Diário das minhas leituras/10

11/11/2018 – MARCELO RUBENS PAIVA

Um comentário mal humorado que registrei quando li “As verdades que ela não diz”, do Marcelo Rubens Paiva: “Se o amor é isso que se lê nesses contos, então não há nada mais repulsivo”.

12/11/2018 – RUDOLFS BLAUMANIS

E de repente você descobre que na Letônia também se faz literatura da maior qualidade. O conto “Na sombra da morte” deve ser a única coisa publicada no Brasil do letão Rudolfs Blaumanis. Mas é um conto excepcional. Trata-se de uma tragédia, um grupo de pescadores daquela gelada região que, de repente, se vê à deriva em um bloco de gelo. Acompanhamos as agruras dos ocupantes desse bloco de gelo flutuante enquanto a morte parece cada vez mais iminente. É um texto muito bem articulado que deixa a leitura bastante empolgante. As situações vividas pelos personagens dão margem a algumas reflexões.

12/11/2018 – RILKE

Não sabia da relação de Rilke com Tolstoi. Sua obra em prosa “As histórias do bom Deus” foi feita após a sua viagem à Rússia e revelaria influência do pensamento tolstoiano, o que se observa mesmo a partir de certos títulos de seus contos, como “Por que Deus quer que haja pobres?”. Como sou um admirador e, até certo ponto, um entusiasta de algumas das ideias filosóficas de Tolstoi, pretendo ler esse livro.

13/11/2018 – NELSON RODRIGUES

Nelson Rodrigues não merece ser citado apenas como grande dramaturgo ou contista, e sequer como cronista esportivo. Está na hora de ser valorizado como "cronista cronista" mesmo. No gênero da crônica, depois de Machado de Assis, existe Rubem Braga e Nelson Rodrigues. O resto é complemento. O que vi no livro “Brasil em campo”, por exemplo, está muito longe de se limitar ao futebol. É o próprio Brasil, afinal. Dá pra contar nos dedos os escritores que dão tamanha fluência ao texto. E ali estão todas as frases e os exageros que transformaram Nelson num lúcido humorista, "com a coragem de fatiar em suculentos bifes as mais corpulentas vacas sagradas nacionais", como diz a introdução do livro.

13/11/2018 – AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA E PAULO RÓNAI

Tenho muito que agradecer aos dois pelo que realizaram com a antologia “Mar de histórias”, mas também carrego algumas broncas a respeito do trabalho da dupla. No volume 7 da coleção, eles publicaram um conto do Mark Twain com quase 60 páginas, chamado por eles mesmos na introdução da obra (aliás, uma introdução igualmente enorme e desigual) de “novela”, coisa que, aqui no Brasil, é distinta de um conto. Não teria nenhum problema em ler contos de 60 páginas que podem ser entendidos como novela, mas a minha bronca é que foi usado justamente o argumento do excessivo número de páginas para deixar de fora dessa antologia escritores como o alemão Theodor Storm. Ora, não conheço toda a produção dele, que deve ter textos beirando as 50 páginas, mas não é o caso de “Immensee”, o belíssimo conto, dos que mais me tocaram neste ano, o qual o leitor brasileiro perdeu a oportunidade de ler nessa antologia. Já no volume 6, um conto muito grande de Kipling havia me feito pensar na injustiça de deixar Storm de fora. Outra bronca que estou tendo com a dupla é a frequência de certos juízos de valores negativos que eles fazem na introdução dos contos, geralmente em questões amplamente subjetivas, e que desvalorizaram o conto que se está para ler. Algumas escolhas na seleção de contos também não me agradaram, mas eu farei, ao terminar de ler o Volume 7, alguns elogios aos dois. A leitura, de toda forma, compensa.

13/11/2018 – MARK TWAIN

A propósito, que narrativa deliciosa é “O homem que corrompeu Hadleyburg”! Nosso regozijo ao ler essa sátira é semelhante ao do povo inocente da cidade que mal podia se conter de tanto prazer ao perceber a farsa de que foram vítimas os homens mais poderosos do lugar. Uma história muito marcante e com um fundo moral dos mais relevantes. Mas não é bem um conto, como Aurélio e Paulo mesmo confessaram.

14/11/2018 – LITERATURA ESCANDINAVA

O grande mérito da antologia de contos organizada por Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Rónai é a inclusão de dezenas de contos de escritores e de literaturas que nunca haviam sido publicados no Brasil ou que pouco mereceram destaque por aqui. Isso é válido, sobretudo, para a literatura escandinava. Ora, são muitos os escritores escandinavos que aparecem nessa coleção, o que, por si só, já evidencia que se trata de uma literatura de qualidade. No entanto, até hoje nunca foi publicado no Brasil algo como uma antologia chamada “Maravilhas do Conto Escandinavo”. E como faz falta! Existem, sim, alguns livros que tratam de lendas e histórias populares, inclusive mitológicas, de países da Escandinávia, mas não parece haver um único livro em português que trace um panorama do conto escandinavo, dos primórdios à modernidade. Uma coletânea como essa contaria com contos de escritores dinamarqueses como Hans Christian Andersen, Jens Peter Jacobsen, Hermann Bang, Holger Drachmann, Johannes Vilhelm Jensen e Karen Blixen, de suecos como Selma Lagerlöf, August Strindberg, Per Hallström e Hjalmar Söderberg, de noruegueses como Bjørnstjerne Bjørnson e Sigrid Undset, de finlandeses como Frans Eemil Sillanpää, e sabe Deus quem mais escreveu contos naquelas terras geladas – esses são apenas os que eu já li ou que estou prestes a ler e que sei que fizeram contos, muitos deles bastante saborosos. Espero que um dia realmente saia uma coletânea em português nesses moldes. Essa literatura faz por merecer.

14/11/2018 – MAR DE HISTÓRIAS (VOLUME 7)

Essa é uma das edições mais legais da coleção (ainda não li as três últimas). E olha que, olhando pelos nomes dos escritores, a gente não daria muita coisa: apenas uns dois ou três nomes conhecidos. Mas é que essa coleção é especialmente pródiga em levantar tesouros de escritores e literaturas obscuras. O conto que mais gostei do livro, por exemplo, é aquele de que já falei, de Rudolfs Blaumanis, um escritor vindo da Letônia. O segundo conto de que mais gostei é do polonês Boleslaw Prus, também ele um dos ilustres desconhecidos em terras tupiniquins. Parece que o homem era comparado ao Dickens e, de fato, é possível perceber algum parentesco no belíssimo conto “O realejo”. Há muito que se falar também nos escritores escandinavos. Per Hällstrom participa com o sensível “Amor”. Holger Drachmann com o curioso “A história de um lava-praias”. Hjalmar Söderberg com “A capa de peles”, conto que deixa a gente com uma sensação de impotência. Destaque também para o húngaro Kálmán Mikszáth, com o seu divertido e original “A mosca verde e o esquilo amarelo”. Como se vê, entre todos esses que citei, não há um único escritor famoso no Brasil. Entre os conhecidos, o livro conta com o impagável “O homem que corrompeu Hadleyburg”, do Mark Twain, que é um texto excepcional e que contribui para que o resultado geral da leitura desse volume de contos seja agradável, mas ele mesmo não chega a ser um conto. Há Rilke com “O mendigo e a donzela orgulhosa”, que me deixou com vontade de ler mais contos dele. Há também H. G. Wells com “A maçã”. Mas existem também, como em todos os volumes da coleção, alguns contos de escritores também desconhecidos que não nos chamam a atenção de alguma maneira e passamos por eles com certa indiferença. Tem também um conto brasileiro, o Afonso Arinos com “Assombramento”, que eu já havia lido em outra oportunidade e não importa o quanto louvem o estilo desse conto, ele continua me parecendo difícil de ler. Mesmo assim, o saldo desse volume 7 é mais positivo que em vários outros.

15/11/2018 – ARNALDO JABOR

Mais uma observação mal humorada que fiz já há alguns anos ao ler um livro de crônicas do Arnaldo Jabor: “As crônicas do Arnaldo Jabor são como seriam as crônicas do Nelson Rodrigues se tirassem o humor e a criatividade delas e aumentassem a grosseria”.

15/11/2018 – A PRINCESA QUE AMAVA INSETOS

Desse conto clássico do folclore japonês, que é muito bonito e mesmo ousado, se pensarmos que faz uma espécie de defesa da individualidade, mesmo contrariando tradições e interesses da sociedade, eu registro a seguinte fala, dita pela própria princesa: “Se olhasses um pouco mais além da superfície das coisas, não te importarias tanto com o que os outros pensassem a teu respeito. O mundo em que vivemos não tem realidade, é uma miragem, um sonho. Quer alguém se escandalize com os nossos atos, ou, porque os ache valiosos, se agrade deles, pode a sua opinião fazer-nos qualquer diferença no fim de contas? Em breve, tanto eles como nós não mais nos sentiremos existir”.

15/11/2018 - RYUNOSUKE AKUTAGAWA

De outro conto japonês, esse moderno, feito pelo escritor acima citado, transcrevo a fala de um homem que confessava, em juízo, um assassinato por motivos passionais: "Como? Matar um homem não é tão grave com pensam os senhores. Quando se toma a mulher de outrem, este deve, de qualquer maneira, ser eliminado. Somente que, para matar, faço uso da espada que trago sempre comigo. Os senhores não usam espada para isso: matam valendo-se do poder que possuem; matam com o seu dinheiro. Às vezes, matam apenas com palavras, pretextando favores, enganando, ludibriando. Não corre sangue, é verdade. Os homens continuam a viver. Nem por isso os senhores deixam de prosseguir na faina. Avaliando a extensão de nossos respectivos pecados, difícil dizer qual de nós é o maior criminoso".

17/11/2018 – MARAVILHAS DO CONTO ITALIANO

Registro aqui também, para que não se perca, as impressões que tive acerca do “Maravilhas do Conto Italiano”: “Li este livro pouco tempo depois de ser as Maravilhas do Conto Alemão. Se os contistas alemães parecem seguir os passos do Goethe, os italianos fazem o mesmo com Boccaccio. O resultado é que temos uma porção de escritores fazendo graça com situações cotidianas. Os que achei melhores são dois mais modernos, o Giovanni Guareschi e o Ignazio Silone, que escreveu "Don Aristotile", o conto mais divertido do livro. Também escreveram contos tendendo ao humor: Matteo Bandello, Nicolau Maquiavel, Luigi Capuana, Renato Fucini, Trilussa, Massimo Bontemplelli (esse com um humor surrealista), Pitigrilli e ainda outros. Mas há uma dimensão dramática também, na qual se sobressai o Gabriel D'Annunzio com o "A arca de pão". Contos tristíssimos também foram escritos por Edmundo D'Amicis, Matilde Serao, Cruzio Malaparte e Vasco Pratolini. Um dos que eu mais gostei foi "A bebedeira de Toni Bianchini", do Lucio D'Ambra. O tema do conto é basicamente aquele de "O feijão e o sonho", o clássico Orígenes Lessa, isto é, o conflito entre ser escritor e botar comida na mesa. Nesse conto o humor e o drama acontecem ao mesmo tempo. E o meu conto favorito do livro é o sensível e lírico "Idílios desfeitos", do Antonio Fogazzaro, também um conto triste, mas não depressivo. Vai entrar para a lista dos belos contos que eu li neste ano. Falou-se muito bem no livro de Giovanni Verga, mas o conto dele, também dramático, não me atraiu. Gostaria de conhecer melhor. Há ainda contos do Pirandello e da Grazia Deledda, dois vencedores do Nobel, mas que não me chamaram a atenção em especial.Os contistas italianos me pareceram mais irregulares que os alemães. Grande parte deles já é do século XX. Mas valeu a leitura.

17/11/2018 – OSAMU DAZAI

Ah, mas esses japoneses são incríveis! Que literatura incrível é a asiática! Os chineses me conquistaram há algumas semanas e os japoneses seguirem pelo menos caminho. Osamu Dazai escreveu uma pérola chamada “A denúncia”. O conto todo é a fala de Judas Iscariotes no momento em que foi entregar Jesus às autoridades. E Judas aparece ali como um homem apaixonado por Jesus, ciumento da atenção que ele dava às mulheres e rancoroso por não receber dele nenhuma manifestação de afeto. Ainda por cima, o Judas do conto sequer acreditava na mensagem de Jesus. Dois trechos desse impressionante conto: “Tudo quanto diz é despropósito, completo despropósito. Não lhe dou o menor crédito. Creio, no entanto, na sua beleza. Não há neste mundo ninguém mais belo. É com a maior pureza de sentimentos que lhe amo a beleza. Só isso". E o outro: “Haverá alguém capaz de compreender as justas razões do meu procedimento, ditado pela constância do meu amor? Não, não preciso de ninguém que o compreenda. O meu amor é puro. Não é amor que careça de compreensão. Não é um amor ignóbil assim. Talvez eu venha a ser, por toda a eternidade, o alvo do ódio dos homens. Todavia, diante da sofreguidão desse amor puríssimo, toda a sorte de castigos, todos os fogos do inferno não são nada". Um exercício literário fantástico. Eu exultava enquanto lia, tão entusiasmado fiquei pela realização do escritor. Que conto!

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 17/11/2018
Reeditado em 17/11/2018
Código do texto: T6505106
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