Diário das minhas leituras/5

10/09/2018 – DOSTOIEVSKI

Há cinco anos eu lia o incrível “Memórias do subsolo”, do Dostoievski, e me identificava terrivelmente com o personagem da história. Deixei, à época, as seguintes impressões: “Impressiona-me como Dostoievski adentrou na mente de um sociofóbico para criar o narrador das “Memórias do Subsolo”. O personagem, mergulhado em seu próprio excesso de consciência, vê-se como vítima de uma trama fatal em que suas dúvidas e emoções merecem o desprezo dos “homens de ação”, postados ao seu redor como juízes e ditadores, rindo dele às gargalhadas. Em um permanente estado de desconfiança, julga seus companheiros superiores e é paralisado pelo seu medo de parecer ridículo. Nutre por eles um profundo desprezo, ao mesmo tempo em que daria tudo para se parecer com eles. Os outros são “todos” e ele está sozinho. Tem plena consciência do absurdo de seus medos. Considera-se um rato e reconhece que ninguém o obriga a pensar assim. Nem por isso deixa de sentir extremamente ofendido por coisas mínimas. Tenta se vingar, mas em pouco tempo o insulto deixa de lhe parecer insulto, assumindo ele próprio a culpa por tudo o que aconteceu, não restando então outra coisa a fazer senão socar a parede com a maior força possível. É quando ele some miseravelmente em seu buraco, o seu subterrâneo, onde voltará a lembrar de todos os insultos, evocará todas as minúcias, e se atormentará com a sua própria imaginação. Como bom sociofóbico, ele tenta se antecipar a todas as probabilidades de um acontecimento e, não podendo descobrir o que fazer ou como reagir, seu coração começa a saltar e ele sente vontade de sair correndo. É singular o embaraço que sente quando recebe a visita de Lisa, pois ela representa uma invasão ao seu subterrâneo, ao único lugar em que se sente efetivamente seguro. Seus medos o conduzem ao patético, quando então revela, em meio às lágrimas, toda a opressão que sente: “Não me deixam... não posso ser bom”. Sujeitos assim não habitavam apenas a Rússia do século XIX: eles existem hoje, em número cada vez maior, não sabendo como se inserir em um mundo cada vez mais fragmentado e exigente. Acuados, também levam uma vida amarga no subsolo”.

12/09/2018 – JOHN CHEEVER

Pois não é que o livro dos 28 Contos do Cheever deu uma virada do meio para frente, sobretudo no terço final? Isto é, às histórias de problemas familiares e conjugais de famílias americanas bem estabelecidas, que se repetiram a ponto de me cansar na primeira parte, foi acrescentado um certo experimentalismo. De fato, Cheever “brinca” mais na última parte do livro, vez ou outra parece flertar com um Borges, mas sem a mesma originalidade, um Saroyan, mas sem a mesma verve. Se não fosse absurdo, diria que flerta até com o nosso Campos de Carvalho. Mas a mim não causou o mesmo prazer estético que esses três escritores. Seja como for, é uma variante a mais dos seus contos, e acho que poderia ser interessante se esses contos experimentais estivessem melhor distribuídos ao longo do livro, e não concentrados no fim. Outra palavra que o Cheever gosta muito: “bordo”, que se fala “bôrdo”, árvore da família das aceráceas.

14/09/2018 – CONTO REGIONAL BRASILEIRO

Agora estou lendo o “Maravilhas do Conto Brasileiro”. Boa parte dos textos entraria em uma coletânea chamada “Maravilhas do Conto Regional Brasileiro”. E eu tenho muitas dificuldades com esses textos. Não é engraçado que, com frequência, os textos que valorizam a linguagem popular estejam entre os mais difíceis de se ler? Há outros que, ao contrário, se esforçam por tornar a linguagem de seus escritos regionais o mais árido possível, inviabilizando qualquer leitura, passado um século. A verdade é que eu também não tenho o repertório sertanejo que me seria útil para melhor sorver esses contos. Se eu parar para procurar no dicionário cada palavra que não entendo o significado nesses contos, não estarei mais lendo o conto, mas o próprio dicionário, tantas são as palavras que me são estranhas. Sou um homem urbano, infelizmente. E há alguns contos urbanos nessa antologia, felizmente. Mas reconheço que um livro que se proponha a ser expressão do conto brasileiro tem que dar muito espaço ao conto regional. Quando penso em um José Lins do Rego e o seu “Fogo Morto”, um dos melhores romances brasileiros que li, acho que não tem a ver tanto com o tema ou com o conteúdo, mas, sobretudo, com a linguagem.

15/09/2018 – LIMA BARRETO

Ontem a leitura de um conto terminou no exato instante em que o ônibus abria a porta para eu descer. Era “A nova Califórnia”, do Lima Barreto. Talvez eu já tivesse lido esse conto há uns 15 anos, mas não me lembrava de que fosse tão divertido e tão bem escrito. É a história da cidade que começa a acreditar que é possível fazer ouro dos ossos dos mortos. Só agora soube que o conto serviu de inspiração para a novela “Fera Ferida”. Realmente um achado que recompensou as leituras penosas dos contos regionais.

15/09/2018 – JOÃO DO RIO

Não esperava muito do conto do João do Rio, pois, apesar de saber da importância que ele teve para a evolução da crônica, eu nunca consegui avançar na leitura de “A alma encantadora das ruas”. Mas tive uma grata surpresa com o conto “O fim de Arsênio Goddard”. Afora alguma dificuldade para se situar no início da história, a narrativa do prisioneiro que sofre “greve de silêncio” dos outros é muito prazerosa. Vai pra lista dos 100 melhores contos lidos no ano, como também o do Lima Barreto – mas vai atrás deste.

16/09/2018 – GEORG ELIOT

“Middlermarch” foi um livro cuja história não me marcou especialmente, mas a leitura rendeu a colheita de frases como essa: “Esperar por sabedoria e consciência nos representantes do povo – que disparate!”.

17/09/2018 – MONTEIRO LOBATO

Não tenho condições de avaliar o pensamento de Monteiro Lobato, pois seria preciso conhecer mais a sua obra (mas gostei de quase tudo o que li), mas parece-me que pelo menos no conto “Negrinha” não se pode acusá-lo de racista. Ao contrário, o conto é um vigoroso manifesto contra a discriminação racial. Só uma reduzidíssima capacidade de interpretação deixaria de perceber a ironia contra a velha senhora, assim como o posicionamento de Lobato ao lado da pobre menina. É um conto terno, mas antes é crítico.

19/09/2018 – MARAVILHAS DO CONTO BRASILEIRO

Concluída a leitura da edição brasileira da coleção “Maravilha do Conto”, tenho que melhores contos do livro são aqueles de que já falei: Lima Barreto (“A nova Atlântida”), João do Rio (“O fim de Arsênio Goddard”) e Monteiro Lobato (“Negrinha”). Mas também lá está, evidentemente, o velho Machado, com o seu “A causa secreta”, que é bom, naturalmente, mas não está entre os meus favoritos do homem. Um conto que eu também gostei foi “Um ingrato”, do Artur Azevedo, conto simples e direto, mas bem escrito e com uma mensagem crítica embutida. O do Aluísio, “O madeireiro”, eu não gostei tanto. Mas o problema que eu tive com o livro foram realmente os contos regionais, dos quais pouca coisa consegui apreender. Parece que o Afonso Arinos é bastante célebre no gênero, mas “Assombramento” foi um conto difícil de se ler. Com J. Simões Lopes Neto a coisa foi um pouco melhor. Dos muitos contos regionais, acho que o que mais gostei foi “Romão da Januária”, de Veiga Miranda, apesar de certos recursos não originais. Dos contos “urbanos”, eu gostaria de destacar também o conto de Medeiros e Albuquerque, chamado “As calças do Raposo”, um conto elogiado pelo próprio Machado de Assis. O Humberto de Campos também aparece com um bom conto, “Morfina”. O conto do Graciliano, “Paulo”, é dos bons, como tudo o mais que ele escreveu, mas seu fim é abrupto. O João Alphonsus também é um nome a se citar, com o dramático e bonito “Foguetes ao longe”. Foi uma leitura interessante, como tem sido a leitura de todos os livros da coleção, e do gênero conto de maneira geral. Posso não gostar de tudo, mas estou aprendendo muito.

20/09/2018 – TCHÉKHOV

Observação que fiz sobre o livro “O assassinato e outras histórias”, do Tchékhov, lido há alguns meses: “Eu gosto do Tchékhov, mas prefiro os contos mais curtos. Com exceção do conto-título (que é o que de mais existencialista eu li do autor), e talvez de “Iônitch”, os outros contos não foram muito do meu agrado e não me causaram o mesmo impacto que alguns dos seus contos mais curtos. O último conto do livro, “No fundo do barranco”, eu li arrastado e cheguei a cogitar abandonar a leitura”.

20/09/2018 – MARAVILHAS DO CONTO NORTE-AMERICANO – JACK LONDON

E essas foram as breves impressões que registrei sobre a antologia “Maravilhas do Conto Norte Americano”: “Uma seleção que reúne grande parte dos maiores nomes da literatura norte-americana, já que foi, sobretudo, neste país que floresceu a "short history" e todo mundo escrevia contos. O meu favorito é o arrebatador conto "O inesperado", do Jack London. Mas destaco também "Gabbo, o Grande", de Ben Hecht, "A Fortuna do Campo Trovejante", de Bret Hart, "O romance da virgem esquimó", de Mark Twain, "Que pena!", de Dorothy Parker, "O espectro do noivo", de Washington Irving. Tem ainda Hemingway, Faulkner, Fitzgerald, O. Henry, Poe, Hawthorne, etc”.

22/09/2018 – DICKENS

Sobre uma seleção de contos de Charles Dickens: “Nos primeiros contos, eu pude entender melhor uma associação que às vezes é feita entre Machado e Dickens. Há um nítido parentesco de humor entre os dois, embora Machado leve a ironia muito mais além. Mas, sobretudo nos primeiros contos, há também momentos de deliciosa ironia em Dickens. Ambos também se destacam pela linguagem sóbria e elegante. A diferença é que Dickens é muito mais descritivo, ao passo que Machado é bem mais psicológico. E Dickens também dá um papel muito maior ao aspecto moral dos seus contos, notadamente no que se refere às questões sociais. Apenas decepcionei-me com o conto "Os carrilhões", que, como foi feito logo após o épico "Um conto de Natal", pareceu-me uma tentativa malsucedida de repetir os mesmos argumentos. Sem dúvida era um dos "temas-chave" de Dickens, a ponto de tê-lo usado ainda pelo menos outra vez, em "A história dos duendes que raptaram o coveiro". Mas, desses todos, "Os carrilhões", tirando alguns momentos interessantes, é o mais chato de todos. Os contos que mais gostei do livro vieram já perto do fim, quando eu mesmo não esperava mais nada do livro. "A história do parente pobre" e "A história do limpador de botas" são contos comoventes e ternos de que guardarei lembrança”.

23/09/2018 – E. T. A. HOFFMANN

Lendo tantos contos que estou lendo, percebo como o alemão E. T. A. Hoffmann foi importante para o gênero. Sua influência se estende por uma infinidade de escritores de diferentes países, incluindo o nosso Brasil, com os contos do Álvares de Azevedo. E, no entanto, não se trata de um escritor conhecido por aqui. Sabe-se, no máximo, que escreveu o conto “Homem de areia”, mas isso é pouco, quase nada, perto daquilo que ele representa para o conto. Eu mesmo nunca havia atinado com o seu nome até este ano, quando me dispus a mergulhar no gênero das histórias curtas. Aparentemente, é bastante reduzida a sua publicação em português também. A que se deve tamanho desconhecimento? Não digo nem que seja um dos meus autores favoritos, mas sua importância está muito além do que ele recebe no Brasil.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 23/09/2018
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