Diário das minhas leituras/19

17/01/2019 – MAR DE HISTÓRIAS – VOLUME 10

O que me chama mais a atenção na última coletânea dessa bela coleção é a quantidade de contos que terminam de forma absolutamente desoladora, deixando no leitor uma terrível sensação de impotência diante das angústias da vida. É o caso de “A vida de tia Parker”, da Katherine Mansfield, que não acha um único lugar no mundo onde possa chorar a seu gosto, “Aurélola cinzenta”, de Deszö Kosztolányi, com uma professora que só queria repousar entre uma folhagem escura para descansar da sua vida, “Mau-olhado”, de Stefan Zeromski, em que um cego grita de dor pela perda de uma criança (e “ninguém veio solícito em seu auxílio”) e “Os hóspedes de São João”, de Frans Eemil Sillanpäa (“Sua angústia é ao mesmo tempo material e espiritual, a prova está acima de suas forças. Ela chora”). Mas podemos incluir ainda outros contos em que o desfecho, se bem que não tenha tido uma nota tão desoladora como estes, é, também, bastante triste ou melancólico, resultado de tragédias individuais. “Nicolauzinho Mentira”, de Ion Alexandru Bratescu-Voinesti, termina de forma ácida e irônica, mas o que é isso senão a dura lição por trás de uma história de isolamento total? Não podemos nos enganar também pela leve esperança do desfecho de “A galeguinha”, de Alfonso Hernández Catá, pois esta, sim, é o que se pode chamar de uma “esperança triste”, vivida por uma empregada doméstica de história trágica e irreparável que se volta ao sacrifício pessoal. E o que dizer de “A aldeia de meus ancestrais”, de Lu-Hsin, que contém, em seu final, a sentença de que “a esperança existe e não existe”, depois de uma trama em que o tempo e as posições sociais impedem totalmente a recuperação dos afetos da infância? D. H. Lawrence, com “A passagem, por favor”, nos apresenta uma história de vingança feminina que, ao fim de tudo, deixa um gosto amargo. E há Kafka, basta dizer que há Kafka, com três contos (“Perante a justiça”, “Mensagem imperial” e “Um faquir”), todos de forte sensação de impotência diante do inevitável e do impossível na vida. Rómulo Gallegos, com “O crepúsculo do Diabo”, apresenta igualmente a inexorabilidade da passagem do tempo. Como se vê, são muitos os contos desse volume que terminam com perspectivas sombrias para os seus personagens. Será que isso se explica pela época em que foram escritos? É bem possível, pois os textos abrangem o período imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, que certamente deixou impressões das mais vivas em todos os escritores – e, por certo, nem o término dela significaria maior otimismo. Há, entretanto, outros bons contos que vibram em outro tom. “A força de Deus”, de Sherwood Anderson, tem até mesmo um desfecho “libertador” para o personagem, não obstante todo o drama narrativo. Max Jacob faz um delicioso e divertido exercício literário em “Conselhos de uma mãe a sua filha”. Louis Couperus participa com o estranhíssimo “O binóculo”, mas este, também, não termina nada bem. Divertido mesmo é “Jantar”, de Ring Lardner, mas, por trás do seu humor, se esconde a constatação da incompatibilidade e da eterna incompreensão entre os indivíduos. Há ainda contos brasileiros: Lima Barreto, com o célebre “O homem que sabia javanês”, Monteiro Lobato com o singular “O comprador de fazendas” e João Ribeiro com o lendário “São Boemundo”. Um dos momentos mais curiosos do livro vem com o conto de Alfredo Panzini, “O rato de biblioteca”, que até tem a sua diversão, mas também é perturbador. Ventura García Calderón aparece com dois contos tradicionais de desfechos cruéis. Aldous Huxley comparece com o estranho exercício de “Freiras ao almoço”. Carmen Lyra revive um antigo conto árabe em “O bobo das adivinhas”. A nobel Grazia Deledda, hoje praticamente esquecida, oferece “Um homem e uma mulher”, também de sabor amargo. Pedro Emílio Coll surge com o curtíssimo “O dente quebrado” e há mais um da Mansfield, “Feuille d’album”, que termina de forma engraçada, mas é, no fundo, o retrato de uma dor. Por fim, o livro termina com três contos de dois tchecos, Josef e Karel Čapek (“A ilha”, A demonstração do Prof. Rouss e “O imperador Dioclesiano”). Gostei especialmente do último, em que o dito imperador conversa com sua irmã sobre a impossibilidade de um estado cristão. Esses tchecos são nomes a serem mais conhecidos, conseguiram bons resultados nesses contos. Enfim, de maneira geral, os contos são muito bons, reforçando-se que a sensação de desolação ou de desespero é constante. Ah, deixa eu observar mais uma coisa sobre Kafka: considero que devia ter sido incluído pelo menos um dos três contos que mais gosto dele: “Blumfeld, um solteirão”, “Investigações de um cão” e “A construção”. Esses contos são maiores, mas, a meu ver, estão entre os mais significativos do autor, muito embora ainda permaneçam pouco conhecidos. Também por conta disso acho que deviam ter sido escolhidos.

18/01/2019 – KAFKA

Esse Kafka era realmente um monstro. Como se não bastassem os romances e contos inquietantes que foi capaz de produzir, o escritor da Boêmia arrasa até nas cartas, como essa, de 1904, endereçada ao seu colega, o historiador da arte tcheco Oskar Pollak:

"Deveríamos apenas ler livros que nos mordem e espicaçam. Se a obra que lemos não nos desperta com um golpe de punho sobre o crânio, qual é a vantagem de a ler? Para que nos torne felizes, como afirmas? Meu Deus, seríamos da mesma forma felizes se não tivéssemos livros. E os livros que nos deixam felizes, a rigor, poderíamos escrevê-los nós mesmos. Em contrapartida, precisamos de livros que sobre nós atuem de modo igual a uma desgraça; que nos façam sofrer muito, como a morte de quem amássemos mais do que a nós mesmos, como um suicídio. Um livro deve ser o machado que rompe o mar gelado existente em cada um de nós".

18/01/2018 – RING LARDNER

Esse Ring Lardner, norte-americano, precisa ser traduzido urgentemente por aqui. Em suas histórias "as pessoas falam pelos cotovelos, mas sem prestar a mínima atenção ao que dizem seus interlocutores”. Em “Jantar”, conto precioso que li no “Mar de histórias”, os diálogos têm momentos assim:

- Blá blá blá blá blá blá blá. O senhor joga bridge?

- Jogo.

- O senhor deveria, sério. Blá blá blá blá blá blá...

A incomunicabilidade e a incompreensão mútua só aumentaram com as redes sociais.

19/01/2019 – GRAZIA DELEDDA

Eu li Grazia Deledda, essa esquecida e abandonada Nobel da Literatura no meu ano de leituras femininas, em 2016. Li “Caniços ao vento”, que deve ser uma das poucas, se não a única, obra autoral dela aqui no Brasil. Só que ao tempo dessa leitura eu não cheguei a deixar as minhas impressões sobre a obra. Este é, afinal, o objetivo maior desse diário, impedir que as minhas leituras caiam no meu próprio esquecimento, como agora, quando não sei dizer coisa alguma a respeito de “Caniços ao vento”, a não ser a impressão de que não me chamou muito a atenção. Copio o que o Aurélio Buarque o Paulo Rónai falaram sobre o livro, o que só me desperta uma vaga lembrança do que li: “...história do criado Efix, que, tendo morto numa rixa o patrão prepotente, inflige a si mesmo como penitência devotar a vida às filhas deste, morrendo depois de restaurar o resplendor do solar decaído”.

20/01/2019 – LITERATURA COREANA

Esses orientais me surpreendem cada vez mais. Li “Contos Coreanos”, coletânea de 1985 com escritores mais modernos das duas Coreias (imagine só, ler escritores da Coreia do Norte!). São dez 10 contos, 6 do sul e 4 do norte. Encontrei uma literatura fortíssima, intensa, essencialmente dramática. Situações mal resolvidas entre familiares perfazem boa parte dos contos. Questões econômicas, pobreza e miséria são pano de fundo de vários deles também. A infância rende textos maravilhosos, permeados por uma vívida poesia. E há um exemplar essencialmente psicológico, “K”, da sul-coreana Han Mahl-sook, além de um conto surrealista, “O outro quarto”, do sul-coreano Choi In-ho. Um dos que mais gostei foi o de Ha Kem-Chan, “O sofrimento de duas gerações”, sobre um veterano de guerra que não tinha um braço e que esperava a volta do seu próprio filho de uma guerra em que perdeu uma perna. O único que aparece com dois contos é o norte-coreano Hwang Soon-won e é justamente ele o mais poético dos escritores. Ele lida com o tema da infância de uma maneira muito tocante. Em “Estrelas”, por exemplo, um menino se afasta da irmã depois que disseram que ela se parecia com a falecida mãe, coisa que ele não podia aceitar. Pirraças entre um menino e uma menina fazem parte do seu outro conto, “Aguaceiro”, mas levando a uma doce aproximação entre eles que termina de forma trágica”. “Tempo de camélias”, do sul coreano Kim Yu-jung, é da mesma linha, com dois adolescentes que ficam se provocando, coisa que, como se sabe, é outra maneira de dizer que se gostam. “Sonho abandonado”, do norte-coreano Son Chang-sup, é também uma história de dramas familiares que inclui cenas de violência. O sul-coreano Cho Sun-jak, em “Tapume pintado”, também oferece momentos fortíssimos, pois, afora as sugestões de zoofilia, um dos personagens matava cachorros para restaurantes. É um conto cheio de misérias, e não só financeiras, mas também morais. Os outros contos são “A rocha”, de Kim Tong-ni, do sul, que também trata de uma degradação familiar, “Batatas”, de Kim Tong-in, do norte, em que se vê a miséria obrigando os personagens a rebaixar seus padrões morais, também contos “fortes”, bom adjetivo para esses coreanos.

20/01/2019 – OLAVO BILAC

Olavo Bilac escrevia em 1907:

"O público tem pressa. A vida de hoje, vertiginosa e febril, não admite leitura demoradas, nem reflexões prolongadas. (...) O século não tem tempo a perder. A eletricidade já suprimiu as distâncias: daqui a pouco, quando um europeu espirrar, ouvirá incontinenti o "Deus te ajude" de um americano".

22/01/2019 – ISABEL ALLENDE

“A casa dos espíritos” foi uma das belas coisas que li no meu ano feminino em 2016, mas não deixei de notar que muito do que a Isabel Allende fez já há havia sido feito antes pelo García Márquez. O começo do livro lembra-me muito, muito mesmo, os livros do Gabo:

Barrabás chegou à família por via marítima, anotou a menina Clara com a sua delicada caligrafia. Já nessa época tinha o hábito de escrever as coisas importantes e mais tarde, quando ficou muda, escrevia também as trivialidades, sem suspeitar que, 50 anos depois, seus cadernos me serviriam para resgatar a memória do passado e sobreviver a meu próprio terror.

23/01/2019 – ANTÔNIO CALLADO

Gostei bastante do romance “A madona de cedro”, bem criativo e envolvente. As cenas finais do livro são antológicas. Drama muito bem construído, cheio de conflitos existenciais.

23/01/2019 – ALUÍSIO AZEVEDO

Pode ser que "O cortiço" seja mesmo a melhor obra do Aluísio Azevedo, mas sem dúvida "O mulato" me divertiu e me entreteve muito mais. Deliciei-me com diversas passagens, tendo encontrado, inclusive, algumas inesperadas tiradas humorísticas. Por exemplo:hHá um chato exemplar no livro. Lá pelas tantas uma mulher tem um ataque. O pessoal se debruça sobre ela, desesperado, até que se conclui: "É um vólvulo!". Ao que o chato emenda: "Do latim volvulus". Sem falar na ousadia do escritor que foi enfrentar o provincianismo da escravagista São Luís do Maranhão. Como obra realista ou naturalista, também me agrada bastante quando o desfecho foge do ideal. O cônego Diogo parece ter saído diretamente das páginas de Decameron. Sem dúvida um dos personagens brasileiros que mais mereciam figurar lá.

24/01/2019 – LUIS FERNANDO VERISSIMO

Quem sabe?

Diz a mecânica quântica

que as partículas atômicas

se comportam de um jeito

quando são observadas

e de outro quando estão sós

(como aliás, todos nós).

E quem nos assegura

que o Universo que está aí

não é como aí está

quando ninguém está olhando?

E que quando os astrônomos

se viram do telescópio

para a prancheta

o Universo não faz

uma careta?

[O Globo, 08/10/2000]

26/01/2019 – FERNANDO SABINO

“Com a graça de Deus” tem a interessante proposta de reescrever, em linguagem mais acessível, e ordenar os eventos relatados nos Evangelhos, ao mesmo tempo em que inclui comentários, expõe dúvidas e faz citações referentes ao texto bíblico. Experiência legal.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 26/01/2019
Reeditado em 26/01/2019
Código do texto: T6560229
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