A Fascinação das Asas, de Fernando Armando Ribeiro

A Fascinação das Asas, de Fernando Armando Ribeiro

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

A Ciência Política contemporânea ocupa-se de formas pouco convencionais de golpes de estado. Nos tempos da guerra fria generais e soldados colocavam os tanques nas ruas, tomavam os pontos principais, cercavam o palácio governamental, controlavam os meios de comunicação, editavam uma legislação emergencial, prendiam e eliminavam adversários. Pronto. Estava instaurado um novo regime. Argentina, Brasil, Chile, Gana, Grécia, Guatemala, Nigéria, Paquistão, Peru, República Dominicana, Turquia e Uruguai, entre outros, contemplaram o fim de suas democracias dessa maneira, em tempos não tão distantes.

Os golpes de estado são hoje realizados de outra maneira. Muitas vezes ocorrem por intermédio de processos eleitorais ou de implosões institucionais que resultam em golpes menos carregados de dramas, mas potencialmente tão destrutivos quanto os que assistiram aos tanques nas ruas. A democracia se desfaz de um modo quase imperceptível. Há quem abertamente defenda seu fim.

Em A Fascinação das Asas Fernando Ribeiro inverte essa lógica histórica. Nesse sentido, a novela seria anacrônica, estaria fora de época. Realidade e imaginação não se aproximariam. Mas é também nesse mesmo sentido que Fascinação das Asas é supreendentemente atual. Suas personagens representam situações e dilemas próprios da inconsistência da condição humana, como vividas hoje, orientadas por um pragmatismo da política do salve-se quem puder.

Nesse imaginário espaço geográfico que Fernando Ribeiro criou tudo é possível. Inclusive a inocência de Aurélio, o protagonista central. E até mesmo a impossibilidade possível do triunfo de um movimento progressista, de libertação nacional, ainda que receptor de várias adesões, a exemplo do Doutor José Otávio, sectário do regime deposto, mas também figura central do novo regime. Um trânsfuga, preocupado com a própria sorte, com sua coleção de gravatas, de livros e de frases de impacto. É uma personagem curiosa, que há na vida real, em muitos lugares. Superficial e interesseiro. É liberal e é conservador. Lembra os políticos do segundo reinado, que tinham como programa de ação (sic) não avançar, não retroagir, e também não se prostrarem parados. Como assim?

O enredo é simples. As personagens são descomplicadas, a ponto de serem por vezes óbvias, ainda que essa obviedade possa ser capciosa. Pilar é o exemplo mais acabado da premissa. Alienada, mas protagonista eficiente do jogo do poder, Pilar é o protótipo da madame mefistofélica, mas surpreendentemente bondosa. Ama o cachorrinho. E tem na vida política apenas uma rede de relações, de onde mantém sua posição, de viúva resolvida.

A narrativa inicia-se com Aurélio que “pelas trilhas da floresta, entregava-se à contemplação das aves”. Desde criança encantava-se com a natureza. Dedicava as tardes de sábado para passeios contemplativos, um tempo que considerava seu, somente seu. Perdeu-se nos vários caminhos e foi surpreendido por um grupo de guerrilheiros, que o conduziram para um acampamento. Tem-se um fragmento que remete o leitor avisado ao devaneio do caminhante solitário, do escritor genebrino. É uma militância ambientalista, sazonada pelo romantismo autêntico.

Enquanto isso, um Coronel (Torres) e um General (Costa) discutiam o estado de sítio, decretado pelo Presidente (Quirino). Tem-se então uma militância política, sazonada pela triste lembrança de cenas bizarras, como se assiste em algumas partes de “Z”, de Costa Gravas.

Retoma-se a cena do acampamento. Os guerrilheiros não acreditam que Aurélio apenas contemplava árvores e vivenciava a liberdade da natureza. Insistem em saber o que o rapaz fazia por lá. Em passos rápidos Aurélio conheceu e aproximou-se de uma guerrilheira, de nome (ou codinome) Sabina. Tudo ocorre com muita rapidez, em um plano no qual a velocidade mínima da natureza insere-se na velocidade máxima de uma atração que convence pouco o leitor. O que está acontecendo? Uma “proximidade perturbadora”, mais instintiva do que racionalmente volitiva. Nesse ponto, a narrativa pode ser pouco convincente. O que Sabina viu em Aurélio?

Aurélio planeja a fuga; tem-se a impressão de que houve conivência de Sabina. Repete-se a pergunta: o que Sabina viu em Aurélio? Aurélio avistou os militares que se aproximavam da região e a tempo retornou ao acampamento para avisar aos guerrilheiros, com quem se simpatizou. Contradição, aparente ou não: Aurélio fugiu, mas retornou para auxiliar os sequestradores, por quem se afeiçoou.

Foram todos presos. O leitor pode ser remetido à prisão dos estudantes no congresso da UNE, em Ibiúna, em 13 de outubro de 1968. Aurélio foi desprezado pela família que até parecia agraciada com a prisão. Bem que merecia. Aurélio fez amizade na cela que compartilhou com uma pessoa de idade, com quem aprendeu e se encantou com discussões filosóficas e existenciais. O velho morreu na prisão. Deixou para Aurélio chaves e um endereço. Era onde morava.

A situação dificultava-se para os militares que estavam no poder. Exigia-se a renúncia do Presidente Quirino. Comentava-se que o movimento dos guerrilheiros cresceu, tomaria a cidade e a prisão. Uma impossibilidade fática no mundo real. Os presos seriam libertados. Aurélio extasiou-se na casa do amigo que faleceu, examinou os livros, descobriu dinheiro e joias, a partir de uma referência feita em conversas. Conheceu sua história, e ficou fascinado com a trajetória do velho, entre bibliotecas e livros.

Pilar, a viúva rica e amiga dos poderosos de sempre perdeu o cachorrinho e buscou ajuda de um detetive para encontrar o animalzinho. É amiga do Doutor José Otávio, que traiu o regime decaído e que ocupava a pasta da Justiça no novo regime. Convidou-o para uma recepção. Na festa, Aurélio e José Otávio travam um diálogo de algum modo pesado. A hipocrisia de José Otávio fica óbvia. Aurélio procurou Sabina, não a encontrando, pelo que também buscou um detetive. Era Pedro, que também atendia Pilar. Numa passagem rápida, mas lírica e expressiva, Aurélio conheceu uma jardineira cega, a partir de quem ligou o cachorro perdido com o detetive.

Um deux-ex-machina acalenta um desfecho no qual Sabina reaparece, de forma epistolar, estampada num bilhete que dava conta de que estaria trabalhando em uma empresa que os progressistas e ambientalistas abominavam. É o leitor quem constrói o fim.

A Fascinação das Asas reverbera assuntos pontuais, como o conflito entre ambientalistas e supostos desenvolvimentistas. O assunto é seminal no estado de onde escreve o autor, Minas Gerais, desde os tempos da mineração. A extração mineral não distribui riquezas, atende a poucos, e Fernando Ribeiro captou com inteligência essa maldição. Um dos generais (Torres) chega a criticar a democracia, como um empecilho à ocupação econômica das riquezas naturais. Alguma semelhança?

Aurélio parece as vezes ser macunaímico. Tudo ocorre um pouco à margem de sua decisão. Vai pelos fatos. Não reclama. É um conformado. Pode significar freudianamente uma juventude distante. O escapismo de Aurélio, com pássaros, ou com livros, pode ser uma metáfora da conformação.

A Fascinação das Asas é um livro rápido, cheio de imagens e de referências. A descrição inicial da selva é potente, sente-se a olência da mata. A descrição da cadeia é burocrática, pode haver falta de sentimento. Não há referências a maus tratos ou torturas. Mas há uma estrutura narrativa lógica, os capítulos curtos se comunicam, a redação é leve, cativa. É um livro gostoso de ler. Há rupturas com um tempo ido e hoje impossível. O deslocamento do enredo não é espacial. Sua força narrativa é temporal.

Fernando Ribeiro desponta ao lado de outros escritores mineiros contemporâneos, a exemplo de Eliana Cardoso. Conhece o ofício. A Fascinação das Asas é um livro cheio de metáforas, jogos de palavras e também de intuições de ciência política, que refletem a formação e atuação profissional do autor. É um livro militante, no sentido de que a literatura não é arte pela arte. Fernando Ribeiro não oprime o leitor. Deixa-o à vontade. Pode-se comparar Sabina com José Otávio, e retoma-se a velha máxima do famoso escritor florentino para quem os fins justificariam os meios. Ou não. Nessa obra aberta é o leitor quem decide.

Ribeiro, Fernando Armando, A Fascinação das Asas, Belo Horizonte: Quixote- Do Editoras Associadas, 2019. 143 p.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 03/12/2019
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