A antologia que fechou um ciclo

A ANTOLOGIA QUE FECHOU UM CICLO
Miguel Carqueija

“Vinte anos no Hiperespaço”: organização: Cesar Silva. Editora Virgo, São Caetano do Sul (SP), 2003. Prefácio de Marcello Simão Branco.Edição: Mário Mastrotti. Produção gráfica: Cesar Silva. Capa: Cerito. Apresentação: Cesar Silva.

O fanzine “Hiperespaço”, editado por Cesar Silva e, no início, também por José Carlos Neves e Mário Mastrotti, durou uns vinte anos. Quando resolveu encerrá-lo Cesar organizou uma antologia comemorativa, que passo a comentar.

VINTE ANOS NO HIPERESPAÇO
(Cesar Silva e Mário Mastrotti)

A capa do livro equivale a um conto em forma de noticiário em torno do personagem “Tripanossoma”, pirata galático criado por Mário Mastrotti, responsável pela parte visual da história. A notícia da captura do pirata e seu cúmplice Dodô é bem-humorada, mas infelizmente a colocação das colunas da notícia em posição inclinada fez com que algumas letras se perdessem, impossibilitando a leitura integral do trabalho.

A NOVA REVOLUÇÃO DOS BICHOS
(Carlos Orsi Martinho)

Este é, a meu ver, o melhor trabalho da antologia. Com uma originalidade muito grande Carlos Orsi desenvolve uma fábula utópica e autópica que já começa com palavras intrigantes: “O maligno Humanoide observa, impotente, os Gorilas Selvagens de Chachka-Qun atacarem as paredes do Palácio de Tungstênio com brocas roubadas de diamante.”
É um conto divertido, que prima pelo absurdo e narrado com grande engenhosidade, numa tessitura que se completa brilhantemente no desfecho, e ainda aproveita para uma referência a “Animal farm” de George Orwell (ao seu título no Brasil, “A revolução dos bichos”).

BACTÉRIA
(Edgard Guimarães)

Conto sofisticado onde um sujeito especula sobre um hipotético micro-organismo que altera os textos impressos. É um conto bem escrito em termos de língua portuguesa mas esbarra com o problema de não conseguir passar a mensagem de humor que pretende na surpresa final, que de resto é previsível.

ANDROIDES ORGÂNICOS TERÃO CABELOS NO PEITO?
(E.R. Corrêa)

História extravagante e de difícil compreensão, a começar pelo título esquisito e excessivamente comprido. Tudo gira em torno de um sujeito reles num botequim, no meio-dia de São Paulo, pensando em ataques terroristas e que, por fim, começa a desconfiar ser ele próprio um androide-bomba. A linguagem “punk” prejudica muito o clima de terror induzido e o desfecho, anti-climático, é decepcionante.

PAULA, A ESTRANHA
(Fernando Moretti)

Parece que o autor se inspirou, no título, na Carrie de Stephen King. A história porém segue a via da psicopatia, não a do terror puro. O que salta aos olhos é a gratuidade da violência narrada, uma história que segue a triste via do “brutalismo” que hoje infesta a literatura e o cinema.

COLEIRA DO AMOR
(Gerson-Lodi Ribeiro)

Num entrecho mais longo — aliás esse autor costuma escrever contos bem mais longos — Gerson conta uma história que poderíamos chamar “passional-tecnológica”, exercitando sua habitual firmeza de estilo e habilidade em tecer tramas.
No entanto, a ideia da manipulação dos próprios sentimentos mediante a implantação de nano-robôs e a polêmica se isso fere ou não o livre-arbítrio resulta numa discussão em jargão técnico que soa bem artificial e pesada para os leitores, principalmente aqueles que vêem a ficção científica como lazer. Vejam este trecho:
“Os chips de amor eterno não inserem novos padrões (...) Apenas reforçam as trilhas neurais que expressam sentimentos mútuos preexistentes.”
Em todo o caso creio que Gerson tem razão ao sugerir a possibilidade de loucura como consequência de tais manipulações.

V.I.R.T.U.A.L.
(Gian Danton)

Uma divertida vinheta que brinca com aquele clichê de “nada é o que parece ser”, tornado mais comum após a descoberta do mundo virtual. Fazendo lembrar o Hal — o computador inteligente de “2001: uma odisseia no espaço” — o pequeno conto de Gian Danton pode ser considerado perfeito, e admite vários níveis de leitura. O que é a realidade? O que é a auto-consciência?

O MONSTRO DO ARMÁRIO EMBUTIDO
(Miguel Carqueija)

Uma espécie de conto lovecraftiano infantil, que se reporta aos clássicos terrores das crianças. Como se sabe, o folclore infantil fala nos monstros que habitam os armários ou se emboscam embaixo da cama, nos amigos invisíveis e nos brinquedos que se movem e falam na ausência dos humanos. O protagonista-narrador, já adulto, relembra um fato traumatizante de sua meninice.
(observação: como sou eu o autor do conto não posso dar opinião sobre ele e limitei-me a explicar o enredo)

ARMAGEDOM EM MADUREIRA
(Octavio Aragão)

Incursão no domínio do “non sense”, como nos velhos quadrinhos de Juarez Machado; porém com detalhes vulgares. A história começa com uma mulher sendo lambida pelo telefone (sic). Outros horrores vão acontecendo, culminando com uma explicação atroz a respeito de uma invasão do inferno. Esse é, de longe, o pior conto do livro.

PRÉ-NATAL
(Roberto de Sousa Causo)

Os textos de Causo com frequência tratam de assuntos militares e políticos, e também polêmicos. No caso trata da luta contra a tirania, uma ditadura de algum país não identificado (mas que parece ser o Brasil), já que o autor tem a idiossincrasia de falar apenas no “Regime” e no “Ditador”. Uma criança em gestação deve ser contrabandeada e, para tanto, é implantada no abdômen de um homem, na suposição de que isto iludirá a vigilância do inimigo.
O conto me parece pouco convincente do ponto de vista científico, pois não consegui entender como o bebê poderia sobreviver no corpo de um homem.

O ÚLTIMO SUSPIRO
(Cesar Silva)

Um conto muito curto para o assunto, passado em época nebulosa, talvez num futuro distante, onde uma nova idade de gelo isola comunidades humanas e, numa delas, um dos habitantes tem a ideia de organizar torneios esportivos para evitar a degeneração da raça e manter a esperança de dias melhores; todavia os torneios só servem, afinal, para estimular o ódio entre as famílias. É um conto deprimente, com um final sombrio. Creio que a ideia básica daria para melhor desenvolvimento e um final menos pessimista. Em todo o caso, uma visão bastante ácida em relação à natureza humana.