Diário das minhas leituras/18

09/01/2019 – ALI BABÁ

Li, pela primeira vez, a história de Ali Babá e os Quarenta Ladrões. É uma história vigorosa e agradável se de ler. Na verdade, somos impelidos à leitura, ávidos pelo desfecho, de um jeito que muito texto “moderno” não consegue fazer. De quebra, aprendemos sobre uma região e uma época estranhas a nós.

09/01/2019 – MARGARET ATWOOD

Essa eu li antes de virar moda, de se tornar série na Netflix e tudo mais. “A história da aia", ou “O conto da aia”, é uma espécie de romance distópico ambientado em uma sociedade totalitária religiosa que usava um precedente do Gênesis para que as mulheres que não podiam ter filhos usassem aias para engravidar por elas. Isso significa, inclusive, que faziam sexo juntas. Mas eu não gostei muito do livro, esperava mais de um livro com uma proposta tão boa como essa. Um dia farei um conto que se passa com a bancada evangélica no poder.

10/01/2019 – GANEM, O ESCRAVO DO AMOR

Rapaz, gostei bastante também da história de Ganem, o Escravo do Amor, presente no livro das “Mil e uma noites”. Enredo cheio de movimento, situações de suspense, dramas violentos, várias reviravoltas, a essencial pitada romântica, a admirável caracterização da cultura árabe, e tudo muito bem costurado até levar a um desfecho feliz, mas, que diabos, nada impede que os desfechos sejam felizes. O fato de eu ter gostado desde conto e o outro, o de Ali Babá, ambos presentes em “Maravilhas do conto árabe”, me deu vontade de ler uma seleta maior de histórias das “Mil e uma noites”, coisa que quero fazer durante este ano. Ler todos os contos parece uma empreitada grande demais neste momento, mas não quero perder aquilo de que mais notável existe nessa obra que já reputo como fantástica. Como são bem contadas as histórias! Eu não pensaria em nada melhor para enrolar o rei da Pérsia e impedir a morte de Sherazade.

10/01/2019 – MARAVILHAS DO CONTO ÁRABE

A coleção “Maravilhas do Conto” oferece belas oportunidades de viagens por literaturas que geralmente não recebem muito destaque. O volume árabe é uma bela viagem por uma região das mais fascinantes. O livro já começa com o que possivelmente é a melhor introdução da coleção, pois o que Jamil Almansur Haddad fez foi um ensaio dos mais cultos sobre a literatura árabe. Gostei muito de aprender um pouco mais sobre ela. Ao contrário dos outros volumes da coleção, esse começa “ao contrário”, ou seja, com os escritores contemporâneos, partindo depois para os antigos, de tradição popular. E começa muito bem, porque o libanês Gibran Khalil Gibran, que comparece com dois contos, é um dos pontos fortes da obra. Há ainda contos dos egípcios Mohammed al-Mouwailihi, Mohammed Taymour (interessante conflito de gerações, de costumes e de visão social no mundo árabe em “No trem”) e Mahmoud Taymour (com o sobrenatural “O fantasma da Tia Khalil”) e Bishr Farès (com o lírico e triste “O barco”). Em seguida estão os contos do “Magreb”, que correspondem ao Marrocos, à Argélia e à Tunísia. À exceção de um conto do marroquino Ahmed Sefrioui, os demais são contos populares e, como tais, anônimos. Essas histórias são curtas, mas muito interessantes, na medida em que revelam aspectos culturais estranhos para nós, seja pela geografia seja pela distância no tempo. Há muito de poesia e muito de acontecimentos “mágicos”, inclusive com animais, coisas que ocorrem com muita naturalidade, a exemplo dos contos africanas (o Magreb, afinal, fica na África). Também há uma seção voltada às lendas religiosas e salta à vista para nós, criados em um ocidente cristão, as similaridades que existem com algumas histórias muçulmanas, como é o caso de José e a mulher de Putifar, ou Salomão e a Rainha de Sabá. Naturalmente, a visão do islã dá uma interpretação bem particular a essas histórias e que é muito interessante acompanhar. Há um conto dessa seção, um pouco mais “moderno”, que é autoral, escrito que foi por Al Jahidz: “Proprietários e locatários” é a curiosíssima história que é basicamente a argumentação de um proprietário para aumentar o preço do aluguel durante o período em que seu locatário recebe dois hóspedes. Há ainda algumas fábulas, de Ibn Al-Muqaffa e Loqman e mais algumas histórias, até chegarmos aos contos dos fabulosos livros “As cento e uma noites” e “As mil e uma noites”. São quatro histórias fascinantes, verdadeiras obras de arte das narrativas, leituras indispensáveis para quem quer que goste de literatura. Enquanto lemos, ainda aprendemos sobre o mundo árabe e sobre a vida muçulmana. Fascinante.

11/01/2019 – GORKI

"Por desfastio" é um belíssimo conto do Gorki. O ambiente é uma estação de trem com seus funcionários, que possuem como única distração as duas chegadas por dia do trem, as quais duram dois minutos cada uma. E levam o resto do dia a conversar sobre as pessoas que viram nessas rápidas passagens. Aí um dia descobrem um “caso” da cozinheira, uma mulher feia e solitária, com o homem que trabalhava como sinaleiro, e resolvem se divertir com o inusitado casal, provocando a eles uma série de humilhações, "por desfastio", como diz o título. Mas a pobre cozinheira não teve condições de suportar tudo aquilo...

11/01/2019 – RILKE

Pois o poeta Rilke também fez contos, como não? “Histórias do bom Deus” é um livro mágico e cheio de encanto. São histórias simples e bonitas ligadas entre si por meio do narrador, que as conta e, sempre, recomenda que sejam repetidas às crianças. Rilke dá grande destaque às crianças e à maneira como elas interpretam as histórias que conta. Mas, antes de chegar até elas, as histórias são contadas a gente como o paralítico Ewald, que passa os dias olhando pela janela de sua casa. Há em tudo muita poesia e, para mim, o ápice do lirismo e do maravilhamento está em “Como o dedal veio a ser o bom Deus”, conto que o narrador dirige às nuvens do céu e que fala sobre um grupo de crianças que sempre ouvia os pais falarem no “bom Deus”, mas sem nunca o avistarem. Ora, se o bom Deus não aparecia entre os adultos, era um bom sinal. As crianças resolveram elas próprias tomarem conta do bom Deus, mas precisavam escolher um objeto para personificá-lo. Depois de todos esvaziarem os seus bolsos, decidiram que o bom Deus seria um dedal, porque era brilhante e muito bonito. A partir de então, elas se revezavam: cada dia o bom Deus ficava no bolso de um deles. Ambientes semelhantes aparecem em outros contos, até “Uma história à escuridão”, que é existencial e traz dores da infância, não sendo recomendável às crianças.

12/01/2019 – GORKI

Uma sacada brilhante desse russo menos conhecido do que merecia: “Em nossa época, de tamanho progresso cultural, as pessoas tornam-se cada dia mais delicadas de sentimentos, e mesmo quando agarram o próximo pela garganta, com o evidente propósito de estrangulá-lo, esforçam-se por fazê-lo com a possível amabilidade e com o respeito a todas as regras de decência cabíveis no caso”.

12/01/2019 – KATHERINE MANSFIELD

Li dois contos da Mansfield, “A vida de tia Parker” e “Feuille d’album” (esse eu já conhecia). Engraçado como costumam falar que a Mansfield, a exemplo do Tchékhov, se destaca pela caracterização rápida. Um dos problemas que eu tenho com a Mansfield é justamente a caracterização de ambientes, pessoas e gestos, que para mim é um pouco exagerada, tornando a leitura lenta. Isso também aparece em “A vida de tia Parker”, mas, descontando isso, achei que se trata de um conto formidável. Um lindo drama sobre uma pobre velha que trabalhava como doméstica pouco após perder o seu neto. Sente-se a dor de tia Parker, sobretudo na parte final do conto. Ali o desespero dela é praticamente tangível. O conto termina de um jeito absolutamente desolador, o que reputei como excelente. Bem diferente do final que ela deu ao conto “Feuille d’album”. Ali o personagem é um sociofóbico, o que, evidentemente, fez com que eu me identificasse com ele. Como bom sociofóbico, ele também tem um amor platônico. Também tipicamente, ele se atrapalha todo ao se relacionar com as pessoas e, sobretudo, com a sua paixão secreta. O final é muito divertido, expondo o ridículo em que frequentemente o sociofóbico incorre, na sua tentativa de fugir do ridículo, mas, ao mesmo tempo, passando uma imagem de compreensão e simpatia pelo seu gesto.

13/01/2019 – GORKI

Outra ótima do Gorki: “Há pessoas para as quais o mais precioso e melhor na vida é constituído por alguma doença do corpo ou da alma. Carregam-na sempre e têm nela a razão da a existência, sofrem por ela e dela retiram o alimento, tornam-na motivo de queixa aos demais e, com isso, despertam a atenção do próximo. Com ela orientam para si a compaixão dos homens e, além dela, nada possuem. Tirai-lhes essa doença, curai-os, e serão infelizes, privados do único meio de manter-se em vida: estarão completamente vazios”.

14/01/2019 – CORTÁZAR

Principalmente nos primeiros contos de “Todos os fogos o fogo”, salta à vista a capacidade de Cortázar em produzir textos fluentes, com ritmo envolvente, de maneira que a leitura flui com muita naturalidade. Isso se dá tanto pela estrutura da narrativa como pela escolha vocabular.

14/01/2019 – CARMEN LIRA E UM CONTO ÁRABE

Carmen Lyra é uma escritora da Costa Rica que escreveu “O bobo das adivinhas”, conto no qual um sujeito acerta “por acaso” a três adivinhas feitas por um rei. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai apresentaram esse conto no volume 10 de “Mar de histórias”, mas não fizeram referência ao fato de que a história desse conto é muito mais antiga e remonta à tradição árabe. Por coincidência, eu havia lido há pouco tempo um livro de contos árabes e por isso pude identificar perfeitamente que o conto de Carmen Lyra é uma variação de “Sem Gafanhoto o pássaro não seria preso”, conto popular árabe, o qual conta com a mesma premissa, ou seja, alguém resolvendo várias adivinhas por puro acaso. Não sei de quando é o conto, que provavelmente também não é a fonte original, devendo ser resultado de histórias que já eram contadas oralmente há muito tempo. Mas é curioso ver a ressonância chegar à Costa Rica.

16/01/2019 – MARGUERITE YOURCENAR

“Memórias de Adriano” é um livro de uma construção incrível. Quisera eu ter empreendido semelhante pesquisa histórica antes de escrever as coisas que escrevo por aí. É com razão que o livro é bastante festejado. No entanto, não deixo de notar que, muitas vezes, o estilo se tornou maçante. Mesmo assim, a leitura já valeria por essa frase que a autora colocou na pena do imperador: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros”.

17/01/2019 – MAUPASSANT

"Bola de sebo" é realmente um excelente conto, e "O Horla" não fica atrás, mas eu sou muito mais a primeira versão deste, em vez da "definitiva". Acho que a versão original, mais curta, causa melhor efeito no surgimento de uma raça "invisível" a substituir o ser humano. O que eu não gostei na seleção de “As grandes paixões” foram os contos de temática "As libertinas ingênuas". Uma observação curiosa: como se bebe sidra nos contos de Maupassant!

17/01/2019 – GORKI

Vou aproveitar para colocar aqui o escrevi após ler o “Meu companheiro de estrada”, do Gorki:

Há em Gorki uma profunda ternura pelo ser humano, uma compaixão sem limites, que o faz se voltar sempre em favor dos menos favorecidos. Seus contos são geralmente tristes e comoventes. Toda a sua literatura é fortemente autobiográfica, pois sua vida foi incrivelmente movimentada. Às vezes ele acertou no modo como contou a história, às vezes não. Mas, quando acerta, fica difícil esquecer. Entre os grandes momentos está o conto "Desgostos e caretas", que também foi publicado no Brasil como "O aleijado". Outro que se destaca é "Por desfastio". Esses são contos mais objetivos, não há neles aquele exagero na descrição de paisagens, coisa que até o Tchékhov aconselhou o Górki a evitar. "Meu companheiro de estrada" também é um conto forte. Mas o livro em si é bastante irregular, como parece ter sido a própria produção do autor. Os bons momentos nele, no entanto, fazem valer muito a pena a leitura. Senti a falta do conto "O sapateiro", um dos melhores da coletânea "Certo dia de outono". De toda forma, a seleção parece representativa da produção do autor.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 17/01/2019
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