba. Mas um dia, na casa em que ela trabalhava como criada, ela vê a movimentação do povo para o que seria um fuzilamento. Sendo alta a casa, tinha a visão de toda a praça onde o evento se deu. E então ela reconhece o marido e tem um ataque, caindo dura no chão. Muito bonito em sua sensibilidade e tragédia, características que eu valorizo bastante.

11/08/2018

Que coisa. Se há um chocante estupro infantil seguido de morte no conto do Miguel Astúrias, há outros dois contos no livro que também se destacam por terríveis gestos violentos. O primeiro deles é o conto “O Formigão”, escrito pelo mexicano Amado Nervo, e que conta com um impressionante “autocastramento”, inspirado no de Orígenes. Acho que o conto tem uma premissa muito boa, a partir das palavras de Jesus sobre ser melhor arrancar uma parte do corpo do que ser lançado com ela ao fogo eterno. E o autor do gesto era um jovem profundamente religioso que acreditava na castidade como maior virtude e que assim agiu para se defender de uma moça que o amava a ponto de querer cumulá-lo de beijos. Apesar de ter achado a ideia muito boa, não gostei tanto assim da maneira como o conto foi executado. Em todo caso, sem dúvida é daqueles contos que se tornam marcantes pelo que acontece a um dos seus personagens. Já o outro conto com um terrível gesto violento é provavelmente o melhor do livro. “Magia” foi escrito por um panamenho chamado Emilio Serta, e não se acha absolutamente nada sobre ele no Google. Mas era um Kafka do Panamá! Seu texto é extremamente kafkiano. Trata-se de um mágico que, durante as suas apresentações, começa a perceber algumas coisas estranhas. Se bota uma pomba para ser tirada de sua cartola, saem duas. Nas apresentações seguintes saem três, quatro. Sai bicho de dentro da cartola até se ele não tiver colocado nada para tirar de lá! As suas mágicas se tornam realidade e acontecem sem a necessidade de truques. Em outros números, os efeitos são igualmente surpreendentes, sempre muito mais fantásticos e indo muito além do que ele havia preparado. Certo de que alguém o havia agraciado com esses incríveis poderes, ele faz uma apresentação inteira sem se preparar, apenas confiando no que a magia faria para ele. Ele deixa embasbacado todo o público, que se admira da capacidade do mágico e não consegue atinar com seus truques, que, de resto, nem existem mais. Até o número da guilhotina. Até o número em que uma mulher da plateia é submetida a uma guilhotina e é decapitada. A cabeça rola e a plateia, em grande tensão, aguarda o momento em que a mulher será ressuscitada. E, no entanto, agora o mágico não consegue fazer nada. Ele não consegue colocar a cabeça da mulher de volta e nem fazê-la voltar à vida. Que conto, que conto! Além de tudo, impressiona pela linguagem concisa e muito precisa.

12/08/2018

Prometi falar do Mérimée. Eu o descobri na antologia “Maravilhas do Conto Francês”, do qual participa com o cruel, crudelíssimo conto “Mateo Falcone”. Além do enredo em si, chamou-me a atenção um certo tom “seco” na narrativa, que também não se perdia em descrições desnecessárias – bem ao meu gosto, portanto. Foi um dos contos de que mais gostei dessa antologia e então achei que poderia ler um livro só dele. E o fiz com “Histórias imparciais”, em uma edição velhíssima da Cultrix. Ora, encontrei contos muito bons também nessa edição. “A Vênus de Ille”, história de uma perigosa estátua, é um verdadeiro achado. Muito bem contado, muito bem conduzido e o texto bastante enxuto e ágil. Outro conto que me agradou bastante foi “Tamango”. Separei dois momentos de deliciosa ironia neste conto, quando o autor fala de escravos em um navio negreiro: “... os escravos foram entregues aos marinheiros franceses, que se apressaram em substituir os forcados de madeira por golilhas e algemas de ferro; o que bem evidencia a superioridade da civilização europeia” e "Concederam-lhe a liberdade, isto é, fizeram-no trabalhar para o governo". São frases sutis que parecem ir na contramão da “imparcialidade” que se atribui às histórias, embora elas realmente estejam bem escondidas no texto. Mas parece que o texto mais famoso do autor é “Carmen”, não tanto pelo texto em si, mas pela ópera que se originou da história. Eu gostei da narrativa da história, mas ela não está entre as minhas preferidas. Há quem faça paralelos com a Capitu. Parece que o Machado gostava do Mérimée, o que não me admira: o cara é muito bom mesmo. Embora mais previsível, eu gostei também de “O quarto azul”, sobre um casal em um hotel e um suposto crime que teria ocorrido no quarto ao lado. Esse conto termina bem, ao contrário de outros que terminam de uma maneira trágica. E vários contos flertam com o fantástico ou o misterioso. Enfim, gostei muito de ler e de conhecer. Mérimée é muito agradável de se ler. Na introdução do livro, Paulo Rónai o compara até a Maupassant, que veio depois. E, como se não bastasse, parece que devemos a ele que o sucesso que os russos passaram a fazer na Europa, pois foi quem primeiro traduziu os escritores vindos de lá. Ah sim, é preciso dizer que o homem tinha uma bagagem cultural invejável também, e que isso transparece em vários contos. Gostava muito de aprender línguas e estudar sobre elas e isso se observa em boa parte dos contos. Gostava especialmente da cultura espanhola e entendia de cultura romana. É um escritor que merece ser muito mais conhecido entre nós, ainda que a sua produção não tenha sido tão vasta assim.

13/08/2018

Paralelamente à coleção “Maravilhas do conto”, dos anos 50 e 60, eu comecei a ler também “Mar de histórias”, dos anos 70. São 10 volumes que pegam todas as épocas da nossa literatura moderna. Para começar, eu peguei o volume 3, que é do Romantismo, achando que os outros, mais antigos, não iriam me agradar tanto. Mas durante a leitura, que me foi muito agradável, eu tomei o propósito de ler todos os livros da coleção, e já agora estou lendo o volume 2. O conto é realmente um gênero fantástico, merece ser tão apreciado quanto o romance, e eu tenho uma grande ânsia de conhecer o máximo possível. Em relação ao volume 3, um dos destaques para mim foi o sensível conto “Mumu”, de Turgueniev. Gostei tanto dele que fiquei com vontade de pegar emprestado um livro de contos só dele, o “Memórias de um caçador”, mas não tem na biblioteca aqui de Curitiba. Talvez um dia eu compre. O Mérimée também está com o brilhante “A Vênis de Ille”. Quem me surpreendeu foi o Dostoievski, já que ele não é tão famoso assim pelos seus contos, mas “Uma árvore de Natal e um casamento” é um conto forte e ousado que trata do assédio de um adulto a uma criança. Também faz parte desse volume o divertido “Horácio Sparkins”, do Dickens, que eu já conhecia do “Maravilhas do conto inglês”. Há ainda a criatividade de E.T.A. Hoffmann em “Haimatocare”, as tragédias de Stendhal em “O cofre e o fantasma” e os bons contos dos russos Puchkin (“O tiro”) e Gogol (“Diário de um louco”). Deram dois contos ao Poe, mas eu achei que não foram as melhores escolhas (“O homem da multidão” e “A carta furtada”). Alguns dos contos são muito curiosos, como o do desconhecido James Morier (“A cabeça cozida”), o do não muito conhecido Gérard de Nerval (“A mão encantada”) e o do famoso-quem Pedro Antonio de Alarcón (“A buena-dicha”). O do Balzac (“Estudo de mulher”) penso não ter sido o mais recomendado para essa antologia. Tem um do Hawthorne, “Davi Swan”, que eu já havia lido. Tive alguma dificuldade com “A sombra”, conto do Hans Cristian Andersen, e tive todas as dificuldades do mundo com o conto “A dama Pé-de-Cabra”, escrito pelo português Alexandre Herculano. Depois um começo razoável, o conto se tornou de tão insuportável para mim que acabei desistindo de lê-lo, coisa que não costumo fazer. Mas, no geral, o livro é bem agradável.

14/08/2018

No volume 2 de “Mar de Histórias” há um conto bem legal do Matteo Bandello (“A admirável peça pregada por uma fidalga a dois barões do reino da Hungria”). Bandello é também herdeiro do Boccaccio, o que fez com que o conto tenha sido escrito no mesmo estilo. A tradição do conto a la Boccaccio se estendeu por muito tempo não só na Itália, mas em outros países da Europa. O que destaco no conto do Bandello é que, ao contrário de vários outros da época, alguns deles publicados em “Maravilhas do conto italiano”, a mulher sai por cima. Isto é, geralmente, esses contos deixam uma péssima impressão das mulheres em geral, mas neste conto quem se dá bem é a mulher, com provas de honradez e fidelidade.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 14/08/2018
Reeditado em 14/08/2018
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