Diário das minhas leituras/32

27/06/2019 – O CONTO ÍDICHE 3

Continuando com a leitura dos contos ídiches, hoje li Hersch Dovid Nomberg, com “O neto do rabi”, que, embora interessante como toda a coletânea, não se sobressaiu de alguma maneira, e depois Avrom Raizen, com o tocante “O velho sapateiro”, a respeito de um homem que dependia dos “lamaçais” em sua cidade para ganhar o pão de cada dia como sapateiro, e que de repente vê a sua atividade ameaçada pela notícia de que irão calçar a cidade. A esse conto se seguiu outro do mesmo autor, “O recluso”, e então aparece Lamed Schapiro, com “Halá branco”, conto de muitas violências, e também “O rabino e sua esposa”, que é muito interessante, já que, ali, Deus não realiza nenhum milagre para “descerrar o ventre” da esposa do rabino. Depois Scholem Asch, que parece ser um dos grandes na literatura ídiche. Ele comparece com “Vingança judia”, com um daqueles terríveis dramas associados às violências de que os judeus foram vítimas ao longo da história, e o surpreendente “Cristo no gueto”. Neste conto, durante o nazismo, um grupo de judeus é chamado para entrar em uma igreja católica. A descrição que o autor faz da reação dos judeus ao adentrar, pela primeira vez, naquele tempo é muito boa. Lá dentro, para variar, os judeus sofrem torturas, e em dado momento o autor compara o Jesus na cruz com um dos judeus:

“Se o homenzinho parasse um instante e observasse a imagem pendurada a parede, não poderia deixar de perceber a enorme semelhança entre o judeu à sua frente e a figura na cruz. Tal como essa, o judeu era alto e magro, e seu rosto estava enrugado no mesmo esgar de sofrimento e piedade. Mas o que era realmente assombroso nessa semelhança era a expressão do olhar: no olhar de ambos não havia cólera nem amargura, mas antes dolorosa compaixão pela criatura humana que caíra tão baixo. Evidentemente, o homenzinho nada percebeu”.

Essa é só a primeira das associações que o escritor faz entre Jesus e os judeus. Os nazistas tentam convencer o grupo de judeus a destruir aquela igreja, sob o argumento de que também eles não eram mais cristãos e que nada de ruim iriam acontecer a eles. Vem então uma reação dos judeus, os quais não se sentiam à vontade para fazer semelhante afronta à fé alheia. Os nazistas provocam, aludem à questão de ser aquele Cristo o inimigo deles, mas mesmo assim eles reforçam que não gostariam de fazer o que estavam lhes pedindo. Por fim, o rabi acaba morto e os outros são levados embora. Aí entra o elemento sobrenatural na história, pois o Jesus da cruz ganha vida, acaba tomando as vestimentas do rabi morto À sua frente e sai à rua. Encontra os católicos com os ânimos atiçados, pois os boatos já circulavam dando conta de que os judeus haviam profanado a sua igreja das formas mais aviltantes possíveis, e eles já se mostram dispostos a ir até o “gueto” e linchá-los, sobretudo porque eram incentivados pelos nazistas, a quem interessava não só matar os judeus como ter aquele grupo de católicos poloneses ao seu lado. Em verdade, eram os alemães que estavam jogando católicos e judeus uns contra os outros. Aí esse grupo, que já começava a se armar, se depara com aquele “judeu”, que não era outro senão Jesus. Jesus lança uns de seus poderosos olhares com que penetra no íntimo das pessoas e elas acabam se dando conta do que os nazistas estavam fazendo com elas e recusam-se a se tornar assassinos. O soldado que havia matado o rabi reconhece do rosto de Jesus aquele que, há pouco, havia morrido sobre as suas mãos, e desfalece no chão. A multidão silencia e Jesus anda entre eles, segue até a primeira casa de judeus e, ao entrar nela, saúda os moradores como saudou os apóstolos após a ressurreição: “A paz seja convosco”. É interessantíssima a relação entre judaísmo e cristianismo apresentada ao longo do conto, como que aproximando as duas crenças diante do verdadeiro inimigo em comum – o nazismo. É possível que, ao fazer isso, tenha desagradado tanto judeus quanto cristãos. E, no entanto, talvez estivesse com a razão.

28/06/2019 – ITALO SVEVO

Uma ligeira observação que fiz quando lia “A consciência de Zeno”. Se bem me lembro, achei que o livro, do qual eu estava gostando, caiu um pouco no final.

“Zeno é um personagem complexo, e por isso bem real. Tem um medo absurdo do abandono e do desemparo, e ao mesmo tempo é uma folha levada ao vento, deixando aos outros o controle da sua vida”.

28/06/2019 – O CONTO ÍDICHE 4

Segui a leitura com Itzhok Meier Waissenberg e o seu “Um pai com filhos”, que não me chamou muito a atenção. Depois, Ioine Rosenfeld com “Concorrentes”. Esse sim me pareceu um conto bastante forte, em que um pai se vê como concorrente da própria filhinha mais velha no cumprimento das suas atividades domésticas, já que o pai era sustentado pela mãe. O estado psicológico desse pai é lamentável, há um incrível desemparo e a falta de qualquer apoio, ele é, como dito na introdução do conto, “um excedente, supérfluo que, mesmo na escala mais baixa de sua degradação, é contestado, é dispensável. É um ser cuja própria razão de existir é posta em questão”. Ao que aparece, esse Rosenfeld privilegiava mesmo os temas decorrentes da psicologia patológica e de uma angústia invencível, coisa que sempre me agrada. Em seguida veio Ioel Mastboim e o seu “Ahubá”, conto até bonito sobre uma vaca, mas que não chegou a me comover de uma maneira particular. Depois, Aizik Raboi e “Salomão”, o mais socialista dos contos que li até agora. Inclusive, foi uma novidade para mim a proximidade entre alguns dos escritores judeus e as ideias socialistas. Mas talvez seja até mais importante no conto a questão da hipocrisia religiosa. A filha do patrão de uma fábrica de tecidos expõe o tratamento desumano que o seu pai emprega com os seus funcionários e questiona como ele pode continuar sendo merecedor das homenagens que recebe pela comunidade judaica, considerando que o dinheiro que ele ali fazia entrar havia sido “produzido pelo suor e pelo sangue de quinhentas moças que se desgastam para meu pai em sua fábrica”. A coragem da moça é notável, bem como a disposição dela, que até então trabalhava no escritório com o pai, em passar a ser ela própria uma costureira, compartilhando do mesmo destino daquelas que já eram as suas amigas. A ousadia dela para aquele contexto era tão forte que mesmo o namorado dela não a entende e considera que uma coisa daquelas não se podia fazer com o próprio pai. Era uma mulher realmente de pensamento independente e que tinha ideias que agradariam em cheio os movimentos sociais.

30/06/2019 – MAUPASSANT

Já disse outras vezes que prefiro a primeira versão de “O Horla” do que a definitiva. Resgato agora uns comentários que fiz para defender essa tese:

“É por isso que eu acho que a versão original é melhor, porque nela o personagem não pode ser classificado como vítima de alguma psicopatia com a mesma facilidade que na versão definitiva (apesar que, mesmo nessa, temos que admitir uma bizarra coincidência com outros alucinados em São Paulo ao mesmo tempo). Na primeira versão, o alienista que trata do personagem vai até a fazenda do cara e testemunha os mesmos fenômenos ocorrendo na casa de três vizinhos. Também na casa desses vizinhos foram deixados leite e água ao lado da cama e também sumiram. Disso resulta que o impacto do conto é muito maior. Também me parece que os efeitos do Horla em meio aos criados são melhor exemplificados no conto original e contribuem para o efeito pretendido pelo conto. O desfecho também é mais inquietante e perturbador e o problema parece atingir a humanidade como um todo, em vez de uma ruína pessoal, como na versão definitiva. Não sei como será a humanidade daqui para frente, mas a mim me parece que o Horla é atualíssimo. Todas as nossas conquistas materialistas e científicas não conseguiram, como se imaginava no início, acabar com o "mundo dos invisíveis" e ele está mais vivo do que nunca, e não dá sinais de que irá recrudescer, apesar das trombetas tocadas pelos cavaleiros materialistas do Apocalipse”.

30/06/2019 – O CONTO ÍDICHE 5

Dando sequência à leitura dos contos ídiches, li dois de Dovid Berguelson. Achei interessante como tanto “O surdo” como “Decadência” apresentam homens viúvos, com filha ou filhas e deficiências significativas (no segundo, é a cegueira). Pelo que li na introdução, esse escritor gostava de falar realmente a respeito da decadência de famílias judias. Depois li o Zusman Segalovitch, com “O enviado de Deus”, um conto simples e que, a despeito do drama que encerra, favorece uma visão religiosa. Aí vem o Moische Nadir com “O homem que passou dormindo o fim do mundo”, título que é revelador do tema, um mote bastante original. E então há uma série de contos curtos de Iossef Opatoschu, dos quais, para mim, sobressaiu-se “Negros”, que trata da questão racial. Acho que poderiam ser feitos paralelos entre os negros e os judeus. Esses foram os escritores que li da última anotação para cá, mas, embora eu tenha achado interessante a leitura de todos eles, não houve mais nenhum que tenha me conquistado e entusiasmado na leitura.

02/07/2019 – O CONTO ÍDICHE 6

Mais contos feitos por esses incríveis escritores judeus. Primeiro, Israel Ioschua Singer, um irmão do Isaac Bashevis Singer, o único que já li dessa turma toda que escrevia em ídiche. Achei “Primavera”, um conto bem interessante. Seria o tipo de conto que o Jack London faria se fosse judeu. Um sujeito que quer chegar em casa para passar o feriado da Páscoa, mas é impedido pelas fortes chuvas. Depois de alguns dias, quando o tempo dá uma amenizada, ele decide se arriscar, ele e o novilho que pretendia matar para as festividades. Mas eles acabam surpreendidos pelo gelo que se desprende e vira água. Ou seja, uma daquelas aventuras tão ao gosto de London. Depois, o livro conta com um conto do próprio Isaac Bashevis Singer, “Gimpel, o tolo”, do qual também gostei muito. Acho que é, de todos os contos, o que tem a leitura mais fácil e fluente, e isso, por certo, não é apenas mérito do tradutor. Além de tudo, o Gimpel é um personagem bem simpático, em toda a sua ingenuidade. Vem então Schaie Miller e o seu intenso “Um testamento”. É a história de um “kapo”, um feitor judeu nos campos de concentração nazista. Ou seja, um carrasco da sua própria raça. Ao término da guerra, esse homem se casou e conseguiu, depois de muitas lutas, abrir um bom restaurante voltado ao público judeu. O problema é que, certo dia, aparece por lá um homem que o reconhece dos campos de concentração e revela a todo mundo que ele era um kapo. E passa a fazer campanha acirrada contra o restaurante, que, a partir de então, só declina, a ponto de o homem desistir do negócio e sair da cidade. Antes, no entanto, tem um encontro com esse homem que o reconheceu, e é um daqueles interessantes encontros de dois homens para passar a limpo o seu passado em comum, à moda de um Sándor Márai. Esse outro homem também tinha cometido por lá as suas vilanias, embora não a ponto de se tornar um kapo. Por fim, o ex-kapo vai embora e nós só o encontramos três décadas depois, quando está para morrer e faz o seu testamento. Nele se observa uma relação péssima com os seus filhos, o que parece ser uma espécie de “castigo” por aquilo que ele fez no tempo da guerra. O homem deixa praticamente todo o seu dinheiro para um fundo destinado às vítimas da crueldade no mundo. É meio que uma forma de se redimir. Em suma, há muitos elementos bacanas no conto, o que não significa que a disposição deles tenha sido a melhor possível. Talvez esse fosse até o caso de fazer um romance, em vez de um conto. O próximo escritor lido foi Moische Kulbak, com o seu impressionista “Múnie, o passarinheiro”, que tem a sua beleza e a sua poesia. Depois dele, vem Schimen Horonstchik com o curioso “Em casa de um parente rico”, um daqueles contos cuja moral reforça que os que muito têm nem sempre são dignos de inveja. A seguir, outra grande peça do livro: “A caminho do novo mundo”, de Itzhok Metzker, escritor da Galícia. É a história de uma aldeia, é a história da sedução da imigração para a América, é a história de um drama familiar, de um “judeu não praticante” que irrita o seu pai e, por fim, da decisão de mandá-lo tentar a sorte no novo continente. Em meio a isso, passa-se por muitas emoções, passa-se até pelo amor a uma cristã, e tudo com muita melancolia, provocando uma porção de dorzinhas que doem lá no fundo da gente que lê. Muito triste e muito bonito. Por fim, li também “Um cachorro do gueto”, de Ieschaie Spiegel. É mais um conto a enfocar a interminável crueldade dos tempos da guerra, esse a partir da relação de uma velha viúva com seu cachorro que deveria ser morto.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 02/07/2019
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