Diário das minhas leituras/44

05/11/2019 – MAUPASSANT

Eu havia lido um livro do Maupassant no começo dessa minha jornada pelo mundo dos contos, no início do ano passado, e até havia gostado de algumas histórias, mas sem exageros, sem me empolgar tanto assim. Agora, depois de dar a “volta ao mundo” por meio dos contos, eu decidi pegar mais um livro dele para ler e a impressão foi bem diversa: “Histórias eternas” é um livro bastante empolgante e Maupassant um escritor fenomenal. É difícil dizer o que mudou da primeira leitura para essa. No livro da Cultrix, estão de fora alguns dos maiores clássicos do autor, como “Bola de sebo” e “O horla”, pois a proposta é trazer ao leitor textos menos conhecidos do autor. Não há uma divisão temática, como está na moda fazer nos dias de hoje, não há grandes explicações sobre os contos, há simplesmente uma história atrás da outra, e elas são deliciosas. São 27 contos e no máximo 2 eu poderia dizer que não me agradaram muito. Trata-se de um escritor incrivelmente imaginativo e extremamente versátil. Há uma veia “poética” (que vem de Poe) muito forte, que faz o Maupassant insistir em histórias “misteriosas”, beirando a literatura fantástica, com alucinações ou presenças sobrenaturais, embora, frequentemente, elas não sejam mais do que o resultado de uma imaginação acerbada. Há os dramas dos arranjos e desarranjos familiares, os segredos guardados, às vezes por toda uma vida, a luta para sobreviver, a submissão ao destino e, eventualmente, a esperança em dias melhores. Há o medo, há a solidão, há principalmente o humano, o que inclui seus interesses pouco louváveis e inconfessáveis. Há mesmo a poesia e a beleza. Com frequência todo esse caldo desemboca em alguma tragédia. Maupassant lança mão mesmo de lances dramáticos, mas nada me pareceu exagerado, nada me pareceu que não fosse o realismo da vida que acontece todos os dias e até os dias de hoje. Vez ou outra, há também a comédia e é interessante como mesmo ela, por vezes, é acompanhada de elementos trágicos. Tudo numa linguagem objetiva e, ainda que depois da tradução, tão natural que parece muito fácil alguém se sentar e escrever uma história semelhante – ledo engano. Um dos contos que mais gostei foi “O albergue”, espécie de meio termo entre Poe e Jack London, onde há o medo, o mistério, a alucinação, mas também há a aventura gelada, na história de dois homens sozinhos cuidando de um albergue vazio durante o inverno, até o dia em que um some e o outro passa a ouvir a sua voz à noite, situação que não termina nada bem para o cachorro de quem cuidavam. Gostei muito também de “Pierrô”, o drama do cachorro assim chamado que, em verdade, é também o drama das suas proprietárias, que tiveram a sua própria humanidade e compaixão despertadas só depois de largarem o inditoso animal em um buraco para que nele perecesse. “A aventura de Walter Schnaffs” eu já conhecia e passei a gostar mais nessa leitura, pois, em meio às situações cômicas vividas pelo personagem, não se deixa de fora a crítica à lógica da guerra. “O afogado” também é uma beleza, conto que retrata o terrível drama da mulher constantemente espancada e humilhada pelo marido marinheiro, que um dia, supostamente, parece ter perecido no mar, mas ele volta, ou parece voltar, na voz de um papagaio, que acaba pagando o pato numa cena antológica – atente-se para o grande desfecho em que a mulher ainda se sente culpada e pede perdão a Deus. “Meu Tio Jules” também me chamou a atenção ao mostrar a frustração de uma família pobre que tinha a esperança de “tirar o pé da lama” quando um dos seus parentes voltasse da América, onde havia ido fazer fortuna – mal sabiam eles em que estado iriam encontrar o Tio Jules. Há outro tio, “O Tio Amable”, que é o maior conto do livro, com 20 páginas (a maioria varia entre 6 e 10, ou seja, contos de leitura rapidíssima), sobre um velho surdo, bem mais afeito a interesses financeiros do que à felicidade do filho que queria se casar com uma mulher que já tinha um filho. Também aqui se percebe o tema dos desarranjos familiares, levando aqui a um trágico desfecho. Há histórias que evidenciam grande violência, como a vingança de “Uma Vendetta”, e outras em que o mal se dá de forma mais sutil, mas o resultado é igualmente criminoso, como na morte de um bebê em “A confissão”. A sensibilidade com os mais desafortunados da vida é expressada no conto “O armário”, que revela, de surpresa, a presença do filho de uma prostituta. Uma crítica até certo ponto mordaz está por trás daquilo que, de outra maneira, seria apenas um conto de literatura fantástica, como é “A morta”, pois nele, subitamente, os mortos levantam de suas tumbas e “corrigem” os seus epitáfios, falando quem eles foram de verdade, em oposição ao que deles se dizia. A teimosia e o conservadorismo de lideranças religiosas, em oposição aos arroubos da juventude, aparecem de forma lírica em “Luar” e de forma um tanto cômica em “Uma surpresa”. Segredos de paixão dão o tom de “Mademoiselle Perle” e “Alexandre”, sem falar em “O abandonado”, em que o fruto de uma paixão proibida é buscado depois de muitos anos, e talvez fosse melhor que nunca o buscassem. Questões do amor maternal podem ser vistas em “Drama humilde” e no notável “No campo”, quando um casal sem filhos literalmente compra uma criança pequena e um dia ela volta muito bem de vida, para a ira do filho de outros pais que não haviam querido vendê-lo. Há ainda outros contos muito bons, e tudo termina em “Na água”, com o seu grande e lindo desfecho.

13/11/2019 – NOVA E VELHA PÁTRIA

Admito que este é um livro que tem alguns contos que podem ser bem enfadonhos, mas, apesar de tudo, mergulhar nessa literatura judaica rende sempre alguns tesouros, pérolas que mereciam ser conhecidas e celebradas por todos, a despeito da crença que eventualmente possuam. Pesquei ótimos tesouros nesse livro, como “O vidro”, de Itzak Dov Berkovitz, um conto que, se tirarmos as referências judaicas, seria possível atribuir ao próprio Tchékhov, pois tem o mesmo ambiente e o mesmo humor triste (aliás, diga-se que Berkovtiz era da “Rússia Branca”). Fala sobre um sujeito que ouviu uma piada, uma piada que tinha a ver com vidro, e queria contá-la na casa que frequentava, a fim de “fazer a corte” à garota pela qual estava a fim, mas não encontra ocasião para dizê-la, tanto mais que surgiu um primo cortejando a garota. Ele sai de lá frustrado e vai atender uma mulher às portas da morte, pois era médico. Chegando lá, ele resolve contar essa piada à filha da mulher que morria, de um jeito todo desastrado e patético, em que não havia o menor cabimento contar piada alguma. Ótimo conto! Outra pérola é “O julgamento de Salomão”, de de Yehudá Iaari, conto que atende perfeitamente a todas as exigências modernas para um conto, escrito em uma envolvente primeira pessoa. A história é sobre uma disputa de duas mães por uma criança, a mãe biológica (a narradora) e outra a que havia cuidado da criança durante o horror nazista. Todas as variações psicológicas e as argumentações apresentadas pela narradora são notáveis. Conto excepcional que não merece ficar restrito a um livro de literatura judaica. A terceira grande pérola do livro é Aharon Megued com o seu “Aguaceiro no deserto”, que retrata a história de um grupo de pessoas que se encontraram por acaso em uma “Kombi” que transportava pessoas em Israel e se viram obrigados a parar por causa de um verdadeiro dilúvio na estrada. Há muitos diálogos entre os personagens e eles são bem vivos, ágeis e realistas, assim como comportamento de cada um dos personagens. No meio, a gente aprende mais sobre Israel, em uma bela narrativa que vai do cômico ao dramático. Já a quarta grande pérola é “Tehila”, de Schmuel Yossef Agnon, a comovente história de uma velha com mais de 100 anos que vamos descobrindo aos poucos, enquanto também aprendemos sobre Israel. Por fim, a quinta grande pérola é “Filho da velhice”, de Yehoschua Bar-Iossef, sobre um adolescente judeu problemático que começa a “entrar nos eixos” a partir da expectativa de conseguir se casar com uma jovem, mas tem os seus desejos frustrados, levando a uma antológica cena em que ele assiste debaixo da cama a lua de mel da sua amada e, antes que tudo se consumasse, sai carregando a cama porta afora. Merecem destaque ainda os contos de Mica Yossef Berditschevski (“Sua casa”), Dovid Frischman (“Três que comeram”), Mosché Smilanski (“Hadiya”), Aharon Abraham Kabak (“O balanço”, linda história de autosacrifício de uma menina, vivendo sempre à margem de outra), Yehudá Burla (“Num olhar”), Zalman Schenour (“A menina”, belo drama familiar), Itzhak Schami (“Entre as areias do deserto”, ótima narrativa árabe feita por um judeu), Haim Hazaz (“O errante”, que não é um conto tão fácil, mas encerra uma boa piada, apesar de toda a tragédia que lhe segue); Itzhak Schenhar (“Israel Tzvi”, outro sujeito que se deu mal na vida). Para o Skoob, fiz a seguinte “resenha”, fazendo propaganda do livro e da literatura judaica:

O sujeito ouve uma piada e pensa em contá-la à noite quando visitar a família de uma mulher por quem está interessado. Chegando lá, não apenas não acha ocasião para encaixar a sua piada como ainda vê um primo se aproximar da sua amada. Ele sairá de lá frustrado e só conseguirá contar a sua piada na situação mais despropositada possível: para a filha de uma mulher que estava às portas da morte.

Uma mãe vê a sua família desfeita com o início do horror nazista. O filho ela havia conseguido mandar para Israel. O marido é morto, ela sobrevive e depois de muito tempo pode viajar para encontrar o seu filho, mas, chegando lá, precisa enfrentar a resistência da "nova mãe" do menino, que o próprio filho parece preferir. Uma versão moderna do julgamento de Salomão: quem deve ficar com a criança?

Um adolescente judeu rebelde rompe com todas as tradições, mas decide se tornar um homem exemplar na expectativa de conseguir se casar com uma mulher. Ela, no entanto, se casa com outro. Ele não pode suportar, entra na casa dos dois e está debaixo da cama no momento em que o casal está prestes a ter a sua lua-de-mel. De repente, se levanta, ergue a cama com os dois em cima e os carrega para fora.

Uma viagem de Kombi de uma cidade a outra de Israel reúne pessoas que nunca haviam se visto. No meio da estrada, começa um dilúvio tão grande que o motorista precisa parar. Todos precisam decidir o que fazer, e cada um tem o seu próprio comportamento e enxerga a vida de uma maneira. Cenas cômicas e dramáticas os aguardam, enquanto eles conversam e permitem aprender um pouco mais sobre o país.

Uma velhinha simpática já passou dos 100 anos, mas continua andando de lá para cá ajudando as pessoas em Israel. Ela, no entanto, guarda dentro de si um problema, um problema com mais de 90 anos e que vamos descobrindo aos poucos, enquanto caminhamos pelas ruas do país. O problema, no entanto, talvez não possa mais ser esclarecido nessa vida, mas a velha pretende resolvê-lo depois da morte.

Essas são sinopses de cinco contos do livro "Nova e velha pátria", antologia de contos judaicos publicada em 1966, reunindo escritores nascidos na Bielorússia, na Polônia, na Ucrânia, na Lituânia e em Israel. É o quarto livro de contos judaicos que leio este ano, e nem é o melhor deles, mas em todos encontro um punhado de pérolas que merecia fazer parte dessas listas de grandes obras da literatura mundial.

22/11/2019 – CONTOS FILOSÓFICOS DO MUNDO INTEIRO

Li “O círculo dos mentirosos: contos filosóficos do mundo inteiro”, reunião de histórias populares escritas (ou melhor, retrabalhadas) pelo francês Jean-Claude Carrière. Acho que o grande mérito do livro é que, ao juntar pequenas histórias contadas pelos povos do mundo inteiro e das mais variadas épocas, o autor conseguiu demonstrar o quanto nós estamos próximos uns dos outros. Isto é, temos nossas culturas e as nossas tradições, mas as questões que mais nos afetam são as mesmas para todos os povos. A partir dessas histórias eu realmente vislumbrei a humanidade como uma coisa só. Considero isso bem salutar. São várias historietas, a maioria delas bem curtinhas, muitas realmente “filosóficas”, na medida em que se evidenciam questionamentos interessantes, várias delas bem divertidas, e algumas que chegaram até nós, brasileiros, onde foram também retrabalhadas – pois essas histórias não terminam nunca e não se tem um único autor para elas – o próprio Carrière apenas conta as histórias que não criou, mas que são contadas também por outros, na maioria das vezes, há vários séculos. Aliás, é digno de nota o esforço do autor em reunir tantas histórias de tantas partes do mundo. Entre os contos que me deixaram com mais inquietações – e isso, afinal, é o que faz a filosofia – estão aqueles relacionados à passagem do tempo, o que inclui aqueles que sugerem realidades paralelas onde o tempo pode se processar de outra maneira. É algo que, quem sabe, um dia possa ser confirmado pela ciência, mas há muitos séculos o povo simples já havia intuído coisas semelhantes. Outro conto, indiano, sobre a justiça de Deus também me marcou.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 28/11/2019
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